Resenhas

A invenção de Morel

11 julho, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada”
– Fernando Pessoa

gravura de Norman Ackroyd, “Island Connemara”

A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, não é por exagero descrita por Jorge Luis Borges como perfeita. Vertiginoso labirinto metafísico, sua narrativa acompanha o movimento filosófico que a desdobra em representações e reflexões sobre a realidade, distópica e satírica.

Conhecemos-na através do relato em primeira pessoa de um narrador que conta ser um foragido da lei e, por isso, ter-se refugiado em uma ilha, inabitada e desconhecida. O motivo do relato é apresentado logo em suas primeiras linhas, o narrador escreve impulsionado pela necessidade de dar testemunho de um “milagre”: o verão antecipara-se e pessoas repentinamente apareceram naquela ilha, que habitava então há cem dias e onde nunca vira homem algum. Ao avistar os misteriosos visitantes, que vê dançando alegremente em meio ao capinzal cheio de cobras, apavorado, conta ter fugido para os cantos mais recônditos da ilha, de onde então escreve, em meio a pântanos e plantas aquáticas, atazanado por mosquitos, aterrorizado com seu futuro incerto. Anuncia que, caso sobreviva, escreverá uma “Defesa dos sobreviventes” e um “Elogio a Malthus”: “Atacarei, nessas páginas, os exploradores das florestas e dos desertos; provarei que o mundo,  com o aperfeiçoamento das polícias, dos documentos, do jornalismo, da radiotelefonia, das alfândegas, torna irreparável qualquer erro da justiça, é um inferno unânime para os perseguidos. Até agora não consegui escrever nada além desta folha que ontem não previa. São tantas as tarefas na ilha deserta! É tão insuperável a dureza da madeira! Tão mais vasto o espaço que o pássaro movediço!”

A ilha havia sido indicada ao narrador, ainda em Calcutá, por um italiano, segundo quem apenas um lugar, no qual “nem os piratas chineses, nem o barco pintado de branco da Fundação Rockfeller aportam”, seria destino possível para um perseguido como ele; disse-lhe: “É uma ilha. Em 1924, mais ou menos, gente branca andou por lá construindo um museu, uma capela, uma piscina. As obras estão concluídas e abandonadas. […] É foco de uma doença, ainda misteriosa, que mata de fora para dentro. Caem as unhas, o cabelo; morrem a pele e as córneas dos olhos, e o corpo sobrevive oito, quinze dias”. Sua vida era tão horrível, que decidiu partir; encontrou a ilha e passou a viver na ilha em meio às três construções, o museu, a capela e a piscina. Ao menos até a aparição daquelas pessoas, das quais esconde-se nos meandros insulares. Com água até os joelhos, o narrador venezuelano passa então a relatar sua difícil sobrevivência. Dia a dia marcada sobretudo pelo medo, quanto ao motivo da aparição das tais pessoas ter algo a ver consigo. Ele as observa, as estuda à distância e, entrementes, enamora-se por uma bucólica figura feminina que diariamente contempla o pôr-do-sol.

A invenção de Bioy Casares desdobra-se em espelhos múltiplos e sua prosa, de sagacidade fantástica, confunde a verdade aparente e a verdade essencial, através de um jogo de simulacros e reflexos em torno do ser. A moça por quem o narrador apaixona-se, Faustine, bem como todas as outras pessoas, são frutos da “invenção de Morel” – incluindo o próprio Morel: são imagens. A invenção é uma máquina que capta momentos, para registrá-los e reproduzí-los eternamente; às custas, porém, da morte das pessoas filmadas. Morel levara seus amigos mais queridos à ilha, para que passassem momentos agradáveis, que seriam filmados por sua invenção e projetados, em eterna alegria, reproduzindo apenas a consciência que tinham naqueles exatos momentos captados. A morte dos amigos é indiferente ao inventor, que confessa não ter hesitado em investir sua fortuna na compra da ilha e na construção do museu, da capela e da piscina:

“Aluguei aquele navio de carga que vocês chamam o iate, para que a nossa vinda fosse mais agradável.

A palavra museu, que uso para designar esta casa, é uma reminiscência do tempo em que eu trabalhava nos projetos de minha invenção, sem conhecimento de seu alcance. Na época pensava erigir grandes álbuns ou museus, familiares e públicos, com essas imagens.

