matraca

Silêncio, beleza vulnerável

20 julho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Guignard

o nosso reino foi o primeiro livro publicado pelo português valter hugo mãe. Foi também o primeiro romance de sua tetralogia em letras minúsculas, composta por o remorso de baltazar serapião [2006], o apocalipse dos trabalhadores [2008] e a máquina de fazer espanhóis [2010].

Trata-se aqui da arrebatadora história de um menino de oito anos e sua vida numa pequena aldeia de pescadores portuguesa nos anos 1970, nos estertores do regime salazarista.

O próprio menino, Benjamin, é quem narra em primeira pessoa o texto, que descreve a sua busca para distinguir o bem e o mal. Pois, em meio à repressão da Igreja e aos trágicos acontecimentos a seu redor, o pequeno protagonista é tido ora como santo, ora como demônio. 

O autor assim definiu o romance: “Uma interpelação à figura de Deus, uma espécie de encosto de Deus à parede, a ver se ele responde. O livro é todo à volta do que há e do que não há, e do que se pensa ou do que se quer que exista”. Quando venceu o Prêmio José Saramago de literatura, em 2007, hugo mãe  disse que o polêmico e magistral O Evangelho segundo Jesus Cristo provocara-lhe uma “crise de fé”. Segundo ele, o nosso reino “passa muito por essa realidade, pelo papel por vezes não benéfico da Igreja”.

O ciclo de romances que o nosso reino inicia retrata, com sua prosa poética, as idades da vida do homem – a infância, a juventude, a maturidade e a velhice.

Este livro corresponde à primeira idade. O reino desta criança é o lúdico das fantasias infantis que mesclam-se a loucuras e pesadelos adultos. Num cenário carregado de silêncios misteriosos, Benjamim é impelido por uma fome visceral de transcendência. Seu desejo de santidade despertará forças incompreensíveis, será objeto de veneração e de ira. Sua alma, afinal, torna-se motivo de disputa entre Deus e o Diabo numa terra de névoas.

Em sua luta interior, o medo é predominante: “um medo sutil de alguém que viesse e soltasse enfim a corda do arco onde me apoiava”. Sobre seu medo, o crítico José Castello comenta, em artigo publicado no caderno Verso e Prosa do jornal O Globo: “Vivemos sempre por um fio — a existência é precária e arbitrária —, mas só as crianças, em seu desamparo, ousam olhar isso de frente. Já a avó, desde cedo, via em Benjamin uma mistura perigosa de “timidez e incompletude”. Sério demais, pensava demais, sofria demais, ela rumina, esquecendo-se de que são próprios das crianças os nervos à flor da pele e a ausência de couraças”. Para Castello: “Aos poucos, Benjamin descobre os frágeis limites que separam a vida da morte. A revelação serve aos crentes como prova de sua santidade. Sabe Benjamin, melhor que qualquer adulto, que ele é apenas um humano — e quanto mais o mundo se esfarela e se desordena, mais ele se sente assim. Nem a acusação do padre Filipe, para quem o garoto está possuído pelo diabo, o afasta de seu caminho. Aos poucos, Benjamin aprende que as coisas mais belas são as mais vulneráveis”.

Naquela aldeia, o peso da religião e da superstição é o que define o modus operandi da vida de seus habitantes. Uma vida de constantes sacrifícios, vivida sob o temor do pecado e sob o peso do dever. Neste panorama, o desenvolvimento da história perpassa figuras alegóricas e torna-se impulso de profundo questionamento sobre a existência, a religião, os medos em sociedade.

 

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Trecho:

 

a louca suicida, pobre coitada, perdera todos os filhos num só dia.

o mais novo de manhã, a caminho da escola, tomado pelos lobos que desciam à aldeia naqueles anos antigos, ainda os muros não se tinham levantado para separar a vila dos lugares tão sombrios do arvoredo. o filho mais velho perdeu-o a seguir, entrado ele em casa com a notícia, saiu em berros para saber de seu pai, que acudisse ou a mãe morreria de desgosto. foi ao saber do pai, agarrado manhãzinha à leiteira, que se viu amaldiçoado. logo a leiteira, saia porca, se aproximou da sua boca aberta e lhe espetou um arpão no peito. o pai a falir de vergonha, o adultério como crime hediondo, e a leiteira sem escrúpulos a espetar-lhe o arpão também.

a minha avó é que contava que havia um terceiro filho, muito estranho e reservado, que avistou da janela do seu quarto o corpo do irmão na boca dos lobos, e, assim que a mãe o chamou em agonia, atirou-se janela abaixo para bater com a cabeça na pedra do tanque.

naquele dia a louca suicida enlouqueceu, não dizia coisa com coisa, e sabia-se na vila que algumas frases pareciam da bíblia, como profecias, mas era sem razão que a queriam ver. a minha avó contava que ela enlouquecera porque a morte entrara na cabeça dela em demasia e pelos outros. não morrera, mas os dela sim, e a morte estava a chama-la, que fosse, não devia esperar. quando a libertaram, um só segundo lá no quarto do doutor mateus, ela fugiu e, dizia quem viu, correu como um cavalo para o rochedo no rio e de lá saltou num grito de fúria. morreu de imediato, o seu corpo delicado abriu-se em dois com o choque da água. parecia ter-se feito pedra aquele rio tão límpido.

