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Sátiras e subversões

24 agosto, 2016 | Por Isabela Gaglianone

Morro Agudo

Noticiam os jornais que os moradores de ‘morro Agudo’, localidade situada à margem da Estrada de Ferro Auxiliar à Central, protestaram contra a mudança de nome da respectiva estação, mudança imposta pela diretoria da Estrada que precedeu à atual.

Vem a pelo lembrar de que forma horrorosa os mesmos engenheiros vão denominando as estações das estradas que constroem.

Podemos ver mesmo nos nossos subúrbios o espírito que preside tal nomenclatura.

É ele em geral da mais baixa adulação ou senão denuncia um tolo esforço para adquirir imortalidade à custa de uma placa de gare”.

Xilogravura de Lívio Abramo

Célebre por grandes obras como Recordações do escrivão Isaías Caminha ou Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto é, no entanto, autor praticamente desconhecido pelo público brasileiro, se levarmos em conta os 164 textos, inéditos em livro, reunidos neste formidável Sátiras e subversões, organizado por Felipe Botelho Corrêa, lançado no início do mês pela Companhia das Letras.

Em 1903, após ter abandonado o curso na Escola Politécnica, em função de repetidas reprovações, Lima Barreto iniciou carreira no setor burocrático da Secretaria de Guerra e também, no mesmo ano, também sua intensa colaboração com a imprensa do Rio de Janeiro, tendo passado a publicar artigos e crônicas regularmente em periódicos como Correio da Manhã e Jornal do Commercio. Em 1907, Lima Barreto passou a integrar o grupo de escritores e ilustradores que colaboravam na revista modernista Fon-Fon. Em seguida, em conjunto com amigos literatos, o escritor fundou e dirigiu a revista Floreal, que durou apenas por quatro números, dentre os quais iniciou-se a publicação do folhetim Recordações do Escrivão Isaías Caminha, que foi publicado em livro somente em 1909. Em 1911, Lima Barreto publicou Triste Fim de Policarpo Quaresma nas páginas do Jornal do Commercio – a edição em livro foi inteiramente paga pelo próprio autor e lançada em dezembro de 1915. Nessa época, Lima já tinha agudas crises relacionadas ao alcoolismo e à depressão, que inclusive o levaram à sua primeira internação no hospício, em 1914. Em 1915, ele deu início a uma prolífera colaboração com a revista popular ilustrada Careta, que representou-lhe um importante meio de divulgação de suas ideias – foi o períodico em que ele mais publicou textos ao longo de sua vida, inclusive sob diversos pseudônimos, muitos deles só descobertos neste Sátiras e outras subversões.

Durante as décadas que seguiram à morte do autor, os estudiosos especularam sobre uma enorme quantidade de textos que poderiam ser atribuídos a Lima Barreto. Felipe Botelho Corrêa, pesquisador brasileiro radicado na Inglaterra, foi quem conseguiu elucidar o mistério acerca dos textos aqui reunidos; ele é responsável organização, introdução, pesquisa e notas da edição. Os textos, publicados originalmente em periódicos, revelam uma parte da obra de Lima Barreto completamente desconhecida por mais de um século e os pseudônimos por ele utilizados em suas crônicas em revistas até o fim de sua carreira, em 1922 – alguns deles, “J. Caminha”, “Leitor”, “Aquele”, “Amil”, “Eran”, “Jonathan”, “Inácio Costa”.

