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Sobrevivência dos vaga-lumes

23 janeiro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“A única anarquia verdadeira é a do poder” – Pasolini, frase proferida em Saló.

cena de “Teorema”

O filósofo francês Georges Didi-Huberman defende a sobrevivência da experiência e da imagem, em um texto que representa uma grande guinada na história da arte: Sobrevivência dos vaga-lumes, publicado no Brasil pela editora da UFMG em 2014, com tradução de Vera Casa Nova e Márcia Arbex.

Sua reflexão parte do famoso artigo “O vazio do poder na Itália”, escrito por Pier Paolo Pasolini em 1975 e retomado em seus Scritti corsari [Escritos corsários] com o nome pelo qual tornou-se conhecido, “O artigo dos vaga-lumes”. O artigo trata sobretudo, como um lamento fúnebre, da morte do vaga-lumes, fulgurações figurativas de momentos de graça que resistem ao mundo do terror: lampejos de inocência, em um contexto político e histórico marcado pelo aniquilamento da inocência graças ao fascismo triunfante. Pois, ainda que Mussolini houvesse sido executado e pendurado pelos pés, Pasolini diagnostica, a partir da metade da década de 1960, “algo” que deu lugar a um “fascismo radicalmente, totalmente e imprevisivelmente novo”, que, tomado em dimensão antropológica, é responsável por um enfraquecimento cultural ou, nas palavras do cineasta, um “genocídio cultural”. O verdadeiro fascismo para ele, como diz Didi-Huberman, “é aquele que tem por alvo os valores, as almas, as linguagens, os gestos, os corpos do povo. É aquele que ‘conduz sem carrascos nem exceções em massa, à supressão de grandes porções do própria sociedade’, e é por isso que é preciso chamar de genocídio essa ‘assimilação (total) ao modo e à qualidade de vida burguesa’”.

Segundo Didi-Huberman: “Com a imagem dos vaga-lumes, é toda uma realidade do povo que, aos olhos de Pasolini, está prestes a desaparecer. Se a ‘linguagem das coisas mudou’ de forma catastrófica, como diz o cineasta em suas Lettres luthériennes [Cartas luteranas], é porque, em primeiro lugar, o ‘espírito popular desapareceu’. E poder-se-ia dizer que essa é de fato uma questão de luz, uma questão de aparição. Donde a pregnância, donde a justeza do recurso aos vaga-lumes. Pasolini, desse ponto de vista, parece estar ao mesmo tempo no rastro de Walter Benjamin e no espaço de reflexão explorado, mais próximo a ele, por Guy Debord”.

O filósofo reflete sobre a morte dos vaga-lumes de Pasolini através de levantamento de “sobrevivências” [assim como o são metaforicamente os próprios vaga-lumes] em textos, sobretudo, de Walter Benjamin, Giorgio Agamben, Aby Warburg, Georges Bataille, Hannah Arendt. A metáfora dos vaga-lumes [lucciole] é retomada a partir da imagem criada por Dante:

“Bem antes de fazer resplandecer, em sua escatológica glória, a grande luz (luce) do Paraíso, Dante quis reservar, no vigésimo sexto canto do Inferno, um destino discreto, embora significativo, à ‘pequena luz’ (lucciola) dos pirilampos, dos vaga-lumes. O poeta observa, então, a oitava vala infernal: vala política, caso existisse, visto que aí se reconhecem alguns notáveis de Florença reunidos com outros, sob a mesma condenação ‘conselheiros pérfidos’. O espaço é todo salpicado – constelado, infestado – de pequenas chamas que parecem vaga-lumes, exatamente como aqueles que as pessoas do campo, nas belas noites de verão, veem esvoaçar, aqui e ali, ao acaso de seu esplendor, discreto, passante, tremeluzente […]. No Paraíso, a grande luz se expandirá por toda parte em sublimes círculos concêntricos: será uma luz de cosmos e de dilatação gloriosa. Aqui, ao contrário, as lucciole vagam fracamente – como se uma luz pudesse gemer – numa espécie de bolsão sombrio , esse bolsão de pecados feito para que ‘cada chama contivesse um pecador’”.

Assim, a vida dos vaga-lumes “parecerá estranha e inquietante, como se fosse feita da matéria sobrevivente – luminescente, mas pálida e fraca, muitas vezes esverdeada – dos fantasmas. Fogos enfraquecidos ou almas errantes”.

