Literatura

Os passos em volta

1 fevereiro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para o outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo – diziam. E depois amavam-se depressa e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite” – Herberto Helder, “Lugar lugares”.

Evandro Carlos Jardim

Os passos em volta é a primeira obra em prosa de Herberto Helder, um dos maiores poetas portugueses. O livro, lançado originalmente em 1963, ganhou reedição pela Tinta-da-china Brasil em maio do ano passado.

De acordo com Eucanaã Ferraz, “Não são contos. Têm a qualidade dos poemas e o desenho retilíneo da prosa. Materialização de uma singularidade irredutível, são o que são: um estilo”. Para o poeta brasileiro, o livro “espanta-nos pela sua violência, mas também porque nele perdição e terror irrompem no plano de uma escrita ordenada e muitíssimo construída. […] este livro nos apanha e desde suas primeiras palavras começamos a dar passos em volta, já não podemos sair de seu mundo, onde tudo é solidão e deslumbramento”.

Um livro de prosas curtas que representam os passos de um homem em torno da sua existência, sem respostas paradigmáticas, em meio ao vazio que se procura transformar em matéria.

Segundo Heidi Strecker, em resenha escrita para a revista Trópico: “Um narrador de poucas palavras fotografa a vida pequena do mundo e sua própria relação aguda com a vida: uma cena num bar, um copo com cerveja belga, a lembrança de um interrogatório, o hotel barato de um viajante, o sono interrompido por um barulho. […] É uma prosa sem afetação, de quase nenhuma descrição e diálogos raros. No entanto, como se afirma sobriamente sobre o mundo! Neste lugar pequeno de onde fala, mesmo que passe, estranhando, várias vezes por uma rua que volta sempre para a mesma praça (“Descobrimento”), para o narrador, pensar e narrar são uma mesma operação. A força das associações – verbais, visuais, conceituais – é dominada com vigor. Quando o raciocínio colide com uma imagem, da imagem é extraído um novo raciocínio. É uma prosa que avança, uma meditação que não se detém”.

Comentando o conto “Lugar lugares”, Edimara Lisboa, doutora em letras pela USP, no artigo “Quem pode compreender? – A performance cínica do narrador de ‘Lugar lugares’”, pontua que: “Sonâmbula ou muito conscientemente, o narrador do conto ‘Lugar lugares’ de Herberto Helder uma das angustiantes narrativas de Os Passos em Volta conduz o leitor por um universo ao mesmo tempo complexo, estranho, e familiar, simples. Sob um falso pretexto de conto de fadas, enreda um texto multiforme cuja ambiguidade dos elementos ‘organiza’ um verdadeiro labirinto de significações. O leitor é convidado a sentir ‘com a imaginação’, levantar hipóteses, duvidar das imagens e cenas que vai formando mentalmente”. Segundo o comentário da crítica, “cabe ao leitor supor os possíveis ângulos desse foco narrativo: trata-se de uma conversa de loucos entre os dois personagens? o narrador trafega pelo inferno recolhendo fragmentos de diálogos? os diálogos se dão entre os mesmos dois personagens em momentos diferentes, alocados aqui sequencialmente sem recontextualização? novas personagens vão introduzindo outras questões a um diálogo que se transforma em conversa em grupo? Além disso, outros problemas menores vão sendo introduzidos, como no seguinte fragmento do conto:

é preciso mudar o inferno, cheira mal, cortaram a água, as pessoas ganham pouco – e que fizeram da dignidade humana? As reivindicações são legítimas. Não queremos este inferno. Deem-nos um pequeno paraíso humano. Bom dia, como está? Mal, obrigado. Pois eu ontem estive a falar com ela, e ela disse: sou uma mulher honesta. E eu então fui para o emprego e trabalhei, e agora tenho algum dinheiro, e vou alugar uma casa decente, e o nosso filho há-de ser alguém na vida. E então a gente ama, porque isto é a verdadeira vida, palpita bestialmente ali, isto é que é a realidade, e todos juntos, e abaixo a exploração do homem pelo homem. E era intolerável. Ouvimos dizer que, numa delas, o pequeno inferno começou a aumentar por dentro, e ela pôs-se silenciosa e passava os dias a olhar para as flores, até que elas secavam, e ficava somente a jarra com os caules secos e a água podre. Mas o silêncio tornava-se tão impenetrável que os gritos dos outros, e a solícita ternura, e a piedade em pânico – batiam ali e resvalavam. E então a beleza florescia naquele rosto, uma beleza fria e quieta, e o rosto tinha uma luz especial que vinha de dentro como a luz do deserto, e aquilo não era humano – diziam as pessoas’.

Uma interpretação primeira do pronome ela, destacado, é de que o referente é a esposa do personagem que toma a palavra, ou, ao menos, a mãe de seu filho. E aí todas as imagens de mulher sugeridas ganham o rosto dessa personagem feminina. No entanto, não é forçoso interpretar o pronome ela como o anafórico da expressão dignidade humana, possibilitando que as imagens de mulher sejam compreendidas metaforicamente. São vários os jogos de sentido dessa natureza presentes no texto, um labirinto que se adensa como se o narrador estivesse a rir por detrás dos bastidores, sempre ‘provocando’ o leitor virtual, crítico e reflexivo”.

Para Lisboa, “exemplo fino do Surrealismo em Portugal, ‘Lugar lugares’ indica desde o título a pluralidade de lugares e de sentidos que o leitor é convidado a percorrer erraticamente, refazendo a experiência onírica de um narrador sinuoso que desde logo permite-se abandonar a sua longínqua onisciência para mergulhar na diegese, interferir nos diálogos e converter-se em personagem”.

Citando novamente Eucanaã Ferraz: “A primeira tentação é dizer que a leitura deste livro enlouquece. A segunda, dizer o contrário: que seu leitor se investe de uma lucidez inquietante. Tal flutuação atrai e desconcerta”.

 

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.trecho.

 

Em janeiro eu estava em Bruxelas, nos subúrbios, numa casa sobre a linha férrea. Os comboios faziam estremecer o meu quarto. Fora-se o natal. Algo desaparecera, uma coisa ingênua em que se poderia ter confiado. Talvez a esperança. Eu não tinha dinheiro nem livros nem cigarros. Não tinha trabalho nem ócio, porque estava desesperado. Por isso passava o dia e a noite no quarto. Na linha em baixo rangiam e apitavam comboios que talvez fossem para Antuérpia. Eu pensava em Deus quando os comboios trepidavam nos carris e apitavam tão perto de mim. Quando iam possivelmente a caminho da Antuérpia. Pensava nos comboios como quem pensa em Deus: com uma falta de fé desesperada. Pensava também em Deus – um comboio: algo que sem dúvida existe, mas é absurdo, que parte de um destino indefinido: Antuérpia – que possivelmente (evidentemente) não era.

[…]

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OS PASSOS EM VOLTA

Autor: Herberto Helder
Editora: Tinta-da-china
Preço: R$ 55,20 (176 págs.)

 

 

 

 

 

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