Para o olhar atento do sociólogo, antes de desdobrarem-se em eventos sociais, os acontecimentos cotidianos já revelam sinais do tempo. Zygmunt Bauman, em Isto não é um diário, parte de reflexões suscitadas por leituras de notícias de jornais, de lembranças, de análises tecidas ao longo do acompanhamento vivido do desenvolvimento da situação política e econômica mundial, observando acontecimentos rotineiros para pensar sobre os significados neles contidos e pontuar questões sobre o mundo contemporâneo: o significado da palavra democracia nos movimentos que levaram à Primavera Árabe, a impiedosa perseguição aos ciganos na França, a bolha imobiliária americana, o papel dos países emergentes na estratégia mundial de globalização, ou mesmo sua paixão então recém-descoberta pelo escritor José Saramago.
Segundo o autor, o livro apresenta uma possibilidade de desenvolvimento de uma visão crítica sobre os eventos noticiados, pois o formato de caderno de notas proporciona uma pausa para reflexão em meio à torrencial velocidade da imprensa diária, que não permite que o significado dos acontecimentos seja mastigado e digerido de forma apropriada. Para ele, o caderno em forma de diário é “muito útil para armazenar em tópicos que talvez precisem de um tratamento mais elaborado no futuro, para anotar as continuidades e descontinuidades na reconhecidamente volátil condição humana. Manter um caderno de anotações significa atualizar a “base de dados”, para reavaliar e organizar a visão de mundo. Algumas das entradas são, porém, reprocessadas e usadas em escritos mais focados, bem antes de o caderno de notas atingir um tamanho que justifique sua publicação em separado na forma de livro”.
Em entrevista, Bauman diz que Saramago foi-lhe uma inspiração para a concepção do livro. Diz ele: “[…] o longo esforço de Saramgo em manter por um ano um blog que comentasse regularmente os acontecimentos rotineiros, registrando suas próprias reflexões sobre os significados e a mensagem que eles continham, foi um esqueleto para pensar e uma forma de escrever que eu achei particularmente interessante para manter o rastro de nossas realidades permanentemente em mudança. O resultado, de qualquer forma, é um “livro de anotações” mais do que um “livro”: ele segue a trilha dos eventos, não um tema concebido previamente ou um desenho feito pelo autor. Assim, como em um diário, as entradas, por assim dizer, foram selecionadas conforme foram surgindo e não pela iniciativa do autor – mesmo porque a atenção e o interesse dos autores pinçam algumas notícias do fluxo, mas deixam outras passar sem registro”.
Em cada um dos textos, é notável o alto senso crítico do sociólogo e a maneira como o livro foi concebido e construído, revela como ele mesmo constrói o seu raciocínio, articulando a aplicação de conceitos à realidade contemporânea.
No Brasil, o livro foi traduzido por Carlos Alberto Medeiros e publicado pela Zahar em 2012. A editora disponibiliza um trecho para visualização.
_____________
Os motivos para escrever são abundantes, uma multidão de voluntários alinhados até serem notados, destacados e escolhidos. A decisão de escrever é, por assim dizer, “sobredeterminada”.
Para começar, não consegui aprender outra forma de ganhar a vida a não ser escrevendo. Um dia sem escrita parece um dia perdido ou criminosamente abortado, um dever omitido, uma vocação traída.
Prosseguindo, o jogo das palavras é para mim o mais celestial dos prazeres. Gosto muito desse jogo – e o prazer atinge os píncaros quando, reembaralhadas as cartas, meu jogo parece fraco e preciso forçar o cérebro e lutar muito para preencher as lacunas e superar as armadilhas. Esqueça o destino: estar em movimento, e pular sobre os obstáculos ou afastá-los com um chute, é isso que dá sabor à vida.
Outro motivo: sinto-me incapaz de pensar sem escrever. Imagino que eu seja primeiro um leitor e depois um escritor – pedaços, retalhos, fatias e frações de pensamentos em luta para nascer, suas aparições fantasmagóricas/espectrais rodopiam, comprimindo-se, condensando-se e novamente se dissipando; devem ser captados primeiro pelos olhos, antes que se possa detê-los, colocá-los no lugar e lhes dar contorno. Primeiro precisam ser escritos em série para que um pensamento razoavelmente bem-acabado possa nascer; ou, se isso falhar, ser abortado ou enterrado como natimorto.
Além do mais, embora eu adore o isolamento, tenho horror à solidão. Depois que Janina se foi, cheguei ao fundo mais sombrio da solidão (se é que a solidão tem um fundo), ali onde se juntam seus sedimentos mais amargos e pungentes, seus miasmas mais tóxicos. Como o rosto de Janina é a primeira imagem que vejo ao abrir meu desktop, o que se segue depois que conecto o Microsoft Word nada mais é que um diálogo. E o diálogo faz da solidão uma impossibilidade.
Por fim, embora não menos importante, suspeito que eu seja um grafômano, por natureza ou criação… Um viciado que precisa de mais uma de suas doses diárias ou que se arrisca até as agonias da abstinência. Ich kann nicht Anders (Não posso fazer diferente). Esse provavelmente é o motivo profundo, aquele que torna a busca por motivos tão desesperada e inconclusiva quanto inescapável.
Quanto às outras causas e motivos, realmente não é possível contá-los, e, pelo que sei, seu número continuará a crescer a cada dia. Entre os que mais se destacam no momento está o sentimento progressivo de que estou abusando da hospitalidade, de que já fiz imoderadamente o que minhas capacidades moderadas me permitiam ou me obrigavam, e que portanto chegou a hora de aplicar a mim mesmo a recomendação de Wittgenstein, de manter silêncio sobre as coisas que não devo falar ou comentar (coisas, acrescentaria eu, que não devo mencionar ou debater com responsabilidade, ou seja, com a convicção legítima de ter algo de útil a oferecer). E as coisas de que não devo falar são, cada vez mais, aquelas que vale a pena comentar hoje. Minha curiosidade se recusa a aposentar-se, contudo, minha capacidade de satisfazê-la ou pelo menos de aplacá-la e aliviá-la não pode ser levada ou persuadida a prosseguir. As coisas fluem rápido demais para dar lugar à esperança de captá-las em pleno voo. É por isso que a análise de um novo tema, um novo assunto para estudo prolongado, à espera de que se faça justiça a seu objeto, já não está entre minhas cartas. Não porque falte conhecimento disponível para consumo – mas em razão de seu excesso, que desafia todas as tentativas de absorvê-lo e digeri-lo.
_____________
Autor: Zygmunt Bauman
Editora: Zahar
Preço: R$ 31,43 (256 págs.)