o doutor mateus, muito velho e rabugento, quando ia à missa detestava que lhe falassem da história. dizia-se que tivera tempo para dar um sentido às coisas que a louca dizia, que saberia coisas, que era como se soubesse coisas da bíblia que não estavam lá. eu achava que o doutor mateus era só um velho tonto a querer chamar a atenção, se soubesse de algo o homem mais triste do mundo já o teria levado. na missa, eu nunca ficava perto dele. mas dele, sem saber por quê, não suspeitava eu.

quando recuperei os sentidos percebi que estava vivo.

perceber assim que se está vivo é coisa de funda alteração. além de perder o tino, roga-se ao céu perdão, lamenta-se e fica-se a saber que deus não quer que morramos. não era a nossa hora, ainda merecíamos, e eu sabia o que isso significava, ficar mais tempo vivo era merecer. durante uns cinco dias internaram-me no centro de saúde da vila. então, havia um centro onde podíamos ficar doentes. a dona hortênsia era quem cuidava de nós, não era bem uma enfermeira, era uma parteira muito experiente que se deixara ali ficar por falta de partos. era uma excelente pessoa que eu aprendi a adorar e a ver como um ser impregnado das bondades de deus.

no início, assim que entrei, vinha muito perto de mim e estendia as mãos no meu corpo a massaja-lo. o doutor brito deixava-a fazê-lo porque era muito suave, parecia existir quase só a emissão de um calor a partir da sua pele, como emanação de uma cura maior feita a partir do pensamento. sorria, dizia que eu era um rapaz cheio de sorte e que estava muito feliz por ter a oportunidade de me conhecer. deus seja louvado por ter permitido que eu te conheça, que cada pessoa que conhecemos é uma alma com quem poderemos estar no paraíso, se formos bons. porque cada pessoa que conhecemos traz uma peça do nosso caminho até ao senhor, e nós só precisamos de a guardar, de a preservar com cuidado, e esperar até o completarmos.

durante aqueles dias a minha cabeça mudou em relação a muitas coisas. a primeira foi a convicção de que eu seria uma presa próxima para os oficiais da morte. afinal eu estava ali para ficar, porque poderiam ter-me aberto a porta do céu ou do inferno e não o fizeram, era ali que eu ficaria, como uma liberdade que me garantiram. estava livre. a segunda convicção que criei foi a de que o bem, a sua prática, era uma dádiva. só os bons persistiam e ascendiam, que alguns podiam persistir mas descer, porque na vida havia mal a segurar os tolos para que trabalhassem em favor do inferno. por isso os maus se salvam da morte a cada passo, e iam ficando, para competirem conosco, os bons, pelo espaço, pelo único espaço garantido.

[…]

quando o manuel me visitou em casa, duas semanas depois, eu atado à cama por mais cinco dias ainda, entrou no meu quarto a medo. sem me encarar, deixou-se ali ficar, e eu olhei-o sem palavra durante minutos, num silêncio suspenso interminável como se estivéssemos numa descompressão antes de sair de baixo de água.

então eu afirmei eloquente, abandonaste-me, mas quero muito que sejas meu amigo porque eu sou teu amigo. e podias ter fugido comigo pelo campo abaixo e ter saltado do rochedo, mas agora não quereria nunca que tivesses morrido porque eu não morri. e agora quero que sejas o primeiro a saber da resolução que tomei para combater todo o mal que existe, para lutar contra quem nos quiser magoar ou matar, eu decidi entregar-me a deus através da única maneira ao nosso alcance, farei de todos os meus atos um ato de bondade, até que dentro de mim só o que é bom se manifeste e eu seja bom também, eu vou ser santo. terei poderes com o tempo, aprenderei a curar os corpos e a salvar almas, saberei entender a voz de deus e deixarei de temer os seus olhos, pois eles estarão sobre mim em constante piedade. queres ser santo comigo, manuel. seremos os dois, há tanta coisa para fazer, tantas pessoas que morrem, seremos incansáveis a salvá-las.

[…]

quando regressei à escola os miúdos tinham medo de mim. Contava-se que eu tinha estado morto e regressara como um fantasma que conseguiu recuperar o corpo. saltou do rochedo da louca suicida, vem possuído pelo espírito dela, diziam alguns. os meus pais disseram-me que foi ela quem o encontrou, que os peixes lhe tinham comido a carne mas ela fez uma magia e os peixes vomitaram tudo, disse outro rapaz.

chamaram-me nomes, que me fosse embora, se queria estar morto que morresse longe dali. a minha professora, a professora blandina, protegeu-me com os braços e mandou-nos entrar.

na sala, entre o manuel e a germana, afundei-me na cadeira de tristeza e declarei que não era verdade, que estava vivo e não havia morrido, só cristo ressuscitou e dizê-lo de outra pessoa era heresia.

 

 

[Trecho do segundo capítulo de “o nosso reino”, divulgado pelo caderno Ilustríssima do jornal Folha de São Paulo]

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o nosso reino

Autor: valter hugo mãe
Editora: 34
Preço: R$ 25,20 (168 págs.)

 

 

 

 

 

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