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Entre letras e números

8 setembro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“A matemática, como utilizada na ficção por Borges e Perec, permite ampliar potencialmente essa multiplicidade de mundos possíveis”.

Geraldo de Barros

Jacques Fux arrebatou a crítica literária com seu premiado Antiterapias. Com o lançamento de Literatura e matemática, pela editora Perspectiva, mostra que sua prosa ensaística é tão intensa e arguta quanto a literária.

Questionando, como indica desde o título, que relações a literatura pode estabelecer com a matemática, Fux analisa o papel do conhecimento matemático nas obras de Jorge Luis Borges e Georges Perec e, entre elas, estabelece diálogos e relações nunca desta forma equacionadas, relações em que a disposição dos elementos os reverbera uns nos outros, de forma reciprocamente potencial. Para embasar algumas destas relações, Fux investiga de maneira minuciosa o grupo literário francês OuLiPo, do qual Borges, diz, é espécie de “plagiário por antecipação”.

Gita K. Guinsburg assim coloca a interessante questão que perpassa o livro e que guia a gama de autores que, através dela, nele são abordados: “Você já pensou que poderia levar mais de um milhão de séculos para ler um poema alexandrino ao mesmo tempo que, num só átimo de tempo, poderia criar com base nele o seu próprio poema? E, o melhor, você não seria um plagiador no sentido estrito do termo. É o caso de ‘Cent mille milliards de poèmes’, de Queneau. Pensou em ler um romance no qual você, leitor, constrói o percurso do enredo? Em O Castelo dos Destinos Cruzados, de Italo Calvino, a narrativa discorre em todos os sentidos com bifurcações de destinos, e cabe a você, autor e leitor e, simultânea e inversamente, leitor e autor, construir sua trama. E aquelas escrituras em que o autor coloca uma restrição, começo e fim já preestabelecidos ou a omissão de certa letra, e outras em que o texto se move como o cavalo no tabuleiro de xadrez (função que obedece a certos requisitos)? Em determinados casos, ainda, tudo se encontra como que em um quebra-cabeças, com paradoxos, adivinhações, espelhamentos, palíndromos, criptografia, como em Arnaut Daniel, Cervantes, Lewis Carroll, Edgar Allan Poe, Júlio Verne, Queneau e vários contemporâneos nossos. […] Jacques Fux, que possui a seriedade de um pesquisador e o imaginário de um romancista, nos introduz numa galáxia de astros-escritores”.

Segundo Fux, seu trabalho analítico revê o senso comum que compreende, entre letras e números, uma oposição simbólica, compreensão que os toma como “correspondentes a sistemas de pensamento e linguagens completamente distintas e muitas vezes incomunicáveis”. O autor mostra que essa perspectiva, pelo contrário, “foi muitas vezes refutada pela própria literatura, que em diversas ocasiões valeu-se de elementos e pensamentos matemáticos como forma de melhor explorar sua potencialidade e de amplificar suas possibilidades criativas. A utilização da matemática no campo literário se dá por meio das diversas estruturas e rigores, mas também através da apresentação, reflexão e transformação em matéria narrativa de problemas de ordem lógica – como paradoxos, ambiguidades e jogos combinatórios – que objetivam complexificar a narrativa e aumentar sua potencialidade, ampliando suas possibilidades de leitura. Nenhuma leitura é una: o texto, por si só, não diz nada; ele só vai produzir sentido no momento em que há a recepção. Assim, levando ao extremo tal perspectiva, conjectura-se que um texto seria capaz de produzir diversos sentidos distintos de acordo com as inúmeras leituras dele feitas”.

Os recursos matemáticos utilizados literariamente, diz, inclusive não são novidade histórica, “já podem ser encontrados em livros clássicos como a Torá ou a Divina Comédia. A Torá foi concebida como um livro que não admite contingência: tudo o que lá se encontra compõe um sistema bem estruturado, matemático e fechado e qualquer mudança de letra, frase ou parágrafo poderia desestabilizar o mundo, de acordo com a Cabala. Já a Divina Comédia é narrada em 3 partes de 33 cantos (embora o ‘Inferno’ tenha uma introdução), escritos em tercetos de decassílabos rimados de modo alternado e necadeado, seguindo a estrutura ABC BCB CDC. O seu sistema gira em torno do número primo três, que simboliza a aceitação e o fundamento da religião cristã”. Segundo o autor, na história da literatura, inicialmente, “a inclusão de paradoxos, de jogos, de enigmas lógicos e de estruturas e conceitos matemáticos não era sistemática, apesar de esses componente terem sido largamente utilizados. Com a criação do Oulipo, grupo francês que tinha o objetivo de incluir restrições matemáticas em escritos literários, tornamo-nos capazes de estudar as obras literárias do passado e do futuro com diferentes olhos em relação à matemática”.