Chegou a hora de anunciar: esta ilha, com seus edifícios, é o nosso paraíso particular. Tomei algumas precauções – físicas, morais – para sua defesa: acredito que o protegerão. Aqui estaremos eternamente – mesmo que partamos amanhã – repetindo consecutivamente os momentos da semana e sem nunca poder sair da consciência que tivemos em cada um deles, porque assim nos gravaram os aparelhos; isso permitirá que nos sintamos em uma vida sempre nova, porque não haverá outras lembranças em cada momento da projeção afora as que havia no momento correspondente da gravação, e porque o futuro, muitas vezes deixado para trás, sempre conservará seus atributos”.

Borges, no prólogo à obra, indica que Morel alude filialmente a Moreau, “outro inventor ilhéu”, referindo-se ao romance de H. G. Wells, A ilha do dr. Moreau. Bioy, como Wells, utiliza a ciência, a técnica, para iluminar e ironizar questões morais. Ao passo que o dr. Moreau cria bizarras criaturas monstruosas, cujos corpos têm partes humanas e outras animais, Morel cria cristalizações da vida, das quais exige sua morte.  Ambos experimentos parecem metafóricos, há um problema ético com a manipulação da vida, perturbador, por trás de ambos. Para ambos narradores, ambas ilhas são a eles locais apenas melhores daqueles em que estavam imediatamente antes, mas longe de oferecerem-lhes condições agradáveis de vida, e ambos sofrem de uma profunda solidão, ilhados, em meio a criações que não compreendem e as quais temem.

A solidão do expatriado de Bioy torna-se aguda quando descobre que as pessoas que teme, bem como aquela que ama, são imagens do passado, incessantemente presentificadas por uma máquina que funciona com o força motriz das marés – ou seja, que funciona necessariamente, à revelia de quaisquer ímpetos de vontade, maquinalmente. À parte a impotência quanto ao maquinário, sua solidão é-lhe sobretudo frustrante por dar-se em meio às reproduções, tornando-o quase um espectador cinematográfico, a elas alheio, delas separado por uma inadequação de tempos e de graus de representação. Os diferentes planos de suas existências díspares permitem ao narrador reconhecer entre eles relações inquietantes de atração e repulsa simutâneos. O fascínio pelas imagens, sobretudo por Faustine, torna-se uma obssessão; aquela alienação tem algo de felicidade, ainda que seja sua simples aparência:
“A eternidade rotativa pode parecer atroz ao espectador; é satisfatória para seus membros. Livre de más notícias e de doenças, vivem sempre como se fosse a primeira vez, sem recordar as vezes anteriores. […] Acostumado a ver uma vida que se repete, acho a minha irreparavelmente fortuita. Os propósitos de emenda são vãos; não tenho próxima vez, cada momento é único, distinto, e muitos se perdem nos descuidos. […] Pode-se pensar que nossa vida é como uma semana dessas imagens e que volta a se repetir em mundos contíguos”.

Além da criação de seu invento propriamente dito, as construções erguidas por Morel podem ser especuladas metaforicamente. Se o museu e a igreja representam instituições dogmaticamente respeitadas, capazes de consentir autoridade àqueles a quem abrem seus braços, a piscina, por outro lado, compartilha com ambas a espetacularização, possível índice risível da frivolidade e do tédio inerentes à sociedade moderna, cuja ode ao espetáculo delineia-se desde seus primórdios. Mesmo ironicamente, como quando as imagens, nosso narrador então assim as percebe, nadam na piscina repleta de lama e animais típicos de lagoas; a condição verdadeira do ambiente é-lhes totalmente indiferente: são hologramas em movimento, restos de sobrevivências imagéticas: simulacros. Condenados a repetirem os mesmos atos, à revelia de sua própria vontade, em reprodução irrestrita, são, porém, fascinante espetáculo ao narrador. A crítica, política e moral, é esteticamente sugerida.

