“Por que depois de quinhentos anos de domínio do capital, no início do terceiro milênio, os trabalhadores ainda são massivamente definidos como pobres, bruxas e bandoleiros? De que maneira se relacionam a expropriação e a pauperização com o permanente ataque contra as mulheres? O que podemos aprender sobre o desdobramento capitalista, passado e presente, quando examinado em perspectiva feminina?” – Silvia Federici.
Calibã e a bruxa – mulheres, corpo e acumulação primitiva, importante livro de Silvia Federici, acaba de ganhar uma cuidadosa edição brasileira, pela tão recente quanto promissora editora Elefante, com tradução realizada pelo Coletivo Sycorax. O livro, publicado originalmente em 2004, é referência incontornável para a análise histórica sobre a integração do corpo feminino e da reprodução biológica na máquina de produção capitalista. A autora detalha como a exploração do corpo feminino é inseparável da lógica capitalista, desde seu surgimento ainda medieval, e mostra como a resistência dos corpos e dos saberes propriamente femininos coexiste necessariamente com sua exploração.
Fundamentada em vasta pesquisa documental, iconográfica e bibliográfica, Federici argumenta que os assassinatos cometidos sob a justificativa da chamada caça às bruxas são um aspecto fundacional do sistema capitalista, uma vez que designou às mulheres o papel de “produtoras de mão de obra”, obrigando-as, pelo terror, a exercer gratuitamente os serviços domésticos necessários para sustentar os maridos e os filhos homens que seriam usados como força de trabalho do sistema nascente.
Segundo a autora, “as acadêmicas feministas desenvolveram um esquema interpretativo que lança bastante luz sobre duas questões históricas muito importantes: como explicar a execução de centenas de milhares de ‘bruxas’ no começo da Era Moderna, e por que o surgimento do capitalismo coincide com essa guerra contra as mulheres. Segundo esse esquema, a caça às bruxas buscou destruir o controle que as mulheres haviam exercido sobre sua própria função reprodutiva, e preparou o terreno para o desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor. Essa interpretação também defende que a caça às bruxas tinha raízes nas transformações sociais que acompanharam o surgimento do capitalismo”. É a compreensão deste esquema, através da articulação da perseguição às bruxas e da exigência capitalista por um ataque genocida contra as mulheres, cujas circunstâncias históricas específicas ainda não haviam sido investigadas, que o livro de Silvia Federici busca esclarecer. Partindo da análise da caça às bruxas, no contexto das crises demográfica e econômica europeias dos séculos XVI e XVII e das políticas de terra e trabalho da época mercantilista, a autora relaciona-a ao desenvolvimento contemporâneo de uma nova divisão sexual do trabalho que confinou as mulheres ao trabalho reprodutivo: “A perseguição às bruxas — assim como o tráfico de escravos e os cercamentos — constituiu um aspecto central da acumulação e da formação do proletariado moderno, tanto na Europa como no Novo Mundo”.
Silvia Federici é uma intelectual militante de tradição feminista marxista autônoma. Nascida em Parma em 1942, mudou-se para os Estados Unidos em 1967, onde foi cofundadora do International Feminist Collective (Coletivo Internacional Feminista), participou da Wages for Housework Campaign (Campanha por um salário para o trabalho doméstico) e contribuiu com o Midnight Notes Collective (Coletivo Notas da Meia-noite). Durante a década de 1980, foi professora na Universidade de Port Harcourt, na Nigéria, onde acompanhou a organização feminista Women in Nigeria (Mulheres na Nigéria) e contribuiu para a criação do Committee for Academic Freedom in Africa (Comitê para a Liberdade Acadêmica na África). Atualmente, é professora emérita da Universidade de Hofstra, em Nova York. É autora também de Revolution at Point Zero: Housework, Reproduction, and Feminist Struggle [Revolução em ponto zero: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista] e de inúmeros artigos sobre feminismo, colonialismo, globalização, trabalho precário.
De acordo com Federici, o título, Calibã e a bruxa, foi inspirado na peça A tempestade, de Shakespeare, e faz alusão a duas personagens da peça, Calibã e sua mãe, Sycorax, uma bruxa, para simbolizar a dimensão sexista e racista que o capital impõe. Ao longo do livro, a autora argumenta que o feminicídio praticado na “caça às bruxas” medieval foi um dos aspectos fundacionais do capitalismo, pois teve como decorrência a imposição, às mulheres, da reprodução da força de trabalho como um trabalho forçado e sem remuneração. O título, segundo a autora, “reflete o desejo de repensar o desenvolvimento do capitalismo a partir de um ponto de vista feminista, ao mesmo tempo evitando as limitações de uma ‘história das mulheres’ separada do setor masculino da classe trabalhadora. Na minha interpretação, no entanto, Calibã não apenas representa o rebelde anticolonial cuja luta ressoa na literatura caribenha contemporânea, mas também é um símbolo para o proletariado mundial e, mais especificamente, para o corpo proletário como terreno e instrumento de resistência à lógica do capitalismo. Mais importante ainda, a figura da bruxa, que em A tempestade fica relegada a um segundo plano, neste livro situa-se no centro da cena, enquanto encarnação de um mundo de sujeitos femininos que o capitalismo precisou destruir: a herege, a curandeira, a esposa desobediente, a mulher que ousa viver só, a mulher obeah que envenenava a comida do senhor e incitava os escravos à rebelião”.