Unir literatura e matemática pode ser uma forma de utilizar a ciência como uma lógica original, novo conceito, nova potencialidade da literatura, aponta Fux. A análise desenvolvida em seu livro propõe-se a mostrar que a matemática utilizada pela literatura de Borges e de Perec tem características bastante distintas, porém um objetivo comum, a saber, o aumento das possibilidades de escrita e de leitura, tanto de seus argumentos ficcionais, quanto ensaísticos.

Sua análise literária compara, por exemplo, as concepções sobre a própria literatura de ambos os autores, no que analisa suas utilizações conscientes da matemática em sua inventividade literária: “Para Borges, literatura é falar e escrever sobre a própria literatura: sua inventividade não está somente na criação de um grande autor, mas também na configuração de uma grandiosa narrativa. assim, por exemplo, no texto ‘Pierre Menard, autor do Quixote’, o escritor argentino atribui a um autor contemporâneo alguns fragmentos da obra de Cervantes, o que faz com que esta tenha seu significado alterado. Georges Perec, por sua vez, irá ilustrar esse conceito com seu jogo de citações e plágios, tomando-o como uma contrainte. Em muitos momentos, Perec escreve que a literatura (assim como a arte do puzzle) é um jogo que se joga a dois, na qual cada forma de leitura foi pensada anteriormente pelo autor, que controla, assim, todas as possibilidades. Porém, ele próprio discorda e refuta, o tempo todo, esse jogo entre autor e leitor. Por mais matemático e estruturado que o projeto literário seja, quando a obra alcança o público, leitura e recepção não estão mais nas mãos do consumidor de puzzles”.

Segundo o autor, Perec trabalha a matemática como estrutura, enquanto que Borges, “um escritor oulipiano”, a utiliza como ferramenta ficcional, como conceito. Em ambos os autores, no entanto, o conhecimento matemático serviria para preencher alguma lacunas e criar novos caminhos narrativos: tanto nos textos de Borges como nos de Perec “o saber aumenta o sabor dos mesmos, conduzindo a leitura para outra direção e fornecendo novas possibilidades de compreensão”. A matemática, enquanto ciência ou linguagem caracterizada pelo estudo formal de padrões de quantidade, estrutura, transformações, lógica e espaço, pode ser utilizada para pensar a utilização literária de ambiguidades, paradoxos, jogos combinatórios. Pergunta Fux, no “Primeiro passo” de seu livro: “Por que os jogos combinatórios aumentam a potencialidade e a possibilidade de leitura? Dois leitores, diante do mesmo texto ou poema, teriam diferentes e potenciais tipos de leitura. E se esses textos ainda pudessem ser permutados, mudados, jogados, falsificados, ludibriados, haveria inúmeras outras possibilidades, além da leitura básica e distinta de cada leitor. A partir de algoritmos, regras, restrições e contraintes, potenciais leituras seriam cabíveis. Essa é a invenção e contribuição do Oulipo, de Georges Perec e, como demonstraremos posteriormente, de Jorge Luis Borges”. O autor cita o filósofo Jacques Derrida, para quem “um texto só é um texto se ele oculta, ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e a regra de seu jogo. Um texto permanece, aliás, sempre imperceptível. A lei e a regra não se abrigam no inacessível de um segredo, simplesmente elas nunca se entregam, no presente, a nada que se possa nomear rigorosamente na percepção”.

