Três mulheres de três PPPês foi publicado originalmente em 1977, ano da morte de seu autor. Paulo Emílio Sales Gomes, até então conhecido pelo profundo trabalho como crítico de cinema, cria, nas três novelas que compõem este volume, uma prosa original e despretensiosa, satírica e bem-humorada, imaginativa e imediatamente familiar.
“Duas vezes com Helena”, “Ermengarda com H” e “Duas vezes Ela” são todas narradas Polydoro, uma figura abastada da elite paulistana que detesta seu nome e que exige de suas parceiras a omissão, abreviação ou variação na pronúncia. Cada novela acompanha o narrador em uma fase da vida, cada qual envolvida por uma das mulheres que lhe dá título.
O livro tem uma dimensão sociológica e tece uma crítica pontiaguda à burguesia paulista.
Antonio Candido analisa, em A educação pela noite, “o fato de alguns dos livros mais criadores e sem dúvida mais interessantes da narrativa brasileira recente serem devidos a não-ficcionistas ou, mesmo, não serem de ficção… Por isso, apresentam uma escrita antes tradicional, com ausência de recursos espetaculares, aceitação dos limites da palavra escrita, renúncia à mistura de recursos e artes, indiferença às provocações estilísticas e estruturais”
Segundo o crítico, a “livre e extraordinária imaginação” de Paulo Emílio “sempre aspirou a algo mais, porém só no fim da vida, aos sessenta anos, escreveu os três contos longos do mencionado livro, que tratam de relações amorosas complicadas, com uma rara liberdade de escrita e concepção. No entanto, a sua modernidade serena e corrosiva se exprime numa prosa quase clássica, translúcida e irônica, com certa libertinagem de tom que faz pensar em ficcionistas franceses do século XVIII”.
Nas palavras do crítico J. G. Nogueira Moutinho, no ensaio “Três mulheres do sabonete Araxá”: “São breves os contos de sua trilogia, mas a cumplicidade de erotismo e de sátira neles existente em alto grau os transforma em elípticas obras-primas. A concisão mesmo favorece a densidade dos relatos, e se o leitor estiver, como diz Georges Bataille, cansado dos limites estreitos impostos pelas convenções, neles descobrirá como é possível violar essas peias sem vulgaridade”.
A crítica de Roberto Schwarz aponta para um jogo entre o irônico autor e o patético narrador, pelo qual, “a despeito das peripécias, das revelações e da intensidade da conclusão, a melodia não vai mais longe, em fim de contas, que todo mundo. Trata-se de uma paródia da opção existencial, e a combinação de autenticidade pessoal e tolice é um achado”. Para Schwarz, são três “novelas conjugais, de enredo picante, cheio de surpresas e suspense. Contudo, esta armação é tratada com recuo. Ela serve ao gosto maldoso do autor pelas situações acanastradas, e sobretudo à sua simpatia – esta sem maldade – pelos movimentos vivazes, ainda quando sejam tontos. Aliás, a vivacidade na bobagem parece encerrar para Paulo Emílio alguma coisa preciosa, um atestado de vida e imaginação em regiões que se julgariam mortas (no campo da crítica de cinema, o seu entusiasmo pelo mau filme nacional talvez tenha a ver com isto)”.
Em 2007 Três mulheres de três PPPês havia sido reeditado e lançado pela Cosac Naify, pontapé inicial da “Coleção Paulo Emílio Sales Gomes” feita pela editora, selo sob o qual publicou também Cemitério, Capitu, escrito em conjunto com Lygia Fagundes Telles e a Caixa Paulo Emílio, que reúne os clássicos ensaios “Vigo, vulgo Amereyda” e “Jean Vigo”, bem como dois DVDs da obra integral do cineasta vanguardista Jean Vigo [1905-1934]. A coleção foi organizada por Carlos Augusto Calil, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, ex-aluno de Paulo Emílio que escreveu diversos textos sobre o mestre. Calil também organiza a recém lançada “Coleção Paulo Emílio”, nova reedição da obra, cujos primeiro títulos publicados são a antologia O cinema no século e, mais uma vez, Três mulheres de três PPPês.
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Trecho de “Duas Vezes com Helena”:
Não fosse a artrite, nunca mais teria encontrado com Helena. Não cabe iniciar uma história juvenil com alusões ao artritismo, meu e dela, sei muito bem. Mas a verdade é que sem o flagelo, nosso encontro em Águas de São Pedro, trinta anos depois, nunca teria acontecido. Ela, no Pacaembu, eu, em Alto de Pinheiros, usando táxi ou carro particular, não frequentando clubers ou festas, com rods diversas de conhecidos, ambos longe da notoriedade, a probabilidade de cruzarmos era ínfima e durante três décadas isso nunca aconteceu, como se Deus atendesse a súplica ardente que eu fizera aos céus. Se pensarmos contudo numa mulher e num homem depois dos cinqüenta, os dois artríticos, morando em São Paulo e com alguns recursos, é certo que um dia ou outro estariam ao mesmo tempo em Águas, vilarejo onde os reumáticos da burguesia e da classe média reservam seus lugares em dois ou três hotéis principais.
Não reconheci Helena imediatamente quando a vi sentada ao lado do Professor Alberto, tomando a fresca na pequena praça enfeitada com anões coloridos. Ele, reconheci imediatamente, apesar da cabeleira embranquecida e dos óculos modernos que substituíam a armação de tartaruga que pesava antigamente em seu nariz poderoso. Durante anos eu freqüentara o mestre amigo. A vastidão de seus conhecimentos e a maneira de sua inteligência manobrar os materiais acumulados pela cultura fizeram do Professor, quando pude avaliá-lo, o primeiro gênio que a vida me revelou. Primeiro e único, posso dizer hoje, quando penetro na velhice e espero dos vivos mais que a simples multiplicidade de talentos. Ninguém, como o Professor, gostou tanto de mim. Me achava dotado e desde o ginásio orientava minhas leituras emprestando livros e prolongando o desvelo quando na Faculdade procurei ingenuamente aprofundar o gosto pelas letras, idéias e artes que teimara em me incutir. Cuidava de minha formação em todos os terrenos, conheceu e aprovou todas as minhas namoradas, inclusive a primeira amante mais ou menos profissional. Foi quema arranjou para mim uma bolso de estudos na Europa, organizando com método, ele que nunca viajara, os itinerários e a lista de visitas indispensáveis: a quadra do cemitério de Montparnasse, onde está enterrado Baudelaire, o número exato da Rua Monsieur Le Prince, onde morou Auguste Comte e o endereço da Biblioteca Vaticana de Milão que conserva desenhos poucos conhecidos de Leonardo.
[Divulgado pelo caderno Ilustrada, do jornal Folha de São Paulo]
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TRÊS MULHERES DE TRÊS PPPÊS
Autor: Paulo Emílio Sales Gomes
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 36,40 (200 págs.)
Autor: Paulo Emílio Sales Gomes
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 24,43 (160 págs.)