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Sobre o sofrimento cotidiano

23 agosto, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Odilon Redon

O psicanalista Christian Dunker acaba de lançar o livro Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano, pela editora Ubu. Trata-se da reunião de 49 ensaios, que dialogam sobre sofrimento, felicidade, ódio, política, solidão, intimidade; sobre as estratégias cotidianas para lidar com tudo o que nos afeta. Segundo o autor, o livro é “uma investigação sobre as formas de amor, sobre suas interveniências políticas, sobre a possibilidade de ficar junto e separado”. A partir dessa investigação, Dunker desenvolve uma reflexão psicanalítica sobre a experiência de sofrimento, própria da nossa época.

O argumento de Dunker tem como premissa implícita a ideia de que o sofrimento, embora vivido no sujeito, requer e propaga uma política – está submetido a uma dinâmica de poder. O poder é gerado por aqueles que podem reconhecer o sofrimento e por aqueles de quem esperamos legitimidade, dignidade ou atenção, seja o Estado, um médico, um padre ou policial, ou aqueles que amamos. Dessa maneira, as políticas do sofrimento cotidiano sustentam-se em nossas escolhas diante desses agentes de poder, através das maneiras de transformar nosso entorno ou a nós mesmos, das possibilidades de externalizar ou internalizar, construir ou desconstruir afetos, entre outros.

A problemática da rarefação da intimidade e o processo de solidão são intimamente analisados. Ao longo do livro, Dunker ilustra-os com exemplos que nos são corriqueiros, como tendências à hipersocialização, ou impotências para construir situações de real solidão ou intimidade.

Trata-se de uma análise psico-social tão interessante quanto relevante, pois desdobra a questão contemporânea do entendimento da vida em termos empresariais, de cálculos de benefício e lucros. Neste contexto, ter uma identidade é ter parte de um capital simbólico, como diz Dunker em entrevista concedida ao jornal Nexo. Segundo ele, a forma como a pessoa se expressa, cultiva determinada estética, constrói a identidade, passa a ser unidade de valor, unidade de capital, pensada em termos de multiplicabilidade. Nosso modelo de crítica e de transformação passa a ser baseado então na identidade. Porém, qual identidade deve ser prevalecente? Diante desta questão, passa-se a colonizar a identidade dos outros a partir da própria: “a minha imagem vale mais”. Os laços sociais, assim tensionados, em situação de diferenças de identidades produzem certos sintomas paralisantes: denunciar o outro, atacar o outro – como se atacar o outro autorizasse a colocação da própria identidade, à maneira de uma concorrência destrutiva, em que se consome o outro, apropria-se dele para fortalecer-se, antes de destruí-lo, antes de colocar-se no mundo em detrimento do outro. Dunker sugere outro tipo de antropofagia: a determinação de si a partir da dissolução da própria identidade, uma antropofagia na qual tomar algo do outro leva à suspensão do eu, à indeterminação de si enquanto pessoa. “Eu me transformo no outro, não o outro se transforma em mim. Enquanto não houver esse projeto de transformação, ficaremos nesse choque de identidades”, diz o autor.

Hugo Lana, em artigo sobre o lançamento escrito para o site do Instituto de Psicologia da USP, comenta: “Uma senhora perambula pelas ruas de uma Hamburgo completamente devastada pela guerra à procura do que restou de seus pertences. É com essa cena que somos apresentados ao novo livro do psicanalista Christian Dunker, Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano. Em sua busca por resquícios de uma vida aniquilada pelos bombardeios e pelo que veio depois deles, a mulher encontra a devastação de uma cidade que já havia considerado sua e que agora é um conjunto de coisas: ruas sem placas, prédios se equilibrando em alicerces frágeis e outras pessoas que, como ela, caminhavam a esmo na tentativa de reconstruir sentidos aniquilados”. De acordo com Lana, o livro, a partir de casos particulares, trata “da fragmentação da experiência, das narrativas que suportam afetos e constantes mutações políticas e sociais que se impõem na contemporaneidade, impactando e configurando novas gramáticas de reconhecimento e formas do sentir. […] É justamente na insistência em costurar o que há de mais cotidiano e comum em nossas experiências com os movimentos históricos e normatividades – que engendram experiências – que Dunker produz um movimento capaz de jogar luz no que antes poderia se assemelhar às sombras de experiências (e vidas) fragmentadas como nos escombros de uma cidade. É por meio desse movimento textual que o autor desdobra o cotidiano em análises de fôlego, em que noções como sofrimento e intimidade ganham gravidade teórica”. Dunker pontua, no livro, que Freud “pode nos remeter a uma psicopatologia a partir da vida cotidiana, ou seja, como a vida cotidiana pode nos fazer sofrer, produzindo estados aflitivos ou conflitivos continuados, que terminam por formar sintomas”. Conforme aponta Hugo Lana, Dunker “mostra que nem toda forma de mal-estar precisa virar sintoma e ser tratada, mas sim reconhecida”.

Os ensaios trazem variadas apresentações de sofrimentos e seus modos de reconhecimento e tratamento. Com uma história de 26 anos de clínica e reflexão, Christian Dunker analisa como nossos sintomas psíquicos se relacionam com processos de individualização próprios da vida contemporânea. Seu texto evita o vocabulário de especialistas, manejando destra articulação dos conceitos da psicanálise de forma clara e sensível ao público geral, sem abrir mão da precisão conceitual. Casos, situações e regularidades clínicas reconstituem o caleidoscópio incerto que define as relações humanas contemporâneas.

No artigo “O neoliberalismo e seus normalopatas”, publicado no blog da editora Boitempo, Dunker, também comentando psicopatologias produzidas na sociedade neoliberal, diz: “Nesta zona intermediária, entre uma etapa difusa do capitalismo e uma teoria econômica bem definida, propomos que o neoliberalismo é uma forma de vida. Enquanto tal, ele compreende uma gramática de reconhecimento e uma política para o sofrimento. Enquanto liberais clássicos, descendentes de Jeremy Bentham e Stuart Mill, encaravam o sofrimento, seja do trabalhador, seja do cidadão, como um problema que atrapalha a produção e cria obstáculos para o desenvolvimento e para o cálculo da felicidade, como máximo de prazer com mínimo de desprazer, a forma de vida neoliberal descobriu que se pode extrair mais produção e mais gozo do próprio sofrimento. Encontrar o melhor aproveitamento do sofrimento no trabalho, extraindo o máximo