O livro apresenta um contraponto ao pensamento de Karl Marx, ao passo que afirma a acumulação primitiva de capital não como um aspecto precursor do capitalismo, mas um processo inerente à continuidade do sistema. De acordo com Tadeu Breda, da editora Elefante, em artigo, a autora filosoficamente “dialoga ainda com de Michel Foucault, a quem critica duramente por não haver levado em conta em sua História da sexualidade a campanha contra o corpo feminino e o extermínio de centenas de milhares de mulheres na fogueira”. Nas palavras da autora, o estudo sobre a caça às bruxas “desafia a teoria de Foucault relativa ao desenvolvimento do ‘biopoder’, despojando-a do mistério com que cobre a emergência desse regime. Foucault registra a virada – alegadamente na Europa no século XVIII – de um tipo de poder constituído sobre o direito de matar para um poder diferente, que se exerce por meio da administração e da promoção das forças vitais, como o crescimento da população. Porém, ele não oferece pistas sobre suas motivações. No entanto, se situamos essa mutação no contexto do surgimento do capitalismo, o enigma desaparece: a promoção das forças da vida se revela como nada mais que o resultado de uma nova preocupação pela acumulação e pela reprodução da força de trabalho. Também podemos observar que a promoção do crescimento populacional por parte do estado pode andar de mãos dadas com uma destruição massiva de vidas; pois em muitas circunstâncias históricas – como, por exemplo, a história do tráfico de escravos – uma é condição para a outra. Efetivamente, num sistema em que a vida está subordinada à produção de lucro, a acumulação de força de trabalho só pode ser alcançada com o máximo de violência para que, nas palavras de Maria Mies, a própria violência se transforma na força mais produtiva”.
Na lançamento do livro em São Paulo, dia 20 de julho, a historiadora italiana falou sobre como, no período do feudalismo, “havia muita luta, porque as pessoas percebiam que estavam sendo afastadas da terra e de suas vidas comunitárias naquele tempo que viria ser reconhecido como um embrião do capitalismo”. Em artigo sobre o lançamento, escrito para a revista Cult, Helô D’Angelo aponta que, até aquele período, “existiam mulheres com acesso à terra: eram lavradoras, pedreiras, parteiras e curandeiras. Mulheres que possuíam conhecimentos sobre ervas e sobre a natureza, e que, principalmente, tinham autonomia sobre seus corpos, decidindo elas mesmas sobre a gravidez ou o aborto”. Para Silvia Federici, “ali, os processos reprodutivos estavam em pé de igualdade com a produção”. A caça às bruxas teria sido uma forma de sequestro da autonomia feminina. Como diz D’Angelo, “as ‘bruxas’, postas como ‘servas do diabo’, eram todas mulheres sábias, independentes, irreverentes e muitas vezes pobres e solteiras. Enquanto morriam nas fogueiras, queimava junto com elas a resistência ao incipiente capitalismo. ‘Ocorreu assim, muito lentamente, uma separação da produção e da reprodução, e uma hierarquização da divisão sexual do trabalho’, diz Federici, explicando que, enquanto as mulheres eram condenadas como bruxas ou relegadas ao lar, os homens passaram a trabalhar fora de casa e a receber um pagamento por isso. O que sobrou para as mulheres, então, foi o trabalho reprodutivo – ter filhos, ou, em outras palavras, reproduzir a mão de obra”. A pior decorrência, para a italiana, “é que a reprodução dentro do sistema capitalista não é vista como um trabalho, mas como um dom natural, biológico”; assim, paulatinamente as mulheres foram afastadas do trabalho e tornaram-se dependentes dos homens, que podiam trabalhar e deter o ganho do dinheiro na sociedade. A opressão das mulheres e seu afastamento do trabalho, segundo a autora, “eram bases criadas para o sistema capitalista, e que funcionam até hoje”.
