Mais de uma luz – Fanatismo, fé e convivência no século XXI, poderoso livro de ensaios do romancista Amós Oz, acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Paulo Geiger. Trata-se da reunião de três ensaios: no primeiro, o autor revê e amplia seu artigo, já clássico, “Como curar um fanático”, defendendo a controvérsia e a diferença, pois, aponta, um fanático nunca entra em debate, reduz sua crítica à aniquilação do diverso, que abomina. O segundo ensaio, inspirado no livro Os judeus e as palavras, sugere uma bela reflexão sobre o judaísmo como eterno jogo de interpretação, reinterpretação, contrainterpretação: o judaísmo, para Amós Oz, é justamente a cultura do questionamento. O terceiro ensaio propõe um diálogo com a esquerda pacifista e sugere o abandono do sonho de um estado binacional como solução para os conflitos entre Israel e Palestina, defendendo a existência de dois estados nacionais diferentes.
Em entrevista concedida a Alessandro Giannini, para o jornal O Globo, o escritor analisa: “Mais e mais pessoas tendem ao extremismo. A maior parte à direita, às vezes à esquerda, às vezes a um profundo extremismo religioso. Isso acontece porque as questões estão se tornando cada vez mais complexas. Com isso, muitas pessoas buscam respostas simples, de uma sentença, que cubram amplamente tudo o que se está perguntando. E são sempre os extremistas, os fanáticos e os radicais que têm as respostas mais simples. Eles têm o tipo de resposta que cobre todas as perguntas do mundo”. Para Amós Oz, a grande mídia e as redes sociais são sintomáticas: “Também, muito frequentemente, as redes sociais espalham simplificações – respostas simples para questões complexas. ‘A culpa é da globalização’, ‘a culpa é do Islã’, ‘a culpa é do sionismo’, ‘a culpa é do colonialismo imperialista’. Não importa quem, o importante é culpar alguém. Isso é muito perigoso e infantil. Faz parte de um fenômeno da infantilização da raça humana. Respostas infantis, mídia infantil, política infantil. […] A imprensa e a mídia estão se tornando uma extensão da indústria do entretenimento. As pessoas leem os jornais, não para ponderar ou estudar ou ampliar seus horizontes, querem diversão ou escândalo ou sensacionalismo. Querem na mídia, na imprensa, na política”.
Para Maurício Meireles, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, Amós Oz apontou a curiosidade e a imaginação como possíveis antídotos ao fanatismo, uma vez que ambas alimentam-se da diferença entre os humanos. Infantilizadas pela indústria cultural, as pessoas tendem ao fanatismo por sua facilidade tanto maniqueísta quanto dogmática. Questionado sobre a literatura política como ferramenta crítica, ele ironiza: “Não escrevo ficção para enviar mensagens ideológicas. Seria um desperdício. Quando quero fazer isso, por exemplo, escrevo um artigo dizendo para o governo [israelense] ir para o diabo que o carregue. Mas eles leem e, por algum motivo que não entendo, não vão”.
Em outra entrevista, concedida a Carlos André Moreira, do jornal gaúcho Zero Hora, o escritor, já chamado de “traidor” por compatriotas, por defender a divisão de Israel em dois estados, um judeu e um palestino, pondera sobre o papel social da literatura e da crítica no trabalho com a linguagem e na identificação de sua corrupção: “Eu sou um escritor, trabalho com palavras todos os dias, do mesmo modo que um carpinteiro trabalha com a madeira ou um pedreiro com tijolos. Assim, eu sinto uma responsabilidade para com a linguagem. Penso que muitos dos maiores males deste mundo começam com a corrupção da linguagem, e é meu dever gritar a cada vez que vejo alguém usando uma linguagem contaminada. Quando algumas pessoas chamam outras de ‘estrangeiros indesejáveis’, ‘elementos negativos’, ‘câncer social’ ou ‘parasitas’, sei que é sempre aí que começam a violência, a perseguição e a crueldade. Daí meu senso de dever de trabalhar como o corpo de bombeiros do idioma, ou como um detector de fumaça, eu preciso gritar ‘fogo’ sempre que leio ou ouço essas palavras que, mais cedo ou mais tarde, vão gerar violência”. Oz comenta, ainda na mesma entrevista, a ascensão do terrorismo islâmico, de volta da xenofobia e de extremismos políticos: “Acho que há um aumento do fanatismo no mundo todo. Não apenas o fanatismo islâmico. Há muitos tipos diferentes de fanatismo em várias partes do mundo: fanatismo islâmico, judaico, cristão, radical, revolucionário, até mesmo ambiental. Acho que nós todos desfrutamos de algumas boas décadas porque Stalin e Hitler nos deram um presente inadvertido. Depois deles, por talvez 50 ou 60 anos, a maioria de nós aprendeu a temer os extremismos, os fanatismos e as ideologias totalitárias. Acho que agora, infelizmente, esse ‘presente’ está expirando seu prazo de validade e a humanidade está voltando ao normal: fanática, militante e bastante violenta. Logo, o curto episódio de moderação muito relativa está desaparecendo”.
Na introdução a Mais de uma luz, Amós Oz ressalva que os três artigos que o livro reúne “não foram escritos por um pesquisador, nem por um especialista, mas por um homem engajado cujos sentimentos às vezes também se envolvem. A conexão entre os artigos é meu desejo de lançar um olhar pessoal em temas que, entre nós israelenses, estão mergulhados em grande polêmica, alguns dos quais são para mim questão de vida ou morte. Estes artigos não têm a pretensão de abordar todas as facetas de cada controvérsia, de explorar todos os seus componentes, e certamente não pretendem ser a palavra final, mas buscam, sim, principalmente, a atenção daqueles cujas ideias são diferentes das minhas”.
A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para visualização.
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Trecho
Caro fanático
Então, como curar os fanáticos? Uma coisa é sair em perseguição a um bando de fanáticos armados nas montanhas do Afeganistão, nos desertos do Iraque ou nas cidades da Síria. Outra, completamente diferente, é combater o próprio fanatismo. Não tenho nenhuma nova proposta a fazer em relação às guerras nas montanhas e no deserto ou às perseguições on-line. Mas eis aí algumas ideias quanto à natureza do fanatismo e aos caminhos para contê-lo.
O ataque às Torres Gêmeas em Nova York no Onze de Setembro de 2001, bem como as dezenas de atentados em pleno centro de cidades e lugares de grande aglomeração em diversas partes do mundo, não se originou da ira dos pobres contra os ricos. A brecha entre a pobreza e a riqueza
um mal antigo, mas a nova onda de violência não é apenas — nem principalmente — uma reação a ela. (Se assim fosse, os ataques terroristas teriam vindo de terras africanas — que são as mais pobres — e teriam como alvo a Arábia Saudita e os emirados do Golfo, as mais ricas de todas.)
Essa guerra está sendo travada entre fanáticos, convencidos de que seus fins santificam todos os meios, e todos os outros, que têm para si que a própria vida é um fim, e não um meio. É uma luta entre os que afirmam que a justiça, seja qual for essa coisa à qual se referem quando pronunciam a palavra “justiça”, é mais importante do que a vida, e aqueles para quem a própria vida tem precedência sobre muitos outros valores.
[…]
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Autor: Amós Oz
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 26,18 (136 págs.)