“As crises políticas e os fenômenos críticos contíguos que se observam nos sistemas sociais complexos tornam-se inteligíveis em seus traços essenciais desde que a pensemos em termos de dessetorização tendencial do espaço social desse sistema” – Michel Dobry.
O clássico estudo Sociologia das crises políticas, do sociólogo francês Michel Dobry, ganhou tradução para o português pelas mãos de Dalila Ribeiro, na edição lançada no final do ano passado pela Editora Unesp. Dobry propõe uma nova abordagem para o estudo das crises políticas, interpretando-as não como imprevistos ou patologias, mas como a norma das relações sociais. Na visão do autor, tais crises resultam das relações sociais e não devem ser compreendidas apenas como factuais. Embora o sociólogo não desconsidere os aspectos históricos e factuais, sua análise propõe que a reflexão sobre as crises políticas deve concentrar-se na idealização de métodos que formem um esquema teórico capaz de ultrapassar as particularidades e revelar as suas dinâmicas características gerais. Seu método abre a possibilidade de estudo dos aspectos constitucionais das crises, sem perder de vista as racionalidades de situações específicas que constrangem as percepções, os cálculos e as táticas dos atores.
O estudo de Dobry, contudo, não procura analisar os resultados criados pelas crises, “ciência histórica teórica” que, segundo ele, não passa de um “objetivo ilusório”, o qual “substitui um interesse sistemático por aquilo de que as crises políticas são feitas e por aquilo que se passa nelas”.
Trata-se de um modelo de análise de “conjunturas fluidas”, ou seja, de conjunturas de crise política conjugadas, ao longo de um curto prazo, a amplos processos de mobilização de massa.
Segundo o professor da Universidade Federal do Espírito Santo Alberto Tossi, no artigo “Democracia e mobilização social: participação autônoma e instituições políticas na transição brasileira”, publicado em 1998 na Revista de Sociologia e Política, na “perspectiva de Dobry, a especificidade das conjunturas de crise política está justamente nas complexas relações que se estabelecem entre as mobilizações e as mudanças no estado dos sistemas políticos. […] Tal enfoque equivale a avaliar as conjunturas críticas como momentos em que grandes questões políticas nacionais mobilizam um conjunto “novo” de atores, ampliando de modo importante, para estas conjunturas, o conjunto de atores normalmente presentes nas situações políticas rotineiras. O pressuposto é que se vive numa sociedade dinâmica e pluralista o suficiente para conter setores sociais organizados e conjunturalmente mobilizáveis. Tal ampliação em torno de grandes questões faz com que todos os protagonistas deixem de basear seus cálculos políticos nos referenciais rotineiros, ou seja, na lógica dos campos sociais específicos aos quais normalmente sua atividade política está confinada. Em tais conjunturas, passam a referenciar sua atividade tática em uma lógica de situação de cuja elaboração participam e por cujos contornos são influenciados, lógica que perpassa o confinamento dos diferentes espaços sociais e das diferentes arenas políticas rotineiras que convivem numa sociedade complexa e cria uma base temática comum sobre a qual o conflito conjuntural passa a ocorrer”. Pensando exemplos brasileiros, Tossi aponta: “Por exemplo, no Brasil de 1984 (na campanha das “Diretas Já”) ou de 1992 (na campanha pelo impeachment de Collor), sindicalistas e operários, capitalistas e líderes de entidades empresariais, deixaram de operar politicamente a partir da lógica normalmente empregada nas relações entre empresários e trabalhadores; os estudantes deixaram de agir a partir da lógica própria às questões universitárias; e mesmo os congressistas deixaram de agir exclusivamente a partir da lógica e da rotina próprias aos jogos de força parlamentares; e assim fizeram todos estes atores citados, para passarem a agir em torno da grande questão política nacional colocada na agenda (eleições diretas ou impeachment). Abandonaram com isso, por um momento, suas arenas políticas setoriais, ou seja, os espaços socialmente circunscritos nos quais rotineiramente atuavam, para jogarem o grande jogo (ampliado) da política nacional, durante a vigência da conjuntura crítica. Ou, dito de outro modo, estas arenas restritas momentaneamente se fundiram numa grande arena política nacional”. Para o professor brasileiro, disso decorre, imediatamente, que “os recursos políticos de que os atores se valem em situações rotineiras mudam de valor (podem ampliar-se ou reduzir-se), modificando o peso relativo dos contendores. […] Isto é, a perturbação da capacidade de cálculo dos atores, em vista da rapidez, incerteza e imprevisibilidade do jogo conjuntural, aumenta a interdependência tática entre esses atores. […] No centro da crise, está a ampliação do jogo, isto é, a mobilização política (conjuntural) da sociedade. Nessas conjunturas, o espaço social se simplifica, pois tudo passa a girar em torno de algumas poucas ou mesmo de uma única “grande” questão política jogada na arena nacional e, ao mesmo tempo, o jogo político torna-se infinitamente mais complexo, pela precariedade e pela velocidade das relações. Até que, ao final, o esgotamento da questão central leve à desmontagem da lógica de situação e o jogo político tenda a reestruturar-se em torno de novas e antigas arenas setoriais e de relações institucionalizadas (em parte, as mesmas de antes, em parte, novas relações)”.
Na França, o estudo de Michel Dobry foi originalmente publicado em 1986.
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Em oposição a todas as formas de reificação das instituições trata-se, desde logo, de abordar as “estruturas”, “organizações” ou “aparelhos” levando em conta sua sensibilidade às mobilizações, aos lances desferidos, à atividade tática dos protagonistas das crises. Mas trata-se também de decifrar simultaneamente as lógicas de situação que, em tais contextos, tendem a se impor aos atores e tendem a estruturar suas percepções, seus cálculos e seus comportamentos.”
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SOCIOLOGIA DAS CRISES POLÍTICAS
Autor: Michel Dobry
Editora: Unesp
Preço: R$ 44,80 (277 págs.)