Khadji-Murát, de Lev Tolstói (1828-1910), foi relançado no Brasil, pela editora 34, com a primorosa tradução de Boris Schnaiderman. O volume conta ainda com o ensaio “Tolstói: antiarte e rebeldia”, em que Schnaiderman, fundamentado nos diários do autor e em extenso material crítico, contextualiza, na vida e na obra do escritor, a posição peculiar que Khadji-Murát ocupa na sua produção literária e intelectual.
A obra foi editada postumamente em 1912 e a maior parte dos críticos considera que tenha sido composta entre 1896 e 1904. Boris Schnaiderman sugere que a composição tenha sido mais longa, argumentando que “os rascunhos encontrados após a morte de Tolstói somam 2.166 páginas”. A novela e sua própria forma foram objeto de um profundo embate literário do autor. Em 1893, Lev Tolstói anotava em seu diário que: “A forma do romance acabou”; não tratava-se de derrotismo, mas da consciência do início de uma luta intelectual em busca da criação de uma nova forma literária: a concisão da novela, que mantém a abrangência das múltiplas linhas narrativas dos seus grandes romances. O resultado desse embate é Khadji-Murát, obra-prima de atualidade impressionante.
A novela narra a história verídica do líder rebelde caucasiano Khadji-Murát (1796-1852), em sua luta contra a incorporação da Tchetchênia e do Daguestão pelos russos. A região até hoje é foco de instabilidade política.
A narrativa, feita de história e memória, ambientada no front entre o exército russo de ocupação e a resistência armada dos povos islâmicos, conta como, após anos de luta contra os russos que avançavam sobre o Cáucaso, passa para o lado inimigo, em busca de vingança contra Chamil, chefe tchetcheno que aprisionara sua família.
De acordo com o crítico Alcir Pécora, em resenha [escrita por ocasião do lançamento do livro pela extinta Cosacnaify, com a mesma tradução de Boris Schnaiderman] publicada pelo jornal Folha de S.Paulo em março de 2010, “longe de tratar o caso como traição, Tolstói celebra Khadji-Murát como signo da vida que resiste às condições funestas das tiranias, seja a do czar ou a do imame muçulmano. Tolstói desloca assim o conflito entre russos e tchetchenos, feroz ainda hoje, para um estado da questão mais primitivo e menos definido por suas fronteiras políticas. De um lado, está a natureza indômita, o coletivismo anárquico, voluntarista e, de outro, a organização social abstrata e despótica, submetida a um jogo áulico, hábil em forjar razões e manipular uma religião de Estado, não importa se o catolicismo ortodoxo ou o ‘khazavát’, a guerra santa islâmica”.
Em vinte e cinco capítulos curtos, a ação se desloca do campo tchetcheno para o russo e vice-versa, instaurando um jogo de perspectivas entre as duas culturas que torna o derradeiro livro de Tolstói um acontecimento revolucionário na sua estrutura e nos temas abordados.
O próprio Tolstói, quando jovem, serviu como oficial do exército no agreste Cáucaso, décadas antes; a experiência repercutiria em seus últimos anos, quando o escritor, tendo tornado-se um ativista em prol dos perseguidos pelo regime czarista, voltou seu interesse àquele povo infenso à dominação imperial. A novela, ainda que em território russo, não traz o cenário a que estamos habituados: não se trata dos personagens aristocráticos que falam francês e desfilam pelos salões de Moscou e Petersburgo, nem de soldados, mujiques e outros tipos populares eslavos que povoam as narrativas de Tolstói. O escritor aqui é um orientalista que se mostra fascinado pela marca da cultura islâmica em pleno Império Russo.
