Literatura

O que cabe no breve espaço de um conto

9 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

gravura de Ulysses Boscolo

Segundo Antonio Tabucchi, Nove estórias de J. D. Salinger é “o livro de contos mais belo do século XX”. De fato, os contos, escritos originalmente para as revistas The New Yorker e Harper´s, mostram a versatilidade, irreverência e magistral cadência da prosa do autor de O apanhador no campo de centeio.

“Ele era um mestre dos contos de ficção, um excelente contador de histórias. […] Seu trabalho é atemporal. Geração após geração encontra novos significados em seus livros”, resume Will Hochman, professor doutor da Universidade Estadual do Sul de Connecticut.

O crítico português Carlos Eugénio Augusto analisa de maneira interessante a riqueza litereária dos contos: “Um pouco como em toda a sua infelizmente curta obra, Salinger explora em “Nove Histórias” duas importantes facetas que transporta e reveste os seus personagens. Falamos da inocência e da hipocrisia, marcas que, numa linguagem literária única, acabam por ser como a soma das diferentes partes das pessoas que são os heróis dos contos deste norte-americano, que chegou a ser apontado como um dos nomes grandes da contracultura da segunda metade do século XX”. De acordo com Augusto, no “contíguo espaço de poucas dezenas de páginas, J.D. Salinger leva o leitor para um mundo ética e moralmente complexo, cuja atmosfera deveras ansiosa tem como maior alicerce um humor particular que, em determinados contos, funciona como uma mescla entre filosofia e psicoterapia. A sátira social – pode mesmo falar-se em caricatura – utilizada por Salinger descarna relações sociais, questões políticas ou comportamentos duvidosos e traz à tona dois elementos muito presentes no seu trabalho, como o são a solidão e a ausência de amor”.

Os contos introduzem personagens que o autor continuou a utilizar posteriormente em suas obras. Também apresentam temáticas que tornaram-se recorrentes em suas narrativas, tais como a sensação de deslocamento, as relações familiares, a espiritualidade em meio à sociedade materialista. O primeiro dos nove contos, “Um dia ideal para o peixe-banana”, apresenta Seymour Glass, personagem central de boa parte da ficção de Salinger. A família Glass é a protagonista dos dois únicos livros que o autor publicou após esta coletânea de contos, Franny e Zooey e Carpinteiros, levantem bem alto a cumeerira & Seymour, uma apresentação e Seymour, mesmo quando protagoniza as narrativas, paira sempre sobre os irmãos como a nuvem dos cigarros que os Glass fumam compulsivamente.

Como conta Gonçalo Mira, em artigo escrito para o jornal português Público, neste primeiro conto, “Seymour é-nos apresentado primeiro através de uma conversa telefónica entre a sua mulher, com quem passava umas férias na Florida, e a mãe desta. Poucas páginas depois, o conto centra-se na sua ida à praia e num diálogo que estabelece com uma menina, Sybil, acerca dos fascinantes peixes-banana. A obra-prima que é este conto começa a construir-se no telefonema da mulher. A mãe da mulher teme pela filha, mas esta parece achar apenas divertidos os desvios do marido, mesmo quando são literais, como a sua tendência para, ao conduzir, ficar de tal forma hipnotizado pelas árvores que ladeiam a estrada que sente o impulso de conduzir contra elas”.

Poucos autores comparam-se a Salinger na arte do diálogo, como aponta o crítico Alfredo Monte, em resenha na qual define os contos como joias raras e únicas.

 

_____________

[…]

— Onde é que está a moça? — Sybil disse.

— A moça?

O rapaz sacudiu um pouco da areia que se prendera a seus cabelos já ralos.

— Isso é difícil de dizer, Sybil. Ela pode estar em mil lugares. No cabeleireiro, pintando o cabelo cor de vison. Ou fazendo bonecas para as crianças pobres, no quarto dela.

Já agora deitado ao comprido, ele fechou as mãos e pôs uma sobre a outra, como apoio para o queixo.

— Me pergunta outra coisa, Sybil. Esse teu maiô é bonito. Se há uma coisa que eu gosto é de maiô azul.

Sybil olhou-o, espantada, e depois baixou os olhos em direção à sua barriguinha protuberante.

— Esse maiô é amarelo — ela falou. — É amarelo.

— É? Chega aqui mais perto.

Sybil avançou um passo.

— Você tem toda a razão. Sou mesmo um bobo.

— Você vai entrar n’água?

— Estou considerando seriamente essa possibilidade. Acho que você vai gostar de saber que estou pensando cuidadosamente no assunto, Sybil.

Sybil cutucou a boia de borracha que o rapaz às vezes usava orno travesseiro.

— Tá precisando de ar — ela disse.

— Isso mesmo. Ela está mais precisada de ar do que eu estou disposto a admitir — falou, afastando as mãos e deixando o queixo repousar sobre a areia. — Sybil, você está muito bonita. Dá gosto te ver. Me fala sobre você.

Estendeu os braços para a frente e segurou os tornozelos da menina.

