Literatura

De fatos e cálculos

7 abril, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Havia ruas largas, todas muito semelhantes umas às outras, e ruelas ainda mais semelhantes umas às outras, onde moravam pessoas também semelhantes umas às outras, que saíam e entravam nos mesmos horários, produzindo os mesmos sons nas mesmas calçadas, para fazer o mesmo trabalho, e para quem cada dia era o mesmo de ontem e de amanhã, e cada ano o equivalente do próximo e do anterior”.

pintura de José de Ribera

pintura de José de Ribera

Tempos difíceis, de Charles Dickens, escrito em 1854, é um clássico cuja atualidade permanece vívida. O romance tece uma crítica profunda à sociedade inglesa da Revolução Industrial através da narrativa da vida dos habitantes da cinzenta cidade de Coketown. A miserável condição de vida dos trabalhadores ingleses no final do século XIX, em contraste drástico à riqueza em que vivia a classe mais rica da Inglaterra vitoriana, é, pelo romance, mostrado através de um olhar arguto e irônico. O desenrolar de sua prosa constrói uma crítica aguda à garantia que a educação infantil proporciona à manutenção do quadro de dominação e desigualdade social, por moldar desde cedo a inteligência à obediência, à submissão e subserviência, incontestabilidade e irrecuperável massificação de corpo e espírito. 

O protagonista, Thomas Gradgrind, é “um homem de fatos e cálculos”, que renega a fantasia. O livro traça a trajetória dele e se sua família, base satírica da obra para descrever de maneira quase caricatural a sociedade industrial, transformando a própria estrutura do romance em uma profunda argumentação antiliberal.

Gradgrind e sua mulher são personagens tipificados, a um só tempo cômicos e enervantes. Ao longo do romance, Dickens humaniza-os, mostrando-os vítimas da insensibilidade das ideias de seu tempo. Sua filha mais velha, Louisa, ouve, desde a infância, a seguinte recomendação paterna: “Não imagine, Louisa, nunca imagine”. Ela acaba por ser, no romance, a personificação do sofrimento pela falta de vida interior, substituída pela praticidade numérica da preocupação puramente econômica.

Daniel Puglia, no texto de orelha do livro, analisa: “As consequências mais nefastas trazidas pelo rápido avanço do capitalismo no século XIX formam um dos pilares em que se estrutura a estética de Dickens. O outro pilar é a crença numa energia vital e veemente, capaz de reformar quaisquer sentimentos humanos: a imaginação e sua capacidade para despertar o que de melhor trazemos em nosso coração. A relação entre esses dois pilares origina dificuldades para o escritor, uma vez que sua prosa frequentemente realiza diagnósticos precisos, com achados de vasto alcance artístico que, no entanto, arriscam soluções nem sempre satisfatórias no plano formal – umas das características, aliás, da estranha genialidade de Dickens.

“Em Tempos difíceis, como em grande parte da obra do autor, a racionalidade movida pelo lucro e pela exploração é contraposta pela celebração da fantasia e da bondade: um apelo que, em tempos tão difíceis como os atuais, pode parecer excessivamente ingênuo. Mas a fantasia e a bondade aqui devem ser vistas como um gesto, um pedido, um desejo: o sol para terminar uma noite”.

Segundo Terry Eagleton, “Dickens vê sua sociedade apodrecendo, desvelando-se, tão sobrecarregada de substância desprovida de sentido que afunda gradualmente em uma espécie de lodo primitivo”.

O livro estava fora de catálogo nas livrarias brasileiras há quarenta anos. A nova edição, publicada no final do ano passado pela Boitempo, com excelente tradução do especialista Fábio Fernandes, traz as gravuras originais de Harry French.

 

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Trecho:

O sr. Gradgrind caminhava da escola para casa em estado de considerável satisfação. Era sua escola, e ele pretendia que ela fosse um modelo. Pretendia que cada criança nela fosse um modelo – como os jovens Gradgrinds eram todos modelos.

Havia cinco jovens Gradgrinds, e cada um deles era um modelo. Haviam sido doutrinados desde a mais tenra infância; adestrados, como pequenas lebres. Assim que puderam correr sozinhos, foram obrigados a correr para a sala de palestras. O primeiro objeto com o qual tiveram uma associação, ou do qual conservaram alguma lembrança, foi um grande quadro-negro no qual um Ogro seco desenhava a giz sinistros algarismos brancos.

Não que conhecessem, por nome ou natureza, qualquer coisa sobre os ogros. Os Fatos os livrem! Uso a palavra apenas para definir um monstro que vivia num castelo de palestras, só Deus sabe com quantas cabeças manipuladas numa só, e capturava a infância, arrastando-a pelos cabelos para tenebrosos covis estatísticos.

Nenhum dos pequenos Gradgrinds jamais vira um rosto na Lua; já ocupavam alturas lunares antes de falar direito. Nenhum pequeno Gradgrind jamais aprendera a tola musiquinha: “Brilha, brilha, estrelinha! Lá no céu, pequenininha!”. Nenhum pequeno Gradgrind jamais fora impreciso sobre o tamanho de uma estrela, já que, aos cinco anos, cada pequeno Gradgrind já dissecara a Ursa Maior como um professor Owen e dirigido o Grande Carro como um maquinista de trem. Nenhum pequeno Gradgrind jamais associara uma vaca no pasto àquela famosa vaca do chifre torcido que chifrou o cão que perseguiu o gato que matou o rato que comeu o grão, ou àquela vaca, ainda mais famosa, que engoliu o Pequeno Polegar: nunca ouvira falar dessas celebridades, e fora apresentado às vacas apenas como quadrúpedes graminívoros e ruminantes, com vários estômagos.

Àquele prosaico lar, batizado de Stone Lodge, o sr. Gradgrind dirigia seus passos. Ele estava praticamente aposentado do comércio de ferragens por atacado quando construiu Stone Lodge, e agora procurava uma oportunidade adequada para fazer uma figura aritmética no Parlamento. Stone Lodge situava-se numa charneca distante uma ou duas milhas de uma grande cidade -que será batizada de Coketown neste fiel guia que aqui se apresenta.

Stone Lodge era um elemento bastante regular na superfície da região. Nenhuma dissimulação atenuava ou obscurecia aquele intransigente fato da paisagem. Uma casa enorme e quadrada, com um pórtico pesado que obscurecia as janelas principais, assim como as pesadas sobrancelhas de seu dono ensombreavam seus olhos. Uma casa calculada, planejada, equilibrada e testada. Seis janelas de um lado da porta, seis do outro; doze no total numa ala, doze no total na outra ala; vinte e quatro, somando-se as alas de trás. Um gramado, um jardim e uma pequena entrada, todos regrados e medidos como um livro de contabilidade botânica. Gás e ventilação, serviço de água e esgoto, tudo de primeira. Traves e abraçadeiras de ferro, à prova de fogo de cima a baixo; elevadores para as criadas, e todas as suas escovas e vassouras; tudo que o coração poderia desejar.

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dickens

 

TEMPOS DIFÍCEIS

Autor: Charles Dickens
Editora: Boitempo
Preço: R$ 37,80 (336 págs.)

 

 

 

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