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Askhmata
Esquemas de percurso, exercícios: ancoragens marcadas em uma carta náutica literária, imaginária. Alheias às exigências profissionais de decoro, desenham memórias de leituras.
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WARBURG, Aby, Histórias de fantasma para gente grande.
[Companhia das Letras, organização de Leopoldo Waizbort, tradução de Lenin Bicudo Bárbara]
Warburg expõe, no primeiro ensaio do volume, como Sandro Botticelli assimilou as visões do seu tempo sobre a Antiguidade, porém transformando-as em sua essência secundária – mantendo suas próprias observações, individuais, como substância primária.
No Quattrocento, diz Warburg, “a ‘Antiguidade’ não exigia dos artistas que abdicassem incondicionalmente das formas de expressão adquiridas mediante suas próprias observações – como exigiria o século XVI, quando a matéria antiga foi encarnada à maneira antiga -, mas apenas chamava a atenção para o mais difícil problema das artes plásticas: como capturar as imagens da vida em movimento”.
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“O nascimento da Vênus” contida na Giostra de Angelo Poliziano, guarda semelhanças com a pintura de Botticelli (e a descrição de Poliziano se apoia no hino homérico a Afrodite). “A ação transcorre, na pintura, da mesma forma que no poema”.
De acordo com Warburg, o “esforço ostentsivo, que se manifesta uniformemente tanto no poema como na pintura, em capturar os movimentos transitórios dos cabelos e trajes corresponde a uma corrente dominante nos círculos artísticos no norte da Itália desde o primeira terço do século XV, que encontraria no Da pintura de Alberti sua expressão mais destacada”.
Poliziano, possivelmente estimulado pela indicação de Alberti, considerou a reprodução de acessórios em movimento como um problema artístico. Suas palavras imitam fidedignamente as palavras dos antigos Ovídio e Claudiano. Foi ele o inspirador do concetto da pintura de Botticelli.
Botticelli deu corpo exatamente a exemplos modelares de Alberti, o que é “prova suplementar do quanto ele, ou então o douto que o aconselhava, foi ‘influenciado’ pelo ideário de Alberti”.
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Leonardo da Vinci: “[…] e imita, quanto puderes, os gregos e os latinos, com o modo de revelar os membros, quando o vento se apoia sobre suas roupas” [Trattato].
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Intercâmbio da cultura artística entre o passado e o futuro, e entre o norte e o sul, no século XV: história da reaparecimento do arcabouço de formas da Antiguidade, “tanto por modelos para a mímica pateticamente acentuada como para a calmaria classicizante idealizadora”.
“Mântia e Florença convergem em suas tentativas de incorporar ao estilo renascentista [na segunda metade do século XV] da descrição da vida em movimento as fórmulas genuinamente antigas para as expressões exacerbadas do corpo ou da alma. A partir daí, e sob influência de Poliziano, os florentinos chegaram a um estilo misto e desequilibrado entre a observação realista da natureza e o decalque idealizador dos padrões consagrados na arte e na poesia da Antiguidade, como o provam as obras de Botticelli […]. Em contraste, Antonio Pollaiuolo bem no espírito de Donatello, cria para si um estilo de inspiração antiga, mas unitário, graças à sua vivedoura retórica dos músculos, que se anuncia nos corpos nus em movimento. Entre a mobilidade graciosa de Poliziano e o maneirismo veemente de Pollaiuolo está o pathos heroico e teatral ostentado pelas figuras antigas de Mantegna”. Mantegna e Pollaiuolo serviram de modelo para Dürer [argumento apoia-se no “Apolo de Belevedere”].
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“O mundo das formas romanas do alto Renascimento italiano anuncia para nós, historiadores da arte, a tentativa, afinal alcançada, do gênio artístico de se livrar da servidão ilustrativa da Idade Média”.
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“O problema é este: o que a influência da Antiguidade significa para a cultura artística do início do Renascimento?”
Influência que, no Quattrocento, sobretudo para Botticelli e Filippino Lippi, manifestava-se em uma reformulação artística da aparência humana, através da mobilidade intensificada do corpo e do traje, pautada tanto em modelos da poesia, como das artes plásticas antigas. “Os superlativos genuinamente antigos da linguagem gestual davam o estilo da retórica dos músculos de Pollaiuolo”. Trata-se de “certa fórmula de pathos”, também responsável pelo ímpeto dramático do fabuloso mundo pagão do jovem Dürer.
