Literatura

Olhar acuado, garganta seca, urgia achar uma saída

29 setembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Achara um  de seus triunfos na vida da cidade, nos primeiros dias de adaptação, o ter conseguido orientar-se sozinho, com os nomes de bairros e números de linhas dos circulares e, alegre, com algum dinheiro para gastar, percorrer muitos trajetos, retornando sempre ao terminal no centro, feito fosse sempre necessário isso—os círculos bem descritos, as referências precisas—para que, aos poucos fosse se apossando do novo território”.

ilustração de Manu Maltez

O estranho no corredor, de Chico Lopes, é um livro instigante, narrado por uma consciência atormentada que confere ao texto uma atmosfera densa. A narrativa desperta reflexões profundas sobre o aprisionamento que é de ordem interna.

Conta a história de um homem solitário, cujo desejo é tornar-se um escritor, mantém um estilo de vida discreto, sobrevivendo com precariedade como professor em uma pequena escola de inglês. O protagonista divide parte de seu tempo livre com o diário no qual resgata e anota memórias de infância, parte com um círculo de conhecidos. Eis que com recorrência passa a aparecer-lhe uma figura masculina ameaçadora, que o persegue, ritmando o tempo da narrativa com seus passos, de “uma musicalidade escura”.

O livro ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura em 2012, na categoria de Autor estreante. 

Segundo o jornalista Adriano Koehler, em artigo publicado no jornal Rascunho, Chico Lopes cria uma prisão sem escapatória. Nas suas palavras: “A vida é uma prisão, e não há fuga possível. E se existe algum aspecto de nós mesmos que preferiríamos ignorar, tanto pior. Esse aspecto nos perseguirá até que o aceitemos, ou permanecerá atormentando a nossa vida até o fim”. Visão sombria, porém lúcida. Koehler aponta que na novela, “acompanhamos um fragmento da vida do personagem central, um homem solitário que abandonou a pequena cidade interiorana de V. para tentar a sorte na cidade grande. Ao longo do livro, descobrimos que ele era considerado um intelectual na sua cidade, que era criado e mimado por sua tia Ema, que na cidade grande ele é um professor de inglês mal remunerado e que, principalmente, praticamente não tem relações com pessoa nenhuma. Esse homem vive em uma pensão cuja proprietária, dona Graça, parece uma velhinha cópia de sua tia, alguém também solitário que anseia por companhia. Ele é uma pessoa tímida, desconfiada e com vários traumas de criação”. Conforme sua análise, Chico Lopes “adota uma estratégia narrativa muito boa. Não há espaço para longas digressões filosóficas, ainda que o personagem seja atormentado, principalmente pela sua cabeça”. Além disso, na crítica o jornalista elogia também “o ritmo imposto por Lopes à sua narrativa. Já no começo ficamos presos ao personagem e queremos que ele saia de sua prisão, queremos acompanhar junto a ele sua libertação. E a partir desse momento, navegamos rapidamente para a conclusão da novela, sem morosidade nem a impressão de que etapas foram puladas”.

De acordo com o crítico Alfredo Monte, em artigo escrito especialmente para seu blog, “Monte de leituras”: “Assim como o seu protagonista (não nomeado) arriscou-se a sair do interior para viver na capital”, Chico Lopes“após três fortes, densos e sobretudo coesos volumes de contos (Nó de sombrasDobras da noite; Hóspedes do vento) arriscou-se num território mais amplo: a narrativa longa, mais espraiada, embora ainda dentro de certos limites, pois ele exercitou suas forças naquela forma que chamamos de novela e que sempre é caracterizada algo confusamente. Para nossos objetivos imediatos neste texto, basta considerá-la—confortavelmente, sem maiores ilações quanto à imprecisão da fórmula—como a forma intermediária entre o conto e o romance”. Segundo Monte, há um tema “obsessivamente trabalhado nas coletâneas de contos que precederam a novela”, a questão da espectralização da virilidade, tornada esquálida e bruxuleante no protagonista, e uma espécie de entidade de pesadelo expressionista nos demais (“Todos sempre me pareciam maiores, mais desenvoltos, mais capazes de fazer coisas, fazê-las sem remorso, fazê-las com uma eficiência mortal, o que era, afinal, o seu dever de virilidade. Se eu me atrevesse, descobririam que eu não tinha jeito que eu era um impostor, que minhas imitações do tom, do porte, das atitudes do clube, não eram bem feitas, que eu não podia participar de seu código. Eu não tinha convicção necessária, eu não conseguia”) ganha um sombreamento mais rico e inquietante ao ser sobreposta ao confronto com os desafios da capital, mas acho que ganha sua dimensão maior na volta ao interior, quando então—como os personagens dostoievskianos—nosso herói passar a viver quase num “estado de vexame”. A análise de Alfredo Monte, cuja leitura recomendamos, situa o livro na literatura brasileira tomada de maneira ampla. O crítico conclui: “[…] qualquer um que conheça a realidade cotidiana brasileira, que ande pelas ruas, e veja esses peões com visual moderninho, mas comportamento retrógrado, jovens que aderem a velhos cafajestismos e comportamentos atávicos, mesmo “conectados com o mundo”, e não precisa nem ser nos grotões e igarapés deste nosso país (para utilizar algumas expressões favoritas de uma escritora que nada entende da realidade nacional ou de qualquer outra realidade que não seja a da retórica, Nélida Piñon), aqui mesmo na Baixada Santista onde moro, encontramos esses miasmas camuflados pelos signos e adereços ostensivos do moderninho. […] os escritores brasileiros precisam ainda dar conta do que permaneceu inculcado, atávico e deformante em nossa formação nacional. E isso O estranho no corredor realiza esplendidamente.

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Trecho:

“Incomodava-o agora a lembrança da noite em que—quantos anos tinha?—tivera a certeza de que alguém andava de cá para lá, inquieto, no corredor que ligava quarto e sala. O homem, alguém que de modo algum poderia ou deveria estar ali, acabaria por bater à porta, pedir para entrar—ele não querendo, haveria arrombamento. Encolhia-se por completo na cama, à espera do que de pior fosse decidido, suando. Nada. Os passos, no entanto, continuavam. Tiravam-lhe o sono. Eram pesados, bem definidos—inequivocamente masculinos—e impacientes.

Quando decidiu, no meio da madrugada, levantar e abrir a porta, acender a luz do corredor com quanta coragem desesperada fosse possível, já nada mais ouvia. Estava vazio. Não conseguia crer que tivesse apenas sonhado. Precisava entender. Esperou a noite seguinte, outra e mais outra. Aprendeu a conhecer os passos, distingui-los com precisão infalível dos da tia (…) Os do estranho tinham uma qualidade singular, uma como que musicalidade escura. Havia uma identidade precisa ali, no seu visitante, mas como poderia sair dos cobertores que o embrulhavam e eram insuficientes para aplacar a sua tremedeira? Para decifrar o enigma, precisaria arremeter-se nos momentos mais duros, quando os sons do corredor eram totalmente nítidos e produzidos por alguém ou algo presente de modo inegável. Mas era nesses momentos que queria, que precisava morrer. Toda essa indecisão acabou, a presença desapareceu, a tia tinha trazido o padre e benzido a casa inteira (…) e ele nunca dissera a ninguém de suas cismas e terrores…”

[Fonte: Monte de leituras]

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O ESTRANHO NO CORREDOR

Autor: Chico Lopes
Editora: 34
Preço: R$ 22,40 (128 págs.)

 

 

 

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