Literatura

O retorno

27 junho, 2016 | Por Isabela Gaglianone

Junho e Julho de 1975, chegada a Lisboa dos retornados das antigas colônias na África [fotografia de Alfredo Cunha]

O romance O retorno é um relato emocionante, da premiada escritora Dulce Maria Cardoso, sobre um aspecto particular da descolonização portuguesa na África, em 1975: a dramática situação de cerca de meio milhão de colonos “retornados” a Portugal.

O protagonista é o adolescente Rui, que com sua família retorna à antiga metrópole, para recomeçarem a vida, a partir de uma situação financeira precária e limitada. O rico cenário da narrativa, o conturbado período de retorno de mais de meio milhão de cidadãos portugueses, durante a descolonização dos antigos territórios ultramarinos na África, faz, deste, um romance extremamente forte e, enquanto referência histórica, incontornável.

Publicado originalmente em 2011, o livro não pára de ser reeditado em Portugal – já está em sua nona edição. A autora, entrevistada pelo caderno Ipsilon, do jornal português Público, diz ter-se surpreendido com tamanho estrondo editorial: “Porque é que há tão pouco material escrito sobre estes retornados? Foram meio milhão de pessoas, com os seus descendentes todos, uma coisa que foi certamente traumática para a maior parte. Meio milhão é muita gente para um país desta dimensão. Toda a gente lidou com retornados. Quanto mais não seja, ouviu falar. Achei que era um tema que não tinha interesse nenhum, já que ninguém tratava dele”. Segundo a autora, “os retornados tinham sido muito mal recebidos [em Portugal]. Ser retornado era um estigma”. Sobre os retornados, analisa: “Essas pessoas perderam uma coisa, um modo de viver, querem é tentar resgatar esse modo de viver. Eu não quero resgatar esse modo de vida, felizmente ou infelizmente já sei que é impossível o resgate. O colonialismo não devia ter existido, nada daquilo devia ter acontecido. Mas essas pessoas continuam a querer aquilo. Acham que era possível ter-se resolvido de outra maneira. […] Aquela era a realidade onde foram mais felizes e mais prósperos. Investiram muito. Também foram vítimas. Quando Salazar disse ‘para Angola, rapidamente e em força’, estas pessoas foram e trabalharam muito, construíram muito. Sentiram-se muito lesadas depois. Compreendo a raiva, compreendo o desespero, compreendo isso tudo. Por isso é que foi tão difícil escrever O Retorno. Ainda por cima sendo eu filha dessas pessoas, que perderam tudo de um momento para o outro”.

Na mesma entrevista, Dulce Maria Cardoso conta que optou por utilizar como matéria-prima apenas suas memórias, mas que, em dado momento da criação do romance procurou testemunhos; fartou-se da ideia de usá-los pois todos diziam, ela conta, “quase todos a mesma coisa: Que a vida era maravilhosa lá. Falam ainda como se estivessem lá. Sem perceber que estava tudo errado desde o início. Conversas absolutamente colonialistas, racistas”. A nostalgia é em parte pela dificuldade de integração social, em parte pela dificuldade econômica e profissional; Cardoso conta: “Houve retornados que se integraram muito silenciosamente e sem problema algum. O estigma não era tanto ser retornado. O estigma era a pobreza. Os que vieram sem nada. Havia em Cascais uma família de retornados que tinha uma grande vivenda no bairro do Rosário, que faziam festas ao fim-de-semana com merengues. E eram exóticos. Eram maravilhosos. Porquê? Porque tinham bastante dinheiro. Faziam festas enormes. Eram altos, morenos. As raparigas andavam sempre de fato de banho a passear-se ao pé da piscina. Fumavam. Toda a gente queria ser amiga daqueles retornados. Os retornados de que eu falo e o estigma associado são os retornados dos hotéis, das filas da Caritas, das filas da Cruz Vermelha. Os retornados foram meio milhão ou mais, mas foram realidades diversas”.

Ao longo do romance, no discurso de Rui, existe uma constante perigosa dose de inconformismo, que ameaça transformá-lo um ser inadaptado, que paulatinamente transforma-se em um implacável instinto de sobrevivência. O inconformismo, fruto do exílio forçado, reflete o sentimento de impotência do narrador, reforçado pela fragilidade física e psíquica de sua mãe, agravada com o desenraizamento e a perda de todos os bens. Através das impressões de Rui na cinzenta capital portuguesa, vê-se o violento choque cultural também frente à forma de vida metropolitana, marcada por austeridade, repressão e pobreza – em contraste gritante com o colorido pôr-do-sol nas colônias, às lagostas, às roupas alegres das mulheres. Segundo Manoela Sawitzki, em resenha publicada no jornal O Estado de São Paulo, “na metrópole, Rui não encontra ‘cerejas grandes e luzidias que as raparigas põem nas orelhas a fazer de brincos’, mas um limbo obscuro pelo qual se embrenha. Tal percurso pode ser experimentado pelo leitor não apenas a partir de enredo, mas sobretudo pela potência extraordinária da linguagem desse romance”. A voz do narrador é inquietante e vívida.

“Tenho quinze anos. O meu pai foi levado, de mãos presas atrás das costas, por um grupo de homens armados. Nada pude. Parto amanhã com a minha irmã e a minha mãe, para um país que desconheço, onde teimam afirmar que retorno. Nunca mais volto a esta terra quente, que é a minha. Deixamos cá tudo. Até a Pirata. Não sei se, se apercebeu que era para sempre que partíamos. Correu tanto atrás de nós…”

Alleid Ribeiro Machado, pós-doutora em Literatura Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em artigo, publicado na revista Nau literária, da UFRGS, contextualiza: “Ainda sob o influxo do salazarismo e vivendo sob a égide de um país economicamente antiquado em relação ao resto da Europa, Portugal será marcado por dois grandes processos imperativos para sua história contemporânea. Em um plano, a intensa emigração portuguesa para França, que se tratava de um deslocamento, sobretudo, marcado por uma profunda descrença nas capacidades de desenvolvimento de Portugal. Joel Serrão é taxativo em advertir que, entre 1958 e 1974, cerca de um milhão de portugueses instalaram-se em França, à procura de oportunidades de trabalho […]. Em outro plano, em 1961, revive-se o processo de perda territorial que seria absolutamente dispendioso a uma nação colonialista por excelência: a perda das colônias portugueses em África (nomeadamente Angola e Moçambique) e, para além, as possessões em Guiné (atual Guiné-Bissau), Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, que se manteve até 1974-75. Portugal, sustentando a presença militar e civil em todos esses territórios por ele colonizados, em meio à conjuntura de guerras e revoltas, gradativamente, vai deixando de garantir os dividendos econômicos que lhe eram suficientes para prosseguir em seu projeto imperialista. Desencadeia-se, assim, a Guerra Colonial, que só o 25 de abril de 1974 deverá pôr termo, ao reconhecer a independência de todos os seus territórios em África”.

Segundo Alleid Machado, a literatura produzida em Portugal, “a partir da década de 70, principalmente no âmbito da prosa, procurou dialogar com as questões pertinentes ao cenário histórico-político, como as que se referiam em larga escala à revolução e à Guerra Colonial”. Nas décadas seguintes, o romance português tem como tendência a revisitação africana, que examina a identidade de Portugal, colonial e pós-imperial. Nas palavras de Machado: “Implicado ao resgate do passado recente português, virá a lume a necessidade de pôr em causa as experiências dos colonos, dos que perderam com o fim do império. Dos retornados e sua permanente tensão de pertencimento e não-pertencimento, da conflitante identidade de ser colono e português de segunda classe”.

 

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“O sol pode cegar-te, mas não te importes, se lhe voltas as costas a tua sombra esconde o que procuras.”

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O RETORNO

Autor: Dulce Maria Cardoso
Editora: Tinta-da-China
Preço : R$ 31,20 (272 págs.)

 

 

 

 

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