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O interesse peculiar na formação clássica “está tão profundamente enraizado no modelo setentrional que encontramos já nos primórdios da Idade Média um gênero de manuais ilustrados sobre mitologia voltados para os dois grupos que deles mais careciam: os pintores e os astrólogos”.
No norte europeu originou-se, por exemplo, o principal tratado latino voltado para os pintores das divindades: o De deorum imaginibus libellus, atribuído a um monge inglês, Albericus, que deve ter vivido no século XII. Sua mitologia ilustrada, contendo descrições das imagens de 23 divindades pagãs insignes, exercia uma influência – até hoje completamente ignorada – sobre a literatura mitográfica posterior, e em especial na França, onde as versões poéticas da obra de Ovídio em francês e os comentários moralistas em latim de seus poemas garantiram o asilo aos emigrantes pagãos, já na virada do século XIII para o XIV”.
A prática da regência dos meses pelos planetas deu origem aos almanaques, que “funcionavam, para os crentes na astrologia, como hieróglifos fatalistas de um livro de oráculo”.
Desse modo de “transmissão das divindades – em que as figuras do mito grego adquiriram ao mesmo tempo a força tétrica dos demônios astrais – forçosamente partiria uma corrente principal, no curso da qual, no século XV, o paganismo, em seu disfarce setentrional, ia se propagar internacionalmente com tanto mais facilidade quanto mais tinha à sua disposição os novos veículos para o transporte de imagens, muito mais rápidos, inventados pela engenho da imprensa setentrional”.
Análise da potencialidade mnêmica impregnada no mundo das divindades pagãs: os afrescos do Palazzo Schifanoia desvelam a dupla tradição medieval do universo de imagens das divindades antigas. O mundo das divindades no Palazzo, localizado em Ferrara, representam um tipo que marca a transição da Idade Média internacional para o Renascimento italiano.
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Há uma esfera de transição entre Francesco Cossa [pintor responsável pelos afrescos do Palazzo que, sob inspiração do douto Pellegrino Prisciani, seguiu rigorosamente o programa da mitografia latina] e Rafael [e seu “éter iluminado da Vênus aviática, na Vila Farnesina”]: Botticelli.
Sobre Botticelli como esfera de transição: “também Alessandro Botticelli precisou, inicialmente, libertar sua deusa da beleza desse realismo medieval […], dessa dependência ilustrativa, dessa prática astrológica”. É nítido, para Warburg, que “as primeiras pinturas de Botticelli (‘O nascimento de Vênus’ e a assim chamada ‘A primavera’) anseiam reconquistar a liberdade olímpica das deusas, duplamente aprisionadas pela Idade Média: pelos grilhões mitográficos e astrológicos”.
[“as próprias esculturas antigas lhe permitiram ver como o mundo das divindades gregas dançava em seu baile, à maneira de Platão”].
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“O compêndio nunca escrito sobre a ‘servidão do homem moderno supersticioso’ precisaria ser precedido por uma investigação científica, também até agora inescrita, sobre o Renascimento da Antiguidade demoníaca na era da Reforma alemã”.
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A profecia da Antiguidade pagã nos tempos de Lutero: “Somente quando nos decidirmos a conceber e investigar as figuras do mundo das divindades pagãs, tal como ressurgiram no início do renascimento no norte e no sul dos Alpes, não só como manifestações artísticas, mas também como religiosas, é que aprenderemos gradualmente a conceber a potência do destino representada pelo fatalismo da cosmologia helenística, também para a Alemanha e mesmo na época da Reforma”.
Os deuses astrais foram fielmente transmitidos pela trilha que sai do helenismo e segue pela Arábia, Espanha e Itália, até a Alemanha. Continuaram, assim, sendo, em imagem e linguagem, divindades temporais plenas de vida, que marcavam matematicamente cada fração de período ao longo do ano e dominavam o cenário de modo mítico e pessoal.
