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Delírio erótico

1 dezembro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

Ilustração de Andrés Sandoval

O romance O supermacho – romance moderno, do poeta e dramaturgo francês Alfred Jarry, acaba de ter a ótima tradução de Paulo Leminski novamente publicada no Brasil pela editora Ubu.

“Fazer amor é um ato sem importância, já que se pode repeti-lo indefinidamente” – é a frase de abertura deste romance provocador. A narrativa se passa em 1920, dezoito anos à frente da data de sua publicação. Irreverente, erótico, repleto de jogos de linguagem e de elementos que o fazem flertar com a ficção científica, relata a saga de um homem capaz de realizar o ato amoroso em escala sobre-humana.

A sexualidade, apesar de presença central no romance, não é a única questão debatida. A relação entre homem e máquina, postos lado a lado, é também problematizada. Por meio do corpo, testam-se limites, sejam sexuais ou esportivos, e confundem-se o prazer físico e o desejo de quebrar recordes.

O volume conta com posfácio composto por textos de Annie Le Brun, Giorgio Agamben e Paulo Leminski, além de ilustração do artista Andrés Sandoval: composições feitas com uma coleção de carimbos antigos. O livro havia sido publicado pela primeira vez no Brasil nos anos 1980, graças a Leminski que, entusiasta assumido da literatura de Alfred Jarry, traduziu a obra e a apresentou ao público brasileiro.

O romance de Jarry expõe um dos grandes paradoxos de nossa sociedade, em que o ser humano se fortalece pelos avanços da ciência, ao mesmo tempo em que, porém, submete-se cada vez mais a ela – questão que dialoga com o super-homem de Nietzsche. Questiona: Em sua busca pelo absoluto, teria o próprio homem se transformado em máquina?

Para o escritor e crítico Carlos Henrique Schroeder, esta “novela divertida, delirante e provocadora, revela os principais traços da obra do autor, sutilmente marcada por um estilo de ímpar sensibilidade metafórica e de uma modernidade incomparável”. Schroeder aponta que se à primeira vista “o tal Supermacho, pode parecer o grande protagonista da superação de limites sexuais, logo fica claro que ele não está sozinho. A personagem Ellen Elson acredita ser possível acompanhá-lo e é ela quem o procura. Esta personagem coloca a mulher à altura do Supermacho, longe de um papel passivo” – o que, nas palavras da crítica literária Annie Le Brun é comentado como uma “obscenidade técnica”.

Paulo Lemisnki, no ensaio “Jarry, o supermoderno”, conta: “Antes de morrer, aos 32 anos, ele teve tempo para deixar atrás de si uma esteira de lendas de excentricidade e extravagância, a Patafísica – ‘ciência das soluções imaginárias’ –, meia dúzia de livros e uma contribuição definitiva para a história do teatro, na figura do Pai Ubu. Dramaturgo e teatrólogo, como é mais conhecido, Jarry é precursor das práticas teatrais mais avançadas do século XX, o século em que, sob o impacto do cinema, do circo e do teatro exótico (Nô, Kabuki), Meyerhold, Piscator, Brecht, Antonin Artaud, Beckett e Ionesco dariam nova vida à arte de Sófocles, Shakespeare, Racine e Ibsen.

Segundo Leminski, “O verdadeiro culto que Dadá e os surrealistas lhe tributaram é mais que justificado: na rigorosa hierarquia poundiana, Jarry, supermoderno, é um “inventor”, um dos escritores mais originais deste século, ‘herói fundador’ de tantas singularidades que, depois de virarem moda, viraram sistema”. Para o poeta brasileiro, há nesta prosa um “tom meio erudito, meio circense. As imagens e comparações insólitas e delirantes. Alguma coisa de muito criança com qualquer coisa de muito velho. A escritura de Jarry é de alta imprevisibilidade”.

 

A Ubu disponibiliza um trecho para leitura.

Em tempo, uma curiosidade: O nome da editora se refere à obra “Ubu Rei”, escrita por Alfred Jarry. “Jarry inspirou diversas escolas, de surrealistas, dadaístas ao Teatro do Absurdo”, explica Julia Fagá Alves, uma das editoras. “Entendemos que o conhecimento sobre Jarry não faz jus a sua força e que trazer esse tipo de conceito e história para nosso público é nossa vocação”, disse.

 

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[trecho]

 

“Fazer amor é um ato sem importância, já que se pode repeti-lo indefinidamente.”

Todos voltaram os olhos para aquele que proferia semelhante absurdo.

Naquela noite, os convidados de André Marcueil no castelo de Lurance acabaram falando sobre o amor, um assunto que todos concordavam ser o mais bem escolhido, sobretudo porque havia senhoras, e o mais apropriado para evitar, mesmo nesse setembro de 1920, penosas discussões sobre o Caso.

Lá estavam o célebre químico americano William Elson, viúvo, acompanhado de sua filha Ellen; o riquíssimo engenheiro, eletricista, construtor de automóveis e aviões Arthur Gough e sua mulher; o general Sider; Saint-Jurieu, o senador, e a baronesa Pusice-Euprépie de Saint-Jurieu; o cardeal Romuald; a atriz Henriette Cyne; o dr. Bathybius e outros.

Tais personalidades diversas e notáveis poderiam ter trazido algum frescor ao lugar-comum sem esforço para atingir o paradoxo, bastaria que cada uma expressasse seu pensamento; a prática social, porém, logo reduziu os bons propósitos dessas pessoas, bem-pensantes e ilustres, à insignificância polida de uma conversação mundana.

A frase inesperada talvez provocasse o mesmo efeito que aquele, até hoje mal analisado, de uma pedra atirada num charco cheio de rãs – depois de um ligeiro desconforto, um interesse generalizado.

Ela poderia, antes de mais nada, produzir um outro resultado: sorrisos. Mas por infelicidade quem a pronunciara fora o anfitrião.

[…]

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O SUPERMACHO

Autor: Alfred Jarry
Editora: Ubu
Preço: R$ 37,43 (176 págs.)

 

 

 

 

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