O livro de peixes de Gould – Romance em doze peixes, de Richard Flanagan, é um romance engenhoso, cuja ficção entrelaça-se à história da Austrália, à história das colônias penais, ao cientificismo do século XIX, partindo do relato sobre William Gould, pintor e talentoso imitador e falsificador de arte, condenado, em 1827, a cumprir 49 anos de prisão numa colônia penal da Ilha Sarah – território da Terra de Van Diemen, que viria a se tornar a Tasmânia. Ali, coagido pelo médico do presídio, Gould realizou uma série de pinturas retratando os peixes da região. Inspirado nesta personagem histórica, o tasmaniano Richard Flanagan reconstitui as terríveis condições da colonização inglesa. O narrador de sua história é um falsificador de antiguidades que encontra um livro misterioso, escrito à mão, com diversas pinturas de peixes. O objeto, ainda que curioso, não tem valor nenhum. No entanto, o livro some e seu desaparecimento é tão misterioso quanto a sua origem. Trata-se do caderno escrito no cárcere.
Escrevendo às escondidas, Gould, preso numa solitária imunda, diariamente alagada pela maré, só podia escrever e pintar com o parco material que conseguia ter à mão; assim, cada capítulo é escrito à guisa da tonalidade peculiar das diferentes “tintas” utilizadas: sangue de canguru, fluídos extraídos de um molusco ou excrementos do próprio Gould. As minuciosas ilustrações dos peixes entrelaçam-se às desventuras que levaram o pintor a cumprir pena em uma região remota, bem como a uma galeria de personagens curiosos, entre criminosos gananciosos por adentrarem na hierarquia da colônia penal, um excêntrico médico, que deseja tornar-se famoso, e um capitão que pretende fazer, da Ilha Sarah, local tão civilizado quanto a Europa.
Flanagan articula as diversas histórias em 12 capítulos, cada um nomeado por um peixe pintado pelo protagonista. Com um estilo que combina realismo mágico, digressões filosóficas e inventividade lingüística, o autor faz com que a escrita e os peixes de Gould se tornem foco de resistência contra a opressão da colônia penal e, ao mesmo tempo, expressão da sobrevivência da liberdade num lugar onde só a imaginação escapa ao confinamento e ao sadismo. O livro de peixes de Gould é, portanto, um relato – intrigante – sobre a importância de contar histórias; inclusive como forma de manter-se são, em um ambiente dominado pela violência, loucura e morte.
O autor levou 12 anos a escrever o romance, que teve cinco versões e é o resultado de uma luta pessoal com um trauma: a do escritor perante o horror de um campo de prisioneiros de guerra de que o próprio pai foi, de fato, sobrevivente. Richard Flanagan nasceu em Longford, Tasmânia, em 1961. Estreou como romancista em 1994, com Death of a River Guide. Publicou O livro de peixes de Gould e A terrorista desconhecida (2009), romance policial norteado pela paranoica realidade do mundo após o atentado de Onze de Setembro. O autor venceu o Man Booker Prize de 2014 com O caminho estreito para os confins do norte (2015), um romance ambientado na construção da ferrovia da Birmânia, também conhecida como a ferrovia da morte: encomendada pelo Japão para transportar suas tropas durante a Segunda Guerra Mundial, foi construída com o trabalho forçado de prisioneiros de guerra.
Questionado sobre seu método de trabalho, em entrevista publicada pelo blog do IMS – pergunta baseada na observação de que, de seus dois romances publicados no Brasil, “um é mais metaficcional, o outro mais realista, mas, ainda assim, ambos têm os pés bem fincados na história” -, Flanagan disse: “Não tenho um método. Invento tudo (risos). Acho que é uma enganação contemporânea isso de que, se você incluir o passado na sua escrita, você está operando num segmento específico da literatura. Mas não chamamos Homero de poeta histórico, e não chamamos Shakespeare de dramaturgo histórico. É uma ideia muito recente que vem de meados do século XX, de quando começaram a compartimentar a literatura em nichos de mercado: você tinha escritores literários, escritores históricos. Mas não é como vemos o mundo. Pensamos que o Alzheimer é a doença mais cruel de todas, que destrói o caráter, porém, no fundo, só destrói a memória, e no fim das contas, tudo o que somos são nossas constantes invenções de nossa memória de nós mesmos. Isso é o que acho que a literatura faz, assim como a mente humana. Escrevi romances que parecem contemporâneos, outros que parecem históricos. Para mim, todos os romances são contemporâneos, só tem cenários diferentes. Um romancista busca comunicar coisas muito abstratas de dentro de sua alma, sentimentos muito abstratos, e daí criam histórias e enredos para poder dar conta disso. Entretanto, um romance não é sobre enredo e personagens, mas sobre as coisas aqui dentro (aponta para o coração)”.
O livro de peixes de Gould foi editado no Brasil pela Biblioteca Azul da Editora Globo, com tradução de Fabio Bonillo que, de acordo com o blog do IMS, é “irreparável, por sinal – […] recupera arcaísmos como ‘&’ e jogos de diagramação”. O livro já havia sido publicado anteriormente no Brasil pela Companhia das Letras – com o título O livro dos peixes de William Gould [esgotado].
A Editora Globo disponibiliza um trecho para visualização.
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.trecho.
Meu assombro ao descobrir que o Livro de peixes ainda permanece comigo, luminoso como o mármore fosforescente que arrebatou meus olhos naquela estranha manhã; cintilante como aqueles lúgubres torvelinhos que coloriram minha mente e encantaram minha alma — que lá e então iniciaram o processo de desfiar o meu coração e, pior ainda, a minha vida na pobre e descarnada embrulhada que é esta história que você está prestes a ler.
De que se tratava aquela branda radiância que me faria pensar ter vivido a mesma vida de novo e de novo, como um místico hindu para sempre preso na Grande Roda? viria a ser meu destino? algo que roubaria meu caráter? que tornaria meu passado e meu futuro unos e indivisíveis?
Seria acaso aquele mesmerizante tremeluzir que subia em espiral do indisciplinado manuscrito para longe do qual cavalos-marinhos e dragões-marinhos e mira-céus já nadavam, levando deslumbrante luz a um melancólico dia ainda não nascido? Acaso aquela desolada vaidade de pensamento que me fez achar que eu continha dentro de mim todos os homens e todos os peixes e todas as coisas? Ou seria acaso algo mais prosaico — má companhia e bebida ainda pior — o que me conduziu à monstruosa situação em que agora me encontro?
Caráter e destino são duas palavras, escreve William Buelow Gould, para a mesma coisa — mais uma questão sobre a qual ele estava, como sempre, incisivamente errado.
[…]
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Autor: Richard Flanagan
Editora: Globo
Preço: R$ 39,92 (400 págs.)
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.nota.
Algumas das pinturas do caderno de William Gould: