Literatura

O enigma da obra

30 junho, 2016 | Por Isabela Gaglianone

desenho de Robert Desnos

O agudo ensaio Raymond Roussel. A chave unificada, do argentino César Aira, ganhou no Brasil uma edição muito especial.

No ensaio, Aira afirma que a figura de Roussel para estar fadada aos erros interpretativos de sua própria legião de admiradores e estudiosos:

“Explicitar mais uma vez o famoso procedimento de Roussel é tempo perdido; por mais clara que seja a explicação, sempre ficará um mal-entendido. Roussel é a torre de Babel dos seus intérpretes e estudiosos. De algum modo, ele fez com que todos falem idiomas diferentes. Todo artigo que se escreve sobre ele poderia se intitular: Os erros mais frequentes que se cometem ao falar de Roussel. O preço que se paga por acreditar tê-lo entendido é acreditar que o outro, qualquer outro, o entendeu mal”.

Os rousselianos, diz Aira, sabem tudo sobre Roussel e sua obra, “há demasiada erudição construída ao seu redor, e lemos tudo, incorporamos tudo ao corpus, porque tudo é pertinente, dada a qualidade de Mundo que têm Roussel e sua obra”.

Explicá-lo, ainda que incorra em inevitável erro, é porém, “uma condição inerente à obra, que exige a multiplicação do único no seio do mal-entendido”.

Dada essa tensão interpretativa, de toda forma não vale a pena deter-se na descrição do procedimento de Roussel, diz Aira, pois o próprio autor o fez em seu livro-testamento, Como escrevi alguns de meus livros. Nas palavras do argentino: “[…] é um erro dos estudiosos de Roussel (e esse sim, o mais frequente) se encarniçar na descrição do procedimento, e praticamente limitar a essa descrição a interpretação e apreciação da sua obra. E, no entanto… Aqui é onde se demonstra que os erros cometidos com Roussel têm a curiosa propriedade de deixar de ser erros. Porque há um ponto em que a diferença entre geral e particular se desvanece: o único escritor que usou um procedimento para gerar histórias foi Raymond Roussel e o único procedimento que se usou nunca foi o seu. Daí que o erro de confundir procedimento geral com procedimento particular se transforme no erro de diferenciá-los. O procedimento serve somente para gerar o argumento. Logo, uma vez escrita a história, o procedimento desaparece, fica oculto, é tão parte da história quanto o fato de o autor ter usado tinta azul ou tinta preta para escrever, ou qualquer outro dado desprovido da menor importância para entender ou julgar o texto, ou para desfrutá-lo”. Mesmo Foucault teria sido um desses estudiosos equivocados, ao dizer, resume Aira, “que aquele que não souber francês e, portanto, não captar os jogos de palavras subjacentes às histórias, perderá algo na leitura de Roussel”. O erro que desta interpretação, em sua visão, reside no fato de que a ferramenta da criação rousseliana concerne apenas ao autor, não ao leitor, é instrumento de trabalho do escritor; pelo contrário, portanto, “traduzir Roussel não só é possível mas conveniente, e lê-lo em tradução a outra língua (pelo menos nas suas obras em prosa, quer dizer, as feitas segundo o procedimento) é o único jeito de apreciá-lo plenamente, visto que ao afastá-lo do francês se consuma o ocultamento da gênese”.

Em seu comentário, César Aira prossegue o interessante argumento: “Um biógrafo e estudioso, Mark Ford, diz das Impressões da África: ‘Cada episódio põe em prática um enigma linguístico’, e mais adiante fala das ‘charadas narrativas que o procedimento gera’. É o mesmo erro que cometem quase todos os rousselianos. Essas charadas são resolvidas pelo autor, não pelo leitor. Roussel as resolveu, e a resolução deu por resultado seus romances, oferecidos ao leitor como pura leitura, como leitura de romances de Júlio Verne, nem mais nem menos. Esta foi a leitura que se fez dos seus livros enquanto ele vivia. A revelação do mecanismo produtivo, do procedimento, ele a deixou escrita para que se publicasse depois da sua morte. Antes disso, ninguém sabia da existência do procedimento, e se acreditava de boa fé que essas fantásticas invenções saíam da sua cabeça. E saíam realmente, porque o procedimento é apenas uma ferramenta descartável, que só funcionou nas mãos de Roussel”.

