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A condição humana e a banalidade da violência

30 setembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Que quem se cala quanto me calei, não poderá morrer sem dizer tudo”.

Ilustração de Günter Grass

A publicação de uma obra póstuma de um grande escritor como Saramago é um presente inestimável aos seus tantos leitores órfãos. É também a possibilidade de ver em germe sua criação literária, torrencial e precisa.

Em junho de 2010, quando faleceu, ele deixou em aberto a narrativa da história de Artur Paz Semedo, um homem simples, empregado de uma fábrica de armas, as Produções Belona S.A – Belona é o nome da deusa romana da guerra. Funcionário exemplar, que, se por um lado ambicionava crescer profissionalmente na empresa e dirigir uma área de armamentos pesados, por outro lado encontra conflitos morais, pois fora casado com uma pacifista radical, que dele divorciara-se por não concordar com o ofício armamentista.

O lançamento de Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas – cujo título alude a dois versos da tragicomédia Exortação da guerra, de Gil Vicente – traz a lume uma obra, ainda que inconclusa, forte e bela, como comum ao grande escritor que foi Saramago. Um romance, que com seus três capítulos iniciais escritos e terminados, já é notavelmente estruturado, condutor final de uma profunda reflexão sobre a condição humana e a banalidade da violência.

A viúva de Saramago, Pilar del Río, disse, sobre o lançamento: “Com Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas acaba-se a obra de José Saramago, o homem que não queria morrer sem ter dito tudo. Talvez não seja ousadia recordar que os seus dois últimos livros, Caim e Alabardas, tratam de dois assuntos centrais na sua obra, abordados de forma explícita, para não deixar sombra de dúvida: a recusa do poder que as religiões exercem sobre as pessoas e sociedades para as anular através do medo e da proibição, o recurso à violência, tão usado em diferentes civilizações, como se não houvesse outro meio para solucionar conflitos. Em Caim, o artifício do Antigo Testamento, do fratricídio inicial ao dilúvio universal, que levará à morte todos os habitantes da terra por não haver cumprido os desígnios de Deus, em Alabardas, onde um trabalhador descobrirá, pela força das circunstâncias, que a sua laboriosidade permite que uma engrenagem odiosa continue em movimento e a marcar os mapas e as dominações. No fundo, a reflexão sobre o poder e a violência são um mesmo eixo. E sobre ele gira a obra de José Saramago”. Segundo ela, as personagens que povoam o livro têm discursos e contradições elaboradas a partir do convencimento de que não ver é mais rentável do que ver – ou de que a indiferença é mais cômoda que a ação – e da necessidade do conhecimento e da intervenção para não ser cúmplice com o despropósito da violência. José Saramago escreveu um romance de personagens e situações que se confrontam com a realidade, tantas vezes mais obstinada que as pessoas, por isso não ver faz-se tão dramático”.

Ainda que inconcluso, o romance já tinha definidas suas palavras finais. Em anotações de Saramago, datadas de 2009 há o seguinte apontamento: “Creio que poderemos vir a ter livro. O primeiro capítulo, refundido, não reescrito, saiu bem, apontando já algumas vias para a tal história ‘humana’. Os caracteres de Felícia e do marido aparecem bastante definidos. O livro terminará com um sonoro ‘Vai à merda’, proferido por ela. Um remate exemplar”.

Nos seus cadernos, ainda em 2009, o autor comentava que o romance refletia velhas inquietações suas: “porquê nunca houve uma greve numa fábrica de armamento” ou o “que se passa para que a classe operária tão capaz de lutas não tenha conseguido entrar nos portões duma fábrica de armas?”. Foi o que “deu pé a uma ideia complementar” que então possibilitou-lhe dar início ao “tratamento ficcional do tema”. Nos cadernos, ele também aponta que “o gancho para arrancar com a história” era uma bomba que não chegou a explodir na Guerra Civil de Espanha, aludindo a uma referência que André Malraux faz no seu L’Espoir a operários de Milão fuzilados pela sabotagem a obuses.

A edição brasileira traz ainda ensaios de Fernando Gómez Aguilera, Roberto Saviano e Luiz Eduardo Soares, cuja análise, que esclarece e reverencia, presta homenagem a Saramago.

A ilustração da capa é de Günter Grass, romancista, dramaturgo e artista plástico alemão, também vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em 1999, conhecido como um dos principais representantes do teatro do absurdo da Alemanha.

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O sentir humano é uma espécie de caleidoscópio instável.

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ALABARDAS ALABARDAS ESPINGARDAS ESPINGARDAS

Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 19,25 (112 págs.)

 

 

 

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