 

Pasolini quis mostrar o poder específico das culturas populares, para reconhecer nelas uma verdadeira capacidade de resistência histórica, logo, política, em sua vocação antropológica para a sobrevivência. Mas os projetores, em seu espetáculo comercializável, tomaram todo o espaço social. Nas palavras de Pasolini – que retumbam uma insistente atualidade: “esse mundo é fascista e ele o é mais do que o precedente, porque é recrutamento total até às profundezas da alma; ele o é mais do que qualquer outro, porque não deixa mais nada fora de seu reino despótico sem limite, sem referência e sem controle. […] Com efeito […] não é mais possível, em 1975, opor os ‘corpos inocentes’ à massificação cultural e comercial, à trivialização de qualquer realidade, pela boa razão de que a indústria cultural apossou-se dos corpos, do sexo, de eros e os injetou nos circuitos de consumo. A ilusão dos reduto do imemorial ou do porto de resistência inserido nos estratos profundos da cultura popular dissolveu-se”. Tempo em que os resistentes transformam-se em vaga-lumes. “O universo dantesco”, analisa o filósofo, “dessa forma, inverteu-se: é o inferno que, a partir de então, é exposto com seus políticos desonestos, superexpostos, gloriosos. Quanto às lucciole, elas tentam escapar como podem à ameaça, à condenação que a partir de então atinge sua existência”.

Didi-Huberman questiona o fatalismo desesperado de Pasolini. Para ele, trata-se de “repensar nosso próprio ‘princípio esperança’ através do modo como o Outrora encontra o Agora para formar um clarão, um brilho, umas constelação onde se libera alguma forma de para nosso próprio Futuro”. Esse encontro de tempos é decisivo, uma colisão entre “um presente ativo com seu passado reminiscente”. Segundo o filósofo, deve-se a Walter Benjamin “essa colocação do problema do tempo histórico em geral. Mas cabe inicialmente a Aby Warburg ter mostrado não apenas o papel constitutivo das sobrevivências na própria dinâmica da imaginação ocidental, mas ainda as funções políticas de que os agenciamentos memorialísticos se revelam portadores”.

O contraponto será buscado na obra do filósofo italiano Giorgio Agamben – “um dos filósofos mais importantes, dos mais inquietantes de nosso tempo” –, que apresenta a mesma configuração problemática que Pasolini: “Por um lado, admirável visão dialética: capacidade de reconhecer no mínimo vaga-lume uma resistência, uma luz para todo o pensamento. Por outro, desespero não dialético: incapacidade em buscar novos vaga-lumes, uma vez que que se perderam de vista os primeiros – os ‘vaga-lumes da juventude’”. Agamben foi um grande leitor de Benjamin e foi, como diz Didi-Huberman, “depois de Edgar Wind, um dos muito raros filósofos a medir todo o alcance teórico da antropologia das sobrevivências elaborada por Aby Warburg”. Contemporâneo de Pasolini, Agamben retoma o paradigma de “dar-se os meios de ver aparecerem os vaga-lumes no espaço de superexposição, feroz, demasiado luminoso, de nossa história presente”, tarefa que requer, para Agamben, a coragem da virtude política e, ao mesmo tempo, a poesia, “que é a arte de fraturar a linguagem, de quebrar as aparências, de desunir a unidade do tempo”. De Pasolini a Agamben, reconhece-se um mesmo “gestus geral de seus respectivos pensamentos”. Ambos evocam o tempo presente como uma situação de apocalipse latente que, em Agamben, ressoa com força algumas ideias de Walter Benjamin, como o enfraquecimento da experiência: “Quando Pasolini anuncia que ‘não existem mais seres humanos’ ou quando Giorgio Agamben, de seu lado, anuncia que o homem contemporâneo se encontra ‘despossuído de sua experiência’, nós nos encontramos, decididamente, colocados sob a luz ofuscante de um espaço e de um tempo apocalípticos. Apocalipse: é uma figura maior da tradição judaico-cristã. Ela seria a sobrevivência que absorve todas as outras em sua claridade devoradora: a grande sobrevivência ‘sacral’ – fim dos tempos e tempo do Juízo Final – quando todas as outras terão sido aniquiladas”.