Surge assim outro autor de ilhas que também parece ressoar na invenção de Morel: Thomas More e sua Utopia. Contudo, se a ilha de Morel é em certa medida utópica, o é de maneira cortante e sarcástica: sua utopia é imagem; e é morte. Cristalização no tempo, as imagens são projeções de uma pós-vida, em forma de morte anacrônica do si-mesmo. Resguardam um tempo fantasmagórico – passado que retorna, um resto vital da memória que na imagem inscreve-se. Como os olhos de Napoleão que olham Barthes quando ele os olha – olhos de outro tempo, distante, presentificados eternamente na fotografia -, também a cristalização temporal da máquina de Morel mostra que de alguma forma, a imagem é sempre morte e sobrevivência. Sua máquina cria um não-lugar em tempo algum e sua utopia não é uma esperança ou um otimismo, mas uma necessidade e um desejo: de alcançar uma eternidade de alegrias e amizade. Ainda que apenas espectral. Utopia que desdobra-se em distopia quando nas mãos do narrador, que encarna conscientemente a tensão dialética da imagem enquanto relação entre tempos, lançando-se rumo a um devir, de antemão frustrado.

Ser e nada são aqui opostos que se confundem. A aniquilação do ser atinge seu momento mais dramático quando o narrador coloca-se, mais do jamais o fizera até então, como um homem político, e politicamente desencantado, parte de um contexto histórico do qual fora desgarrado e que inverte sua situação perante a lei e o leitor: a possível desconfiança no narrador foragido e perseguido – cuja fidedignidade é abalada ao longo de todo o diário graças às “notas do editor”, de Bioy, que constantemente o desmentem ou questionam – transforma-se em solidariedade, histórica e humana, ao exilado político: apenas nas duas últimas páginas do livro sabemos que trata-se de um militante bolivariano perseguido na Venezuela por “milícias e fardas de aluguel”. Profundamente desiludido da pátria que lhe fora real, mas encantado pela imagem de Faustine, que como o canto das sereias o enebria à morte: torna-se, ele também, pura imagem a ser reproduzida naquela ilha desconhecida.  “A verdadeira vantagem de minha solução”, diz o narrador, “é fazer da morte o requisito e a garantia da eterna contemplação de Faustine”. Só então ele ganha uma particularidade histórica aos olhos do leitor; à beira de perdê-la irremediavelmente e por sua própria vontade.

O encanto e o desencanto reverberam-se e ressoam a alegoria, política e moral; uma imagem lacunar do futuro, sem horizonte algum de salvação a não ser a redenção pelo papel constitutivo das sobrevivências na própria dinâmica da imaginação e da memória; bem como pelo papel desempenhado pelas funções políticas de seus usos, poderia-se dizer, uma vez que a invenção filma e reproduz as imagens. A invenção utópica de Morel, quando utilizada pelo narrador para filmar a si mesmo, na esperança de encontrar-se com o objeto de sua paixão, tão platônica, e assim morrer, torna-se símbolo de um pessimismo distópico humanamente dramático. A alegoria é tão distópica quanto poética: se por um lado, reduz metaforicamente o contemporâneo à atualidade das banalidades que sustentam a glorificação da imagem, por outro, deixa entrever a imagem como um operador temporal da sobrevivência, dialética, pois inscreve em si um jogo entre presente e passado. A imagem encarna o sonho, o desejo. Uma concepção do mundo e de sua atualidade como espaço de imagens capaz de organizar o pessimismo na conduta política, se deslocarmos as palavras de Walter Benjamin aqui para nosso contexto.

As “ruminações” finais do narrador abrigam as lembranças do país natal e um vislumbre de esperança que afinal a invenção de Morel não lhe faça dano algum, “que Faustine viva e que, dentro em pouco, eu saia à sua procura; que juntos riamos destas falsas vésperas da morte; que cheguemos à Venezuela; a outra Venezuela, porque, para mim, tu és, Pátria, os senhores do governo, as milícias com fardas de aluguel e pontaria mortal, a perseguição unânime na rodovia para La Guaira, nos túneis, na fábrica de papel de Maracay; apesar de tudo, eu te amo e nesta dissolução muitas vezes te saúdo; és também a época de El Cojo Ilustrado, um grupo de homens (e eu, um garoto, atônito, reverente) sob os gritos de Orduño, das oito às nove da manhã, melhorados pelos gritos de Orduño, desde o Panteão até o café de Roca Tarpeya, no bonde 10, aberto e desconjuntado, fervorosa escola literária”. Ao tornar-se único, no café de Roca Tarpeya, torna-se todos; parte de uma multidão política que grita e ama, entre as lembranças de reverência ao quadro de Tito Salas, “O general Bolívar cruza a fronteira da Colômbia”. Seu suicídio é por isso profundamente distópico, tanto quanto sarcástico; a imagem, eternamente repetida, cristalizada, frustra o porvir de maneira irônica sob o símbolo da figura quixotesca, apaixonada, lutando contra fantasmas e que torna-se, ela própria, um fantasma também. Encarnando, enquanto imagem, a irresolução do presente e do passado, mas também os permeios entre o sonho, a loucura, a realidade.