A matemática, em relação à literatura, portanto, e de modo exemplar nas obras de Borges e Perec, é discurso diferente que se põe em interface e oferece possibilidade lógica de reflexão ampliada, ultrapassando fronteiras intelectuais, artísticas e culturais, fornecendo nova forma de conhecimento. Como diz Fux, “o não conhecimento específico da matemática não impede a leitura e o entendimento da obra. Essa característica, porém, direciona imediatamente a uma segunda: o conhecimento do problema matemático discutido e apresentado em determinado texto aumenta substancialmente a potencialidade da obra. […] quanto mais se conhece a matemática, maior é o estabelecimento de relações, discussões e possibilidades para as obras, o que não impede a existência de outros caminhos de leitura”.

Passando pelos conceitos de totalidade e esgotamento, pela estrutura algorítmica do labirinto borgiano, pelas possíveis leituras do puzzle de Bartlebooth, personagem de Perec, pelos paradoxos matemáticos, lipogramas, palíndrmos e jogos, a densa análise de Jacques Fux também estrutura-se, ao tratar da simultaneidade do tempo e da eternidade, “no tempo ambíguo da arte, em que uma história não é determinada somente pela decisão de um caminho, não sendo necessária a eliminação de todas as outras possibilidades”.

 

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Trecho

 

[…]

As regras de linguagem e da matemática são historicamente determinadas por trabalhos da sociedade que envolvam interações sociais entre grupos e relações entre fatores ambientais, sociais e físicos que são complicados e misteriosos, mas não arbitrários. Criar regras faz parte da sociedade de forma geral, não apenas no tocante aos jogos: criam-se regras para a construção de linguagens de programação, para sinais de trânsito, para cargos públicos, entre outras, com um propósito bem definido e para que sejam aceitas e “jogadas” por pessoas que, por sua vez, devem ser “aceitáveis” por uma comunidade.

Existe, porém, um grupo de matemáticos para o qual a matemática não é somente a busca de regras e o posterior jogo com elas. Esses matemáticos, os platonistas, querem saber os motivos e as procedências dessas regras e desses jogos: eles acreditam que a matemática existe fora do espaço e do tempo, fora do pensamento e da matéria, num domínio independente de qualquer consciência individual ou social. Os platonistas matemáticos, que descendem, como indica o nome que recebem, das ideias filosóficas de Platão, acreditam que os objetivos matemáticos são reais e independentes de nosso conhecimento, existindo a priori: esses objetos nunca foram criados e nunca mudam. A matemática seria, assim, uma ciência empírica como a botânica, em que não há o que inventar, pois tudo já está dado, só há que ser descoberto. Para matemáticos importantes, como Leibniz e Berkeley, abstrações como os números são os pensamentos dentro da mente de Deus: “O platonismo sem Deus é como o sorriso no gato Cheshire de Lewis Carroll. O gato tem o sorriso. Gradualmente o gato desaparece, até que tudo tenha ido – exceto o sorriso. O sorriso continua, mesmo sem o gato”.

A partir dessas visões filosóficas da matemática, podemos traçar um dos aspectos diferenciadores do uso da matemática em Borges e Perec […]: Perec é um formalista, enquanto Borges é um platonista. […]

Assim como os formalistas, Perec é um criador de regras e também um jogador. Há, em sua literatura, as regras – as contraintes matemáticas – e as pessoas que jogam com essas regras – seus leitores e estudiosos. Além disso, essas regras são “aceitáveis” e “jogáveis”, já que podemos ler seus livros e, por meio dessa leitura, descobrir e entender suas contraintes. Mas esse jogo literário, diferentemente de jogos como o xadrez, algumas vezes sai do controle do autor: apesar de devidamente estruturado, explicado e de regras bem estabelecidas, o escritor não tem controle total sobre ele. […]

Borges segue em outra direção: a matemática poderia ser, em sua obra, tão somente uma grande tautologia, uma vez que o escritor argentino estava inteirado da discussão em relação aos fundamentos da matemática que ocorria em sua época: o verdadeiro versus o demonstrável, os Teoremas da Incompletude de Gödel e o Projeto de Hilbert. A matemática para ele, assim como a música, pode dispensar o universo: como os platonistas não podem se separar de um Deus, Borges não pode se separar do conceito de descoberta. A matemática, como outros tantos enigmas, está no mundo para ser descoberta, sonhada e vislumbrada.

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LITERATURA E MATEMÁTICA

Autor: Jacques Fux
Editora: Perspectiva
Preço: R$ 39,20 (256 págs.)

 

 

 

 

 

 

 

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