“No lugar em que agora queimam livros, hão-de queimar homens amanhã” – Heine, citado por George Steiner, em Tigres no espelho.
George Steiner é autor de tão extensa quanto diversificada obra, abrangendo sobretudos as áreas de filosofia, crítica literária e literatura. Nascido em 1929, em Paris, Steiner ensinou literatura em universidades de todo o mundo e tornou-se conhecido como um humanista pessimista, interrogando a espantosa contradição entre a exuberância do pensamento ocidental e os assassinatos em massa e genocídios praticados por essa mesma cultura, sobretudo em relação aos judeus pelos nazistas alemães – como o nazismo pôde se desenvolver no próprio seio da alta cultura?, pergunta. “Aqueles que queimam livros, que banem e matam os poetas, sabem o que fazem. O poder indeterminado dos livros é incalculável”.
Para Steiner, porém, o pessimismo da análise da história da humanidade tem um remédio otimista: os livros são a nossa chave de acesso para nos tornamos melhores do que somos. É o que discute em Aqueles que queimam livros, que acaba de ser lançado no Brasil pela editora Âyiné, com tradução de Pedro Fonseca.
Segundo o autor, é inquestionável a capacidade da leitura de produzir uma transcendência intelectual, responsável por suscitar discussões, alegorizações e desconstruções sem fim. Tanto, que um livro pode sobreviver em qualquer parte nesta terra, envolvo em um silêncio inquebrantável, e a qualquer momento é possível que seja ressuscitado.
O encontro com o livro que vai mudar a nossa vida, pode ser completamente casual. O texto que nos converterá a uma fé, nos fará aderir a uma ideologia, dará à nossa existência um fim e um critério, podia estar ali a nos esperar na estante dos livros em promoção, dos livros usados e em desconto. Segundo o humanista, possivelmente até empoeirado e esquecido, na estante exatamente ao lado do livro que procurávamos.
Steiner é um analista incansável da “troca vital” que ocorre entre um livro e seu leitor, mas medita também sobre a fragilidade dessa paixão. Ele evoca o futuro incerto de nossos “modos de leitura” atuais e as fogueiras de livros do passado. A ressalva é sempre: “Os fundamentalistas de todas as crinas são queimadores instintivamente de livros”.
Há uma alquimia das palavras e da criação, que fazem o livro, segundo o autor; porém, estas palavras deitadas no papel só revivem quando lidas. O leitor sério trabalha com o autor: “Compreende um texto, o ‘ilustra’ no caderno de nossa imaginação, de nossa memória e de nossa representação combinatória para, na medida de nossos meios, o re-criar”. A intimidade, a solitude, que permitem o reencontro profundo entre o texto e sua recepção, entre a letra e o espírito, é, hoje em dia, “uma singularidade excêntrica”, psicológica e socialmente suspeitas, embasada pelo sistema escolar – sobretudo visível no colapso do sistema secundário -, no qual prevalece amplamente “uma forma de amnésia planejada”. Os adolescentes americanos, por exemplo, para o autor, seriam incapazes de realizar leituras em silêncio.
Em entrevista concedida a Borja Hermoso, para o jornal El País, Steiner disse, no ano passado, sobre a importância da memorização, sobretudo da poesia: “A poesia me ajuda a concentrar, porque ajuda a memorizar, e eu, sempre, como professor, defendi a memorização. Eu adoro. Carrego dentro de mim muita poesia; é, como dizer, as outras vidas da minha vida. […] Estou enojado com a educação escolar de hoje, que é uma fábrica de incultos e que não respeita a memória. E que não faz nada para que as crianças aprendam as coisas com a memorização. O poema que vive em nós, vive conosco, muda conosco e tem a ver com uma função muito mais profunda do que a do cérebro. Representa a sensibilidade, a personalidade”. O professor prossegue a importante análise: “[…] há algo que me preocupa: os jovens já não têm tempo… De ter tempo. Nunca a aceleração quase mecânica das rotinas vitais tem sido tão forte como hoje. E é preciso ter tempo para buscar tempo. E outra coisa: não há que ter medo do silêncio. O medo das crianças ao silêncio me dá medo. Apenas o silêncio nos ensina a encontrar o essencial em nós”.
Na mesma entrevista, Steiner fala sobre a importância das utopias e do erro, possibilidades subtraídas aos jovens contemporâneos, a quem o mundo oferecido restringe-se à ambição de dinheiro: “O erro é o ponto de partida da criação. Se temos medo de cometer erros, nunca podemos assumir os grandes desafios, os riscos. É que o erro retornará? É possível, é possível, existem alguns sinais. Mas ser jovem hoje em dia não é fácil. O que estamos deixando a eles? Nada. Incluindo a Europa, que já não tem mais nada para lhes oferecer. O dinheiro nunca falou tão alto quanto agora. O cheiro do dinheiro nos sufoca, e isso não tem nada a ver com o capitalismo ou o marxismo. Quando eu estudava, as pessoas queriam ser membros do Parlamento, funcionários públicos, professores… Hoje mesmo a criança cheira o dinheiro, e o único objetivo já parece querer ser rico. E a isso se soma o enorme desprezo dos políticos em relação aos que não têm dinheiro. Para eles, somos apenas uns pobres idiotas. E isso Karl Marx viu com bastante antecedência. No entanto, nem Freud nem a psicanálise, com toda sua capacidade de análise dos traços patológicos, foram capazes de compreender nada disso”. O dinheirismo, fundamentalista por natureza, também é um queimador de livros, mostra o humanista. Voltando à questão da perseguição dos judeus, Steiner, que teve que fugir do nazismo junto com seus pais e viajar de Paris a Nova York, conclui a entrevista pontuando o irredutível otimismo concedido pelos livros, sua verdadeira pátria: “Direi algo que vai causar impacto. Eu devo tudo a Hitler. Minhas escolas, meus idiomas, minhas leituras, minhas viagens… tudo. Em todos os lugares e situações há coisas a aprender. Nenhum lugar é chato se me dão uma mesa, bom café e alguns livros. Isso é uma pátria. ‘Nada humano me é alheio’”.
Autor: George Steiner
Editora: Âyiné
Preço: R$ 12,00 [e-book]