Em entrevista concedida a Jessica Zeller, Federici afirma que a brutalidade e a frequência do feminicídio aumenta, atualmente, no mundo todo: “Na Índia e em alguns países africanos, percebemos uma verdadeira ‘caça às bruxas’ contra as mulheres. Em regiões do interior do Canadá há assassinatos em série. E a Itália aprovou há alguns anos uma lei contra o feminicídio. Isso é muito sintomático. Na minha infância, na Itália, falava-se sobre um caso desses durante meses, tão extraordinário ele era. Hoje, há no país assassinatos de mulheres quase que diariamente”. Para a autora, “o feminicídio está sempre relacionado com o desenvolvimento geral de uma sociedade. A ideia que se esconde por trás dele é intimidar e aterrorizar as mulheres. As razões específicas variam. Na América Latina, por exemplo, ele atinge frequentemente mulheres que vivem em regiões onde há megaprojetos acontecendo ou sendo planejados — projetos que servem à exploração desrespeitosa de matéria-prima. Nos protestos das populações locais, as mulheres estão muitas vezes na linha de frente. Ao matá-las, demonstra-se à comunidade que resistir é inútil”.
O Coletivo Sycorax, responsável pela tradução do livro, é um coletivo de mulheres, que define-se como: “um sabá de pessoas que conjuram traduções. O nome remete à figura da bruxa da peça A Tempestade, de Shakespeare. Na primeira tradução realizada pelo coletivo, o livro Calibã e a Bruxa, de Silvia Federici, a bruxa – que na Tempestade se encontra confinada a um segundo plano – situa-se no centro da cena, enquanto encarnação de um mundo de sujeitos femininos que o capitalismo destruiu”.
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.Trechos.
“[…] Meu interesse nessa pesquisa foi motivado, originalmente, pelos debates que acompanharam o desenvolvimento do movimento feminista nos Estados Unidos em relação às raízes da ‘opressão’ das mulheres e das estratégias políticas que o próprio movimento deveria adotar na luta por libertação. Naquele momento, as principais perspectivas teóricas e políticas a partir das quais se analisava a realidade da discriminação sexual vinham sendo propostas, principalmente, por dois ramos do movimento das mulheres: as feministas radicais e as feministas socialistas. Do meu ponto de vista, no entanto, nenhum deles oferecia uma explicação satisfatória sobre as raízes da exploração social e econômica das mulheres. Na época, eu questionava as feministas radicais pela sua tendência a explicar a discriminação sexual e o domínio patriarcal a partir de estruturas trans-históricas, que presumivelmente operavam com independência das relações de produção e de classe. As feministas socialistas, por outro lado, reconheciam que a história das mulheres não podia ser separada da história dos sistemas específicos de exploração e, em sua análise, davam prioridade às mulheres como trabalhadoras na sociedade capitalista. Porém, o limite de seu ponto de vista (segundo o que eu entendia naquele momento) estava na incapacidade de reconhecer a esfera de reprodução como fonte de criação de valor e exploração, o que as levava a localizar as raízes da diferença de poder entre mulheres e homens na exclusão das mulheres do desenvolvimento capitalista – uma posição que, mais uma vez, nos obrigava a depender de esquemas culturais para dar conta da sobrevivência do sexismo dentro do universo das relações capitalistas.
Foi nesse contexto que tomou forma a ideia de esboçar a história das mulheres na transição do feudalismo para o capitalismo. […]”
“[…] Com efeito, a lição política que podemos extrair de Calibã e a bruxa é que o capitalismo, enquanto sistema econômico-social, está necessariamente ligado ao racismo e ao sexismo. O capitalismo precisa justificar e mistificar as contradições incrustadas em suas relações sociais – a promessa de liberdade frente à realidade da coação generalizada, e a promessa de prosperidade frente à realidade de penúria generalizada – difamando a ‘natureza’ daqueles a quem explora: mulheres, sujeitos coloniais, descendentes de escravos africanos, imigrantes deslocados pela globalização.
No cerne do capitalismo, encontramos não apenas uma relação simbiótica entre o trabalho assalariado contratual e a escravidão, mas também, e junto com ela, a dialética que existe entre acumulação e destruição da força de trabalho, tensão pelas quais as mulheres pagaram o preço mais alto, com seus corpos, seu trabalho e suas vidas.
É, portanto, impossível associar o capitalismo com qualquer forma de libertação ou atribuir a longevidade do sistema à sua capacidade de satisfazer necessidades humanas. Se o capitalismo foi capaz de reproduzir-se, isso se deve somente à rede de desigualdades que foi construída no corpo do proletariado mundial e à sua capacidade de globalizar a exploração. Esse processo segue desenvolvendo-se diante de nossos olhos, tal como se deu ao longo dos últimos quinhentos anos.
A diferença é que, hoje, a resistência ao capitalismo também atingiu uma dimensão global.”
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Autor: Silvia Federici
Editora: Elefante
Preço: R$ 42,50 (464 págs.)