— Eu sou Capricórnio — ele falou. Quê que você é?

—A Sharon Lipschutz disse que você deixou sentar no banco do piano ao teu lado.

— A Sharon Lipschutz disse isso?

Sybil assentiu vigorosamente com a cabeça.

O rapaz soltou os tornozelos de Sybil, recolhendo as mãos, e deitou o lado do rosto sobre o antebraço direito.

— Bem, você sabe como são essas coisas, Sybil. Eu estava sentado lá, tocando. E você nem estava por perto. E a Sharon Lipschutz veio e se sentou ao meu lado. Eu não podia empurrar ela pra fora, podia?

— Podia.

— Ah, não. Não podia fazer isso. Mas eu te digo o que é que eu fiz.

— O quê?

— Fiz de conta que ela era você.

Sybil imediatamente curvou-se e começou a cavar a areia. — Vamos pra água — ela disse.

— Está bem. Acho que a gente pode dar um jeitinho nisso.

— Na próxima vez, empurra ela pra fora.

— Empurra quem pra fora?

— A Sharon Lipschutz.

— Ah, a Sharon Lipschutz. Como esse nome aparece a toda hora. Misturando memória e desejo.

O rapaz subitamente levantou-se. Olhou para o mar.

— Sybil, sabe o quê que nós vamos fazer? Vamos ver se pegamos um peixe-banana.

— Um quê?

— Um peixe-banana — ele disse, desfazendo o laço do cinto do roupão. Despiu o roupão. Tinha a pele muito branca, os ombros estreitos, e usava um calção azul-pavão. Dobrou o roupão, em dois e em três. Desenrolou a toalha de que se servira para cobrir os olhos, estendeu-a sobre a areia e pôs sobre ela o roupão dobrado. Abaixou-se para pegar a boia e enfiou-a sob o braço direito. Feito isso, deu a mão livre para Sybil e saíram andando em direção ao mar.

— Imagino que você já tenha visto muitos peixes-banana na tua vida — disse o rapaz.

Sybil fez que não com a cabeça.

— Não viu? Afinal, onde é que você mora?

— Não sei.

— Claro que sabe. Tem que saber. A Sharon Lipschutz sabe onde é que ela mora, e só tem três anos e meio.

Sybil parou e desprendeu-se, com um arranco, da mão dele.

Pegou uma concha comum de praia e examinou-a com exagerado interesse. Jogou-a fora.

— Whirly Wood, em Connecticut — ela disse, e recomeçou a andar, barriga estufada para a frente.

— Whirly Wood, em Connecticut — ele repetiu. — Será que, por acaso, essa cidade fica perto de Whirly Wood, em Connecticut?

Sybil olhou para ele.

— É lá que eu moro — falou, impaciente. — Eu moro em Whirly Wood, Connecticut.

Correu alguns passos à frente dele, agarrou o pé esquerdo com a mão esquerda e deu uns dois ou três pulos.

— Você não faz ideia como isso esclarece tudo — o rapaz disse. Sybil largou o pé e perguntou: — Você já leu “Sambo, o Negrinho”?

— Gozado você me perguntar isso. Acontece que eu acabei de ler esse livro ontem de noite — ele respondeu. Estendeu o braço e tomou novamente a mão de Sybil. — Você gostou?

— Os tigres todos ficaram correndo em volta daquela árvore?

— Pensei que nunca mais iam parar. Nunca vi tanto tigre.

— Tinha só seis — ela falou.

— Só seis! Você chama isso de só?

— Tinha só seis — ela falou.

— Só seis! Você chama isso de só?

— Você gosta de cera? — Sybil perguntou.

— Gosto de quê?

— Cera.

— Gosto muito. Você não gosta?

Sybil concordou com a cabeça.

— Você gosta de azeitona? — Sybil perguntou.

— Azeitona? Adoro. Azeitona e cera. Nunca vou a lugar nenhum sem levar um estoque de azeitonas e cera.

— Você gosta da Sharon Lipschutz?

— Gosto. Gosto sim — o rapaz respondeu. — O que eu mais gosto nela é que ela nunca maltrata os cachorrinhos no saguão do hotel. Por exemplo, aquele buldoguezinho da moça do Canadá. Você provavelmente não vai me acreditar, mas algumas menininhas gostam de espetar aquele cachorrinho com um pedaço de pau. A Sharon não. Ela nunca faz nenhuma maldade. É por isso que eu gosto tanto dela.

Sybil ficou calada.

— Eu gosto de mastigar vela — ela disse, finalmente.

—Quem não gosta? — o rapaz falou, molhando os pés. — Opa! A água tá fria.

Jogou a boia dentro d’água.

[…]

[Trecho do conto “Um Dia Ideal para os Peixes-Banana”, divulgado integralmente pela Revista Bula]

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ove estórias

 

 

NOVE ESTÓRIAS

Autor: J. D. Salinger
Editora: Editora do autor
Preço: R$ 39,90 (166 págs.)

 

 

 

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