Porém, uma “política das sobrevivências” dispensa o fim dos tempos, adverte Didi-Huberman, e há, portanto, “uma ambiguidade, tanto no plano do método quanto no plano político, em passar, como Agamben o faz com frequência, de uma reflexão antropológica para a potência das sobrevivência a uma assunção filosófica do poder das tradições”. Segundo ele, “imagem” não é “horizonte” e Agamben associa constantemente o regime da imagem e o do horizonte: “A imagem nos oferece algo próximo a lampejos (lucciole), o horizonte nos promete a grande e longínqua luz (luce). […] A imagem se caracteriza por sua intermitência, sua fragilidade, seu intervalo de aparições, de desaparecimentos, de reaparições e de redesaparecimentos incessantes. É, então, uma coisa bem diferente pensar a saída messiânica como imagem (diante da qual não se poderá durante muito tempo mais acalentar ilusões, uma vez que ela desaparecerá logo) ou como horizonte (que apela para uma crença unilateral, orientada, apoiada no pensamento de um além permanente, na espera de seu futuro sempre). A imagem é pouca coisa: resto ou fissura (fêlure). Um acidente do tempo que a torna momentaneamente visível ou legível. Enquanto o horizonte nos promete o todo, constantemente oculto atrás de sua grande ‘linha de fuga’”. Agamben, argumentando com Guy Debord, reconhece na opinião pública de hoje o que a submissão das multidões foi para o totalitarismo; para o italiano, o que está em questão no problema da função política das mídias nas sociedades contemporâneas “não é nada mais que uma nova e espantosa concentração, multiplicação e disseminação da função da glória como centro do sistema político. O que ficava outrora confinado nas esferas da liturgia e do cerimonial se concentra nas mídias e, ao mesmo tempo, através delas se difunde e se introduz em todos os momentos e em todos os meios, tanto públicos como privados, da sociedade”. As imagens assumiriam a função da “glória”, subordinada à máquina do “reino”. Porém, sua análise acaba por desdialetizar, segundo Didi-Huberman, tanto a noção de “imagens”, como a noção dos “povos”. “A imagem não é mais, nesse caso, uma alternativa ao horizonte, a lucciola como alternativa à luce. Ela não parece mais que uma pura função do poder, incapaz do menor contrapoder, da menor inssurreição, da menor contraglória”. A imagem seria o lampejo que transpõe a imobilidade de todo horizonte.

Conforme analisa o professor Karl Erik Schøllhammer, em resenha do livro publicada no jornal O Globo: “Sem nunca perder a elegância e a explícita simpatia pessoal Didi-Huberman denuncia a sobrevida dessa figura apocalíptica no pensamento contemporâneo de Agamben. Através de uma fina leitura, o livro denuncia o papel de uma certa ‘teologia política’, advinda das leituras que Agamben faz de Martin Heidegger e de Carl Schmitt, em sua compreensão da questão da experiência histórica em Benjamin. O que em Benjamin é questão ligada à compreensão da imagem dialética torna-se em Agamben uma escatologia totalitária e polarizada que induz o movimento pendular entre os extremos de Destruição e Redenção. Assim, o que em Benjamin era a imagem da perda de experiência torna-se em Agambem o horizonte de sua total destruição. Entretanto, é também o ‘intestemunhavel’ da experiência dos ‘muçulmanos’ dos campos de concentração e de ‘sua impossibilidade de ver’ que em sequência se transformam na condição sublime do ‘testemunho integral’ e da ‘imagem absoluta'”. 

Didi-Huberman assim define a imagem: “aparição única, preciosa, é, apesar de tudo, muito pouca coisa, coisa que queima, coisa que cai. Tal é a ‘bola de fogo’ evocada por Walter Benjamin [“A imagem dialética é uma bola de fogo que transpõe todo o horizonte ao passado, diz, em sua reflexão sobre a história e a política]: ela apenas ‘transpõe todo o horizonte’ para cair sobre nós, nos atingir (échoir). Ela raramente se ergue em direção ao céu imóvel das ideias eternas: em geral, ela desce, declina, se precipita e se danifica sobre a nossa terra, em algum lugar diante ou atrás do horizonte. Como um vaga-lume, ela acaba por desaparecer de nossa vista e ir para outro lugar onde será, talvez, percebida por outra pessoa, em outro lugar, lá onde sua sobrevivência poderá ser observada ainda. Se, de acordo com a hipótese que tentamos construir, a partir de Warburg e Benjamin, a imagem é um operador temporal de sobrevivências – portadora, a esse título, de uma potência política relativa a nosso passado como à nossa ‘atualidade integral’, logo, a nosso futuro -, é preciso então dedicar-se a melhor compreender seu movimento de queda em nossa direção, essa queda ou esse ‘declínio’, até mesmo essa declinação, que não é, por mais que Pasolini o tenha temido em 1975, seja o que for que pensa Agamben hoje, desaparição”.