“Eram seres demoníacos com um duplo poder, de um contraste aterrador: como signos astrais, ampliavam o espaço e ofereciam os pontos de orientação para o voo da alma pelo universo; como ídolos das constelações, eram ao mesmo tempo aqueles com os quais a pobre criatura, bem à maneira das crianças, aspirava unir-se misticamente, agindo com reverência”. Contraste entre abstração matemática e o vínculo do culto de veneração.
“Com isso, na virada do século XV – tanto na Itália como na Alemanha -, duas concepções da Antiguidade se contrapõem: a ancestral concepção prático-religiosa, e a nova, artístico-estética. Enquanto esta última parece, a princípio, sair vencedor na Itália, encontrando seguidores também na Alemanha, a Antiguidade astrológica experimenta, em solo alemão, um renascimento altamente peculiar, que até agora não foi de modo algum suficientemente observado”.
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Melâncton [reformador, astrólogo e astrônomo alemão, colaborador de Lutero. Redigiu a “Confissão de Augsburgo” (1530) e converteu-se no principal líder do luteranismo após a morte de Lutero] portava-se como “um intérprete pagão dos presságios, distraído por signos celestes e vozes humanas da tomada de decisões que eram imprescindíveis para sua guarda. […] para ele, aquela visão harmonizadora de mundo própria à Antiguidade sobrevivia na prática no método astrológico – sendo esse justamnete o fundamento essencial de seu humanismo de orientação cosmológica”.
Lutero, por outro lado, “limitou-se a aceitar estritamente o núcleo místico-transcendental do evento cosmológico, na sua qualidade de prodígio da natureza, enviado soberana e imponderavelmente pela onipotência do deus cristão como admoestação pressagiadora, ao passo que Melâncton a astrologia antiga como uma medida de proteção intelectual contra a fatalidade mundana, mas cosmicamente condicionada”.
Política astrológica.
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“A concepção de história como algo condicionado pelo cosmos (própria do medievo tardio, mas genuinamente helenística) estava, para a teoria de então, tão decisivamente vinculada à ocorrência de certas conjunções planetárias a determinados intervalos que um novo profeta somente obteria sua consagração cosmológica com uma convergência dos planetas superiores, sobretudo Saturno e Júpiter”.
Profecia interpretadora dos prodígios: teratologia antiga na política de imprensa luterana.
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“Na época do humanismo alemão, abriu-se um caminho que, partindo desse uso prático das imagens proféticas […] conduz à obra de arte e à arte grandiosa de um Albrecht Dürer”. Suas criações enraizam-se profundamente neste “solo materno primordial”.
A crença na cosmologia pagã sela o acesso interno para a gravura “Melencolia I”, na qual o quadrado mágico de Júpiter “cumpriria ser visto menos como amuleto anti-saturniano, e sim, ‘em primeiro lugar’, como símbolo da genial força criativa do homem saturniano. […] O ato verdadeiramente criativo – que torna a ‘Melencolia I’ de Dürer esse reconfortante ícone humanista contra a saturnofobia – só pode ser concebido caso se reconheça tal mitologismo mágico como o objeto próprio de uma transformação artística sublimadora.
Esses demônios planetários, funestos e devoradores de crianças […] foram remodelados pela metamorfose humanizadora de Dürer na encarnação plástica do ser humano trabalhador e pensante”.
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“A história da influência da Antiguidade – contemplada na mudança de suas imagens divinas transmitidas, esquecidas e redescobertas – abriga valores cognitivos latentes para uma história da significação do modo de pensar antropomórfico. Na época de transição do início do Renascimento, a causalidade própria à cosmologia pagã teve sua marca cunhada nos símbolos das divindades de inspiração antiga, e foi sua saturação com atributos humanos o que decidiu o feitio do confronto que, partindo do culto religioso aos demônios, levou à transformação puramente sublimadora da arte”.
Humanisticamente sublimado na reflexão humana.
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“[…] a revitalização da Antiguidade demoníaca é consumada graças a uma espécie de função polar própria à memória empática das imagens”.