Boris Schnaiderman, no prefácio à novela, pontua: “Khadji-Murát de Tolstói já circulou em nosso meio mais de uma vez, absurdamente, como O diabo branco, título de vários filmes nele inspirados. Realmente, essa história tem algo de violentamente cinematográfico, as imagens nela parecem já dispostas com vistas ao então novíssimo gênero. E o texto, esse texto que no Ocidente poucas vezes suscitou a mesma admiração que entre os russos – o que soa bem estranho –, é certamente um dos momentos máximos atingidos por Tolstói ficcionista. Vale a pena refletir um pouco sobre o que ele representa no conjunto da obra tolstoiana. […] Sua construção tem algo de prodigioso, ela me fascina sempre, é o exemplo perfeito de uma construção ‘esférica’ (para utilizar uma expressão de Cortázar). Seu início e seu final são marcados pela metáfora do tufo de flor, que fora pisado por uma roda, mas se erguera, persistente em seu afã de vida, e que lembrara ao escritor aquela ‘velha história caucasiana’, que ele presenciara em parte e iria completar com o depoimento de testemunhas oculares. Mas entre esses limites, na contenção exigida pela estruturação da esfera, que exuberância, que riqueza de perspectivas, que intensidade!
Era bem patética essa luta de Tolstói pela criação de algo diferente, para contar uma história que lhe dizia tanto. E ele prosseguiu muitos anos nessa luta, escrevendo furiosamente, até encontrar formas mais adequadas de expressão, mas não se satisfazendo nunca, pois, aos oitenta anos, antes de largar sua casa para se soltar pelas estradas, onde encontraria a morte, conservava sempre à mão aquele manuscrito, que ele considerava inacabado. Assim, a história da criação dessa obra está ligada à história da velhice e da morte de Tolstói, morte essa em pleno fervor criativo, em plena vivência e domínio dos meios de expressão”.
Aurora Bernardini, em resenha escrita para o jornal O Estado de S.Paulo, comenta, sobre o protagonista dessa, que, segundo ela, estilisticamente, insere-se entre as obras máximas do autor: “Pregador da não violência, crítico das atrocidades da realeza russa e das crueldades dos senhores de terra, Tolstói, entretanto, cria nessa obra, conforme nota Boris Schnaiderman, ‘um tipo másculo, que se impunha pelo seu vigor’ – o que, em alguma medida, embasa uma de suas máximas, também lembrada por Górki: ‘Os chamados grandes homens são sempre tremendamente contraditórios’”.
Há uma passagem de seus diários, comentando a época em que esteve no Cáucaso, em que Tolstói mostra a inspiração, por ela vivida, para a composição da obra: “Eu voltava para casa, através dos campos. Estávamos precisamente no meado do verão. […] Colhi um grande ramalhete de flores diversas e ia para casa, quando notei, numa ravina, magnífica bardana carmesim em flor, daquela variedade que recebeu em nossa região o nome de ‘tártaro’. […] Eu caminhava ao léu, pela estrada empoeirada. O campo lavrado, parte de terras senhoriais, era muito vasto; de ambos os lados e na frente, morro acima, via-se apenas o alqueire de terra negra, ainda não gradeada. A lavra estava bem feita, de modo que em todo o campo não se via uma planta, uma ervinha sequer, tudo era negro. […] Na minha frente, à direita, via-se um pequeno tufo de vegetação. Chegando mais perto, reconheci outro ‘tártaro’, da mesma variedade daquele cuja flor eu colhera e jogara fora em vão. O pequeno tufo consistia em três plantas. Um delas fora cortada, e o resto de um ramo aparecia como um braço decepado. Em cada uma das outras duas havia uma flor. Essas flores tinham sido vermelhas, mas agora estavam negras. Uma haste fora quebrada e a sua metade, com uma flor suja na ponta, pendia para baixo: a outra, apesar de coberta de lama negra, ainda se mantinha erguida. Via-se que todo o tufo tinha sido pisado por uma roda e que se erguera mais tarde, ficando inclinado para um lado, mas sempre se mantendo de pé – como se lhe tivessem arrancado um pedaço do corpo, revolvendo-lhe as entranhas, e lhe decepassem um braço e furassem os olhos, mas ele sempre se mantivesse firme, sem se entregar ao homem, que destruíra todos os seus irmão ao redor.
‘Que energia’! – pensei. – ‘O homem venceu tudo, destruiu milhões de ervas, mas esta não se rende’. Lembrei-me, então, de uma velha história caucasiana, que presenciara e que eu completei com o depoimento de testemunhas oculares. Ei-la, como se formou em minha lembrança e imaginação”.
Autor: Lev Tolstói
Editora: 34
Preço: R$ 38,50 (264 págs.)