A partir dessa hipótese, da imagem como operador de sobrevivências, Didi-Huberman faz uma reformulação positiva do vaga-lume e utiliza a própria filosofia benjaminiana, o núcleo indestrutível da experiência histórica, para rebater o pessimismo dos dois autores analisados. Segundo ele, quando Benjamin “nos diz que ‘a arte da narrativa tende a se perder’, ele expressa ao mesmo tempo um horizonte de ‘fim’ (Ende) e um movimento sem fim (neigen: pender/debruçar-se, inclinar, abaixar) que evoca não a própria coisa como desaparecida, mas ‘em vias de desaparecer”. A experiência passada pelo narrador “caminha em direção a seu fim”, mas esse horizonte não é alcançado. Trata-se da “própria temporalidade daquilo que, hoje, entre nós, na extrema precariedade, sobrevive e se declina sob novas formas em seu próprio declínio”, como diz Didi-Huberman. Benjamin, para ele, “soube ‘organizar seu pessimismo’ com a graça dos vaga-lumes, buscando, por exemplo, entre o teatro épico de Bertold Brecht e a deriva urbana dos poetas surrealistas, entre a Biblioteca Nacional e a Passage des panorames, esse ‘espaço de imagens’ capaz de contradizer a polícia – as terríveis restrições – de sua vida. O valor da experiência havia caído, mas Benjamin respondeu a isso com imagens do pensamento e com experiências de imagem”.

Para produzir o lampejo e a esperança intermitentes dos vaga-lumes, a organização do pessimismo faz surgirem palavras “quando as palavras parecem prisioneiras de uma situação sem saída”. A elucidação da linguagem torna-se uma réplica das “palavras-vaga-lumes”.

Para Dudi-Huberman, não se pode dizer que a experiência tenha sido destruída. “Ao contrário, faz-se necessário – e pouco importa a potência do reino e de sua glória, pouco importa a eficácia universal da ‘sociedade do espetáculo’ -, afirmar que a experiência é indestrutível, mesmo que se encontre reduzida às sobrevivências e às clandestinidades de simples lampejos da noite”. O paradoxo do homem ser indestrutível e, no entanto, poder ser destruído, explica-se pela noção de sobrevivência. “Sobrevivência dos signos ou das imagens, quando a sobrevivência dos próprios protagonistas se encontra comprometida”.

Para esclarecê-lo, o filósofo resgata a ressurgência de Hannah Arendt, para quem seria preciso “reconhecer a essencial vitalidade e das sobrevivências e da memória em geral quando ela encontra as formas justas de sua transmissão. Nessa combinação geométrica do retraimento e do não fechamento, depreender-se-ia então o que Arendt chama magnificamente uma força diagonal que difere das duas forças – a dos passado e a do futuro – das quais, no entanto, resulta”. A força diagonal de Arendt é atualizada no filme de Laura Waddington, Border, filmado no campo de Sangatte em 2002. Conta Didi-Huberman que ela filmava “os refugiados afegãos ou iraquianos que tentavam desesperadamente escapar da polícia e atravessar o túnel sob o canal da mancha a fim de chegar até a Inglaterra. Ela pôde, disso tudo, extrair apenas imagens vaga-lumes: imagens no limiar do desaparecimento, sempre movidas pela urgência da fuga, sempre próximas daqueles que, para realizar seu projeto, se escondiam na noite e tentavam o impossível, correndo risco de vida”.

São imagens para organizar o pessimismo. “Imagens para protestar contra a glória do reino e seus feixes de luz crua. Os vaga-lumes desapareceram? Certamente não”.

 

 

 

 

SOBREVIVÊNCIA DOS VAGA-LUMES

Autor: Georges Didi-Huberman
Editora: UFMG
Preço: R$ 27,20 (160 págs.)

 

 

 

 

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