Em resenha publicada no jornal Folha de São Paulo, o crítico Maurício Meireles é, também, satírico, ao apontar: “O prefeito do Rio de Janeiro faz propaganda da obra e, pouco tempo depois de inaugurada, ela desaba. Foi assim em 1921, quando Carlos Sampaio divulgava a construção da gruta da Imprensa, abaixo de onde hoje fica a avenida Niemeyer, na capital fluminense. Peritos da polícia viram no desabamento ‘causa natural’, por conta das características do terreno (além de ser uma encosta, é um local com frequência atingido por ondas). Um detalhe: a gruta fica no local exato –exato mesmo– onde desabou a ciclovia, em abril deste ano”. Para o crítico, o que emerge do livro é “um cipoal de ironias históricas sobre os problemas da república, dessas de se ler com um sorrisinho de lado”. Meireles prossegue: “Em 1915, Lima Barreto, como Inácio Costa, disparava um petardo contra parlamentares que brigavam para não perder benefícios financeiros pagos pelo Estado. Numa crônica em que imagina políticos falando dos cortes, o autor mostra um político protestando: “’ tirar o pão da boca dos meus filhos’. E que tal a história do rodolfinho? Era a palavra que servia tanto para descrever a propina paga a funcionários públicos quanto um mensalão para comprar apoio político. Um sinônimo era a palavra ‘reservado’. ‘Quando Xandu foi ministro, era fazer-se uma revistinha, era publicar-se um jornaleco, estampando-lhe o retrato, (…) e logo o dono (…) recebia das mãos dadivosas do grande ministro uma espécie de cheque’ escreve o autor”.

O jornalista Leonardo Cazes, em artigo publicado no jornal O Globo, conta sobre a pesquisa, realizada por Felipe Botelho Corrêa durante seu doutorado na Universidade de Oxford: “Já se sabia que Lima Barreto tinha escrito em revistas ilustradas, e alguns de seus pseudônimos foram apontados pelo seu biógrafo, Francisco de Assis Barbosa, autor de ‘A vida de Lima Barreto’, lançado em 1952. Outra fonte preciosa foram os manuscritos de Carlos Drummond de Andrade guardados na Fundação Biblioteca Nacional. O poeta mineiro começou a escrever um dicionário de sinônimos da literatura brasileira, mas nunca chegou a concluí-lo. Nos textos, há referência a alguns dos pseudônimos utilizados pelo escritor carioca. A partir das pistas dadas por Barbosa e Drummond, Corrêa foi atrás das provas que confirmassem as informações — e não só as encontrou, como descobriu outros pseudônimos”. Entrevistado, no mesmo artigo, o organizador pontuou: “Essas revistas eram satíricas, então (o pseudônimo) era uma forma de o autor não responder pelo texto, evitar perseguição política. O que não consegui desvendar foi se era o Lima que escolhia o pseudônimo ou o editor. Tem alguns casos que é claramente ele que escolhe porque são referências à sua trajetória”. Para Botelho Corrêa, “Lima tenta traduzir numa linguagem acessível questões intelectuais. A sátira e a caricatura são uma maneira de chegar às pessoas. Ele lia muito os russos, especialmente Tolstoi, que falava que a arte tem um poder de contágio, de comunhão de ideias. Era isso que Lima buscava”.

A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para visualização.

 

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Trecho

 

Notas avulsas

Uma tarde destas, não sei por quê, deu-me na telha tomar um bonde do Catete e ir até o largo do Machado.

Há muitos anos não ia eu por aquelas bandas, embora sejam as do meu nascimento.

Tenho mesmo indiferença por elas, donde se pode inferir que a pátria pode ser muito bem o lugar em que nascemos, mas nem sempre é aquele que amamos.

Embarquei no bonde e fui desfrutando a paisagem urbana. Rua Senador Dantas! Como está mudada! Não tem mais a beleza ou as belezas de antigamente! Para onde foram? Voltaram para o cemitério? Quem sabe lá? Passeio Público. A mesma quietude. Lapa. A coluna das sogras lá está impávida a retesar fios e cabos. Tudo pouco mudado. Vamos adiante. Estamos em frente ao Palácio do Catete. Há na porta um vaivém de gentes e automóveis. Que há? É sua excelência, que vai para Petrópolis. Parece que embarcou no automóvel. Ao meu lado, um cidadão, olhando o telhado do palácio, pergunta a um amigo próximo:

— Por que é, Costa, que, quando ele sobe, a bandeira desce? […]

 

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SÁTIRAS E SUBVERSÕES – TEXTOS INÉDITOS

Autor: Lima Barreto [Felipe Botelho Corrêa (org.)]
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 31,43 (552 págs.)

 

 

 

 

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