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Palestra sobre o culto animista dos índios pueblos da América do Norte, ministrada em 21 de abril de 1923: “Em que medida” a visada nas manifestações dos cultos animistas, “essa visão de mundo pagã, tal como ainda sobrevive entre os pueblos, nos fornece um parâmetro para os processos de desenvolvimento que vêm do paganismo primitivo, passam pelo homem do paganismo clásscio e chegam à modernidade?”
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Sobre a ornamentação na cerâmica dos pueblos: “Esse estilo praticamente põe a nu o esqueleto do fenômeno, decompondo a ave em suas partes essenciais de modo a convertê-la em uma abstração formada heraldicamente. A ave torna-se hieróglifo, que já não é feito para ser visto, mas lido. Temos um grau intermediário entre a imagem do real e o signo, entre a imagem realista do espelho e a escrita”. Maneira de ver e pensar leva á escrita simbólica por imagens.
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“(a observação do céu é a dádiva e a maldição da humanidade).”
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“A dança mascarada, que estamos acostumados a considerar meramente como um jogo, é, em sua essência, uma medida levada a sério (e, podemos dizer, combativa) na luta pela existência. […] As medidas sociais para garantir os meios de subsistência são, portanto, esquizoides: nelas, a magia e a técnica colidem”. Mito e prática se entremeiam no homem “primitivo”.
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Simbologia da serpente:
“A serpente é, justamente, um símbolo internacional para responder à questão: de onde vêm a devastação elementar, a morte e o sofrimento no mundo? […] Pode-se talvez dizer: onde quer que o sofrimento humano, desnorteado, busque por salvação, terá à mão a serpente como causa esclarecedora em termos de imagem. A serpente merece um capítulo próprio na filosofia do ‘como se’”.
“A serpente não é apenas, como diriam os índios de Cushing, a mordida fatal (consumada ou prestes a) que aniquila sem piedade, mas também se revela como corpo que abandona sua pele e segue subsistindo outra vez renovada – como que se despedindo de seu invólucro. Ela é capaz de mergulhar terra adentro e dela remergir. O retorno do mundo inferior, onde os mortos repousam, faz da serpente – junto á sua capacidade de renovar a pele – o símbolo mais natural da imortalidade e do renascer diante da doença e do perigo da morte”. Exemplos: Esculápio, deus da saúde na Antiguidade, Laocoonte, Erínia, serpente do Velho Testamento.
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A identificação da identidade, ou seja, daquilo que há de indelével no homem “primitivo”, permitiu a Warburg perceber o nexo orgânico entre arte e religião, não só entre os povos indígenas por ele observados, mas, sobretudo, “tanto na cultura do início do Renascimento florentino, como, mais tarde, na Reforma alemã”.
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“Como se originam as expressões linguísticas e em forma de imagem?”
Imagem mnêmica leva à ação religiosa no homem “primitivo” e, no homem “civilizado”, à anotação. Permanecem latentes. Formas simbólicas do pensamento; psicologia do estudo da expressão humana.
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O culto da Antiguidade foi mantido e reivindicado na astrologia, ou seja, como demônios e distorções. O restabelecimento da Antiguidade clássica é resultado de uma tentativa de liberação da personalidade moderna em relação ao feitiço da prática do helenismo mágico – “tentativa essa que, não sendo talvez de efeito estético tão estimulante, é de um impacto humano tanto mais profundo”.
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Franz Boll publicou a Sphaera (“Bíblia dos astrólogos medievais”) e, anexo a ela, a grande introdução do astrólogo árabe Abû Ma’schar. Warburg identifica, em meio à descrição comparada dos firmamentos celestes feita por Abû Ma’schar, a fonte do ciclo astrológico representado nos afrescos pintados no Palazzo Schifanoia, em Ferrara. Os afrescos são ponto de partida para o processo continuado de restabelecimento da Antiguidade como criadora de um novo ideal para a atitude humana em relação ao cosmos.
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“Toda a tragédia prometeica do ser humano reside no fato de que não há uma abóbada firme sobre nós”.