A distopia de Bioy, publicado em 1940 – fim da chamada “década infame” da Argentina, cujo início deu-se em 1930, com o golpe civil-militar que derrubou o presidente Hipólito Yrigoyen, liderado por José Félix Uriburu, e cujo término deu-se em 1943 com outro golpe militar, que derrubou o presidente Ramón Castillo, período marcado por fraudes eleitorais sistemáticas, repressão de qualquer oposição e corrupção generalizada – pode ser colocada à luz da também distópica “morte dos vaga-lumes”, do cineasta Pier Paolo Pasolini, em seu artigo “O vazio do poder na Itália”, publicado em 1975 – e conhecido como “O artigo dos vaga-lumes”. Pasolini lamenta a morte dos vaga-lumes, ou seja, dos sinais humanos da inocência, aniquilados pela luz totalizante e feroz dos projetores do fascismo triunfante. É o filósofo francês Georges Didi-Huberman quem faz uma bela leitura sobre o artigo do cineasta italiano: “Tal não seria, em todo caso, a ‘glória’ miserável dos condenados: não a grande claridade das alegrias celestiais bem merecidas, mas o fraco lampejo doloroso dos erros que se arrastam sob uma acusação e um castigo sem fim”. Trata-se, para Pasolini, do diagnóstico de um genocídio cultural, levado a cabo por um novo fascismo, mais profundo que o mussoliniano, que impõe um modelo total e incondicional que renega as diferentes culturas particulares: “O verdadeiro fascismo”, diz ele, é aquele “que conduz sem carrascos nem execuções em massa, à supressão de grandes porções da própria sociedade”; é aquele que tem por alvo os valores, as linguagens, os gestos, os corpos, as almas das pessoas. Para Pasolini, “a tragédia é que não existem mais seres humanos; só se veem singulares engenhocas que se lançam umas contra as outras”. As imagens da ilha de Morel são em certa medida essas engenhocas, homogeneizações humanas que restringem sua condição humana a seu sentido mais superficial, aparente. Grandes luzes, seguindo a analogia de Pasolini sob a análise que dele faz Didi-Huberman, que ofuscam as pequenas luzes, os vaga-lumes, das ideias políticas no seu sentido mais primordial e revolucionário, com toda a potencialidade que carregam. O constrangimento do porvir, restrito à reprodução repetitiva, exaure a potencialidade lúdica da utopia, revertendo-a em seu avesso. Como diz Otto Maria Carpeaux, “A invenção de Morel é uma sátira. Mas objeto da sátira não é a técnica e, sim, a condição humana. Pois assim como o fugitivo de Bioy Casares temos todos nós a escolha, apenas, entre a morte pela peste e a prisão da vida – até a morte”. A própria condição humana, sempre preocupação constante nas composições de Bioy Casares, é colocada em questão. Em termos éticos, políticos e oníricos.

Também é Carpeaux quem aponta: “O romancista argentino constrói seus mundos irreais mas possíveis porque sem contradições internas […], de modo que uma afirmação pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. São mundos impossíveis dentro da nossa realidade, mas perfeitamente possíveis fora dela, porque em sua construção não entrou nenhuma contradição. São possíveis geometricamente, aritmeticamente, logicamente. Mas moralmente?”.

Não à toa, trata-se de uma ilha. A ilha tem sentidos metafóricos que vão da interiorização subjetiva mais profunda, à possibilidade de alcançar com a vista a totalidade do horizonte. Destino trágico dos resquícios de naufrágios, reduto de isolamento, lugar terrestre de intensa onipresença marinha e daquilo que ela tem de lúdica, inebriante e misteriosa, são redutos metafóricos daquilo que se aspira, bem como do que é intransponível.

 

_____________

“O fato de não podermos compreender nada fora do tempo e do espaço talvez sugira que nossa vida não é apreciavelmente distinta da sobrevivência a ser obtida com esse aparelho”.

_____________

 

 

 

A INVENÇÃO DE MOREL

Autor: Adolfo Bioy Casares
Editora: Globo
Preço: R$ 27,92 (112 págs.)

 

 

 

 

Send to Kindle

Comentários