Uma pergunta pertinente é, seguindo esta movimentação argumentativa, por que Roussel teria revelado o segredo de seu procedimento? Aira sugere: “Teria suspeitado que era a sua melhor criação, a criação das criações, e que era a única coisa que poderia lhe dar a glória que desejava, e que talvez tivesse começado a suspeitar que não lhe dariam seus livros? Fez a revelação no livro Como escrevi alguns de meus livros, preparado por ele para edição póstuma; é uma recompilação de textos juvenis, inéditos, esboços de romance. Precedido pela revelação propriamente dita, que é o único texto normal que Roussel escreveu, sua busca do tempo perdido, um relato psicológico, biográfico, alheio a qualquer procedimento ou método. Talvez a explicação dessa manobra póstuma seja simplesmente que existia um segredo, e o ativo de um segredo é a sua revelação. E nem todoescritor, ou nenhum escritor, tem um segredo que possa ser revelado limpamente, como o seu, em vinte páginas. Um segredo que, apesar de intuído ou suspeitado, tinha se mantido secreto para todo mundo”.

Outra reflexão interessante do ensaio detém-se o uso da palavra “alguns”: o procedimento foi aplicado apenas em alguns de seus livros. César Aira pergunta: “O que une as duas metades da produção de Roussel, as feitas com e sem o procedimento? Porque a segunda não está marcada só pela ausência do procedimento: é tão original e estranha quanto a outra, ou ainda mais. O problema não se colocaria se fossem livros convencionais, dos que pudesse se pensar que foram férias do árduo trabalho dos romances. Como os astrofísicos que procuram a explicação geral que conjugue todas as explicações parciais dos diferentes fenômenos explicados do Universo, assim os rousselianos procuram a Chave Unificada de Roussel”. E eis que ilumina-se o título do ensaio, a chave unificada, que Aira acredita ter encontrado: “o que tem em comum tudo o que escreveu, do princípio ao fim da sua vida, é, simplesmente, a ocupação do tempo. Escreveu para preencher de maneira sólida e constante um tempo vital que de outra forma teria ficado vazio. Para isso teve que inventar modos de escrever, marcos, formatos, que ocupassem a maior quantidade possível de tempo. O que têm em comum todos seus escritos? A semelhança com a resolução de palavras cruzadas: a fusão de um máximo de significado com um mínimo de sentido. O que se traduz, precisamente, na ocupação do tempo”.

Tudo o que Roussel escreveu, analisa, “compartilha esse ar de quebra-cabeça de montagem paciente e engenhosa; e a isso se agrega sua gratuidade manifesta, a sua falta de qualquer mensagem, ideológica ou instrutiva”. Sua literatura traduz o dândi que era e, segundo Aira, isso não diminui em nada que Roussel seja um grande escritor. “Pelo contrário. Nenhum elogio é excessivo ao escritor que escreveu só para encher o tempo, e fez dessa ocupação a única matéria de sua obra”.

 

Raymond Roussel (1877-1933) foi um autor que fascinou os surrealistas, os nouveaux romanciers e pensadores como Michel Foucault e Gilles Deleuze e que, segundo César Aira, através de seu procedimento, deixou, pela primeira – quiçá única – vez, a literatura nua.

 

Originalmente publicado na revista Carta [n° 2, Madri: primavera-verão, 2011], o ensaio foi traduzido para o português Byron Vélez Escallón. Uma primeira edição da tradução foi publicada no Dossiê Roussel, edição especial da revista Sopro [nº 98, Desterro: Cultura e Barbárie, novembro de 2013].

O projeto gráfico da presente edição, e mesmo a escolha editorial, são marcas da Armazém LETËRSI, selo da editora Cultura e Barbárie Editora. Os livros deste selo são produzidos um a um, do projeto gráfico à costura final, de modo a tornarem-se objetos únicos.

A Cultura e Barbárie é a editora que mais tem se dedicado à publicação de textos de Raymond Roussel, bem como comentários a respeito de sua tão enigmática obra. São já seis edições – além do ensaio de César Aira, o romance Locus Solus, também Como escrevi alguns dos meus livros, Piparote, Bertha, menina-flor e Novas descobertas de Adinolfa.

 

 

 

RAYMOND ROUSSEL. A CHAVE UNIFICADA

Autor: César Aira
Editora: Cultura e Barbárie – Armazém LETËRSI
Preço: R$ 25,00 (28 págs.)

[100 exemplares numerados]

 

 

 

 

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