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Impressões de Foucault

17 agosto, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Foucault entre José Carlos Castro e Benedito Nunes, professores de Filosofia da Universidade Federal do Pará – fotografia realizada durante a visita de Foucault a Belém, em Novembro de 1976

Acaba de ser lançado, em primorosa edição, Impressões de Michel Foucault, pela interessante editora n-1.

Roberto Machado, professor titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, é considerado, tanto no meio acadêmico quanto fora dele, um dos mais brilhantes intérpretes no Brasil das obras de Michel Foucault e Gilles Deleuze, notório sobretudo pela organização de Microfísica do poder. Machado conta que, após ter publicado trabalhos sobre Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze e Marcel Proust, pretendeu “se reinventar pela escrita”, contando a história de sua longa relação com Michel Foucault, vivida nos cursos do Collège de France e nas vindas do filósofo francês ao Brasil. Trata-se, segundo o autor, da união entre “desejo de reflexão e desejo de ficção”, sem detrimento do rigor conceitual.

Como diz Peter Pál Pelbart, no livro, Roberto Machado “conduz o leitor à atmosfera parisiense que rodeava Foucault, povoada de cineastas, escritores, polêmicas e anedotas. Pelas lentes desse filósofo nascido no Recife e radicado no Rio, apreendemos fragmentos da vida pública e privada de um dos mais importantes pensadores do século XX. O que surge daí não é um monumento, mas uma aventura intelectual e vital, graças à capacidade que Foucault possuía de se deslocar, se desprender de si, mudar, surpreender”. Para o filósofo húngaro, trata-se do “testemunho vivo do encontro entre nossos trópicos nem sempre tristes e a efervescência intelectual de uma geração radical de pensadores franceses que marcou definitivamente nossa própria maneira de viver e de pensar”.

De acordo com Paulo Magalhães, em artigo publicado no semanário digital Edgarvirtual, da UFBA, Roberto Machado conheceu pessoalmente Foucault em 1973, no curso “A verdade e as formas jurídicas”, que o francês havia convidado a ministrar pelo Departamento de Letras da PUC-Rio: “Co-traduzido por Machado, e posteriormente publicado, foi nesse curso que Foucault ‘apresentou uma genealogia da relação entre saber e poder, privilegiando as práticas judiciárias e tratando do poder disciplinar’”. Para Roberto Machado, marcava uma nova fase intelectual do filósofo francês, caracterizada pela investigação sobre os chamados dispositivos políticos e os mecanismos de poder: Microfísica do poder desenvolveu essa nova ideia de Foucault. Paulo Magalhães conta que o “segundo passo na relação de Roberto Machado com Foucault foi frequentar, ano após ano, os cursos do pensador francês no Collège de France. O filósofo ‘falava com aquela solenidade de orador fúnebre do século XVII, mas junto com esse lado orador tinha um outro lado rato de biblioteca’.  Coexistiam nele ‘o grande orador e o pesquisador de fontes primárias com uma capacidade extraordinária de achar documentos esquecidos pelo tempo e criar novas hipóteses’. Segundo Machado, ‘para quem quer pesquisar utilizando o método de Foucault, seus cursos são mais importantes que seus livros, porque trazem muito material factual e são espaços abertos para diálogos, suposições, construções de hipóteses e teorias a partir da pesquisa’. Isso, em sua visão, é diferente dos livros de Foucault, ‘que privilegiam os resultados, as conclusões, trazendo pouco material empírico diante da imensa quantidade de referências consultadas’”.

No livro, seguem-se, à entrevista, três artigos sobre Foucault e sua irrecusável atualidade. O primeiro deles, rigoroso ensaio  de autoria de Sérgio Adorno, que foi um dos primeiros sociólogos a estudar a obra de Foucault, traça os fundamentos principais que levaram Foucault a se afastar da filosofia convencional. Como sintetiza Michel Misse, professor titular do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, em artigo publicado na revista Sociologia & Antropologia, da UFRJ, esse afastamento deu-se “primeiro por meio de pesquisas que o conduziram a uma arqueologia de saberes (história da loucura, o nascimento da clínica, a arqueologia das ciências humanas) que, entretanto, passará por uma profunda inflexão, no final dos anos 1960, ao introduzir uma nova abordagem, genealógica, da relação saber/poder e, finalmente, ao pesquisar como modos de subjetivação e modos de produção de verdades encontravam-se diferencialmente fosse no governo de si ou dos outros. O tema da governamentalidade, atualíssimo, e os primeiros esboços de seu pioneiro estudo sobre o neoliberalismo contemporâneo, escritos a poucos anos de sua morte precoce, em 1984, aos 58 anos, estão hoje na pauta de vários colóquios, artigos e livros que examinam, em várias partes do mundo, sua pertinência e audaciosa antecipação dos dilemas da racionalidade contemporânea, especialmente após a crise de 2008”. O segundo artigo, é do sociólogo francês Christian Laval, e analisa a questão do neoliberalismo, conforme tratada por Foucault e por Bourdieu, posteriormente, bem como seus ecos ao longo das interpretações contemporâneas. O terceiro artigo, escrito em co-autoria pelos sociólogos Bruno Cardoso e Daniel Hirata, defende uma articulação original entre a obra de Foucault e da teoria do ator-rede.

Segundo Michel Misse, “fica patente como os esforços de Michel Foucault para desmontar as totalizações nas ciências humanas, mostrando que a articulação desses saberes com os dispositivos de poder que produzem o governo das populações não se desvincula nem da problemática da soberania na democracia contemporânea, nem dos modos de subjetivação que – da sujeição ao poder disciplinar às formas de autocontrole racional do indivíduo “empreendedor” do mundo neoliberal – marcam os desafios políticos, econômicos e teóricos postos contemporaneamente pelo capitalismo”.