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“A kinesis [movimento] regular da Terra em torno do Sol significa, para a pequena vanguarda dos astrônomos, o início da liberação do medo dos demônios; a ciência matemática da Grécia, restabelecida às suas formas primevas no curso do Renascimento, ainda assim conferiu ao próprio homem europeu a arma para combater os demônios astrais oriundos da Grécia e Grécia asiática. A Atenas grega espera ser mais uma vez, como tantas e tantas vezes, reconquistada da Alexandria árabe. Talvez essa dinâmica própria dúplice no interior do legado da Grécia antiga seja, em sentido mais qualificado e abrangente do que se presumiu até hoje, o sentido interior da assim chamada época do Renascimento”.
Ser humano como pequeno cosmo em relação direta com o mundo astral; vinculação imaginária entre o ser humano e o cosmos natural; “isso é você”.
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“Na sociologia, fala-se hohe de uma lei básica, da loi de participation [Levy-Brühl], que seria especialmente característica dos homens primitivos. Quem considera a retórica astrológica dos almanaques só pode constatar que, pelo contrário, tanto esse intercâmbio falacioso entre a metáfora e a designação da coisa com o sujeito que julga, nunca poderá se mostrar com nitidez maior do que no caso da doutrina astrológica”.
“Cosmologia aplicada é, para nós, um conceito inusitado; mas assim que se ganha clareza a seu respeito […], entende-se que a concepção mágica do cosmos nada mais é que a aplicação da loi de participation à circunstância dos desejos figuradores do futuro”.
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“O assim chamado hermetismo nada mais é que o estabelecimento desses quadros, de relação entre o homem e o mundo natural ao redor: animais, plantas, minerais. Ele é a expressão mais plenamente articulada do pensamento estrutural – para empregar o termo de Cassirer [“Das Mythische Denken”, 2º volume de sua obra Filosofia das formas simbólicas] -, que não indaga pelo efeito de uma causa, mas vincula antecipada e arbitrariamente, o resultado do desejo a um causador fictício, firmado como imagem”.
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Palas no complexo fóbico da luta com gigantes: também em Botticelli, no quadro “Palas domando o centauro”. Segundo warburg: “Na escola de Atenas de Rafael [Stanze, Vaticano] já não se trata mais de um valor expressivo simbólico, próprio ao monstruoso complexo agonístico. A serenidade elevada da academia grega permeia o salão. A deusa Atena está em um nicho ensombreado, mas governa lá no plano de fundo. Per monstra ad sphaeram! Da terribilitá dos monstros à contemplação, na esfera ideal, da observação pagã erudita. Eis a marcha do desenvolvimento cultural do Renascimento”.
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Psicologia da ideia do sacrifício esteve no verdadeiro centro do interesse humano da época do Renascimento e da Reforma até os dias de hoje. A pintura “O sacrifício de Listra”, de Rafael, representa de modo diretamente pragmático a postura de repúdio da Igreja cristã contra o paganismo sanguinário e idólatra: a substituição do sacrifício humano pelo sacrifício animal.
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“O transporte arqueologizante dos deuses para o reino da beleza de aparência escultural, iniciado por Rafael e sua escola, teve para nossa visão científica da cultura a consequência fatal de considerarmos os deuses pagãos, enquanto potências do destino para o alto Renascimento, superstições já ultrapassadas. Mas a força demoníaca dos deuses pagãos, de jaez astrológico, precisa ser considerado justamente como sua função primordial mais antiga e própria, que sobreviveu ao período de espiritualização estetizante”.
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“O processo de desdemonificação da herança das impressões cunhadas pelo phobos – que abrange toda a escala dos estados de comoção expressos em linguagem gestual, indo da cisma desamparada à antropofagia assassina – confere à dinâmica do movimento humano, mesmo nos estágios que se acham entre os polos limítrofes do culto orgíaco (lutar, andar, comer, dançar, pegar), uma borda de vivência aterradora que o renascentista instruído, crescido na disciplina clerical do medievo, via como um território proibido, no qual apenas os ateus de temperamento liberto podiam se espraiar.
O Atlas Mnemosine pretende, com seu material de imagens, ilustrar esse processo, que se poderia designar como uma tentativa de introjeção na alma dos valores expressivos pré-formados na representação da vida em movimento”.
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Compromisso entre fantasia antropomórfica e reflexão comparativa. Recorrer às obras de arte da Antiguidade quando se tratava de dar corpo à vida em movimento aparente. Concetto da pintura vem da poesia.
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