No mesmo artigo, Misse entrevista Roberto Machado que, questionado sobre a notoriedade crescente de Foucault com o passar dos anos, diz haver, efetivamente, “uma produção intelectual no âmbito internacional que cada vez mais utiliza suas ideias ou procura compreendê-las de modo mais profundo. Penso em filósofos como Gilles Deleuze, Giorgio Agamben, Toni Negri, Michael Hardt. Ou em sociólogos como Robert Castel e Jacques Donzelot. No Brasil há muita gente pesquisando a partir dele nos campos da educação, por exemplo. E, no mínimo, quatro ou cinco colóquios são organizados sobre ele anualmente entre nós.

Quando penso no que foi a reflexão de Foucault, três principais tipos de estudo despontam, a meu ver, em épocas diferentes de sua trajetória intelectual.

Em primeiro lugar, sua análise histórico-filosófica das ciências do homem na modernidade, quando ele formulou a ideia de que o homem seria uma invenção recente cujo fim talvez estivesse próximo. Mais explicitamente, a ideia de que o homem só apareceu como objeto privilegiado do saber no final do século XVIII e, se as disposições dos saberes modernos viessem a desaparecer, ‘o homem se desvaneceria como, na beira do mar, um rosto de areia’. Seus três grandes livros arqueológicos, da época de 1960 – História da loucura, Nascimento da clínica e As palavras e as coisas –, ao estudar a psiquiatria, a medicina clínica e as ciências do homem de um modo geral, são no fundo uma crítica do humanismo burguês que procurou ocupar, no mundo moderno, o lugar dos valores antes fundados no absoluto.

Em segundo lugar, a ‘genealogia’, com a qual Foucault procurou explicar o aparecimento desses saberes sobre o homem como elementos de um dispositivo de natureza política. Essa abordagem histórico-filosófica rejeitou a identificação entre poder e Estado, dando importância aos micropoderes; caracterizou o poder não apenas como repressivo, destruidor, mas também como disciplinar, produtivo, normalizador; analisou o saber como peça de um dispositivo político; defendeu as resistências como recusa da dominação burguesa que os próprios saberes sobre o homem ajudaram a criar. Foi a época do estudo sobre a prisão, a escola, o hospital, o hospício, a caserna, em Vigiar e punir, e dos ‘dispositivos de sexualidade’, entre eles a psicanálise, em A vontade de saber.

Em terceiro lugar, suas pesquisas para dar conta do nascimento do homem de desejo, do aparecimento, na história, do desejo como essência do homem, como se nota modernamente na psicanálise. Isso o levou a recuar ao século V, para dar conta da experiência cristã do sexo. Mas como ainda encontrou uma continuidade temática entre essa época e a modernidade, entre a ‘carne’ medieval e a ‘sexualidade’ dos modernos, recuou ainda mais no tempo em busca de uma descontinuidade fundamental. Foi assim que descobriu que a verdadeira contraposição à moderna hermenêutica do desejo estava na estética do prazer existente na Antiguidade grega e romana. Pois nessa época, em vez de ser objeto de uma ciência sexual, a atividade sexual se constitui como parte do projeto de uma ‘estética da existência’, de uma moral estética, em que se elabora a própria vida como uma obra de arte. E ao fazer essas análises, O uso dos prazeres e O cuidado de si se interessam pela constituição de novas subjetividades, pelo contínuo deslocamento da subjetividade na história humana.

Como caracterizar a ruptura que a obra de Foucault produziu, ou melhor, qual é a originalidade, a singularidade de seu pensamento?

Uma das singularidades importantes de Foucault como filósofo é que ele não elabora um método de investigação rígido, invariável, universalmente válido. Sua atitude teórica é marcada – de maneira assumida e refletida – pelo provisório. Em vez de um sistema conceitual, o que há é um processo, ele mesmo histórico, pelo qual seu método é definido de modo diferente em cada obra. Foucault está sempre em constante mutação. É inegável a existência de uma mudança, de uma passagem sem continuidade da arqueologia dos saberes à genealogia dos poderes. E essa mudança é evidente em seu próprio pensamento genealógico, como uma passagem de uma genealogia do poder a uma genealogia da subjetividade. O que começou como uma pesquisa sobre os mecanismos de sujeição converteu-se numa investigação bem diferente – e também original – sobre os modos de subjetivação”.

De acordo com Ernani Chaves, em artigo publicado na revista Cult: “Do vasto campo semântico ao qual ‘impressões’ nos remete, dois sentidos parecem indicar, com precisão, o que caracteriza esse livro: o primeiro diz respeito à marca, vestígio, rastro; o segundo, a um gênero literário próximo da crônica ou do diário, em que se mesclam sensações, sentimentos, reflexões, relatos, experiências de viagens. Esses dois sentidos, por sua vez, estão entrelaçados ao trabalho da memória, ou melhor, do esforço não apenas de lembrar, a partir desses rastros e vestígios, que, como pegadas deixadas na areia, o vento do esquecimento teima em apagar, mas também o de fixá-los por meio da escrita, para que eles permaneçam vivos e constituam uma espécie de legado às gerações futuras. Impressões de Michel Foucault, o mais recente livro de Roberto Machado, parece ter sido escrito com essa intenção”.

 

A n-1 disponibiliza um trecho para visualização.

 

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“É da não identificação do poder com o estado que ele trata, ou da percepção de que existem vários poderes paralelos, inclusive anteriores ao estado, de uma forma diferente do que pregava o marxismo hegemônico na academia de então”.

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IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT

Autor: Roberto Machado
Editora: n-1
Preço: R$ 50,00 (240 págs.)

 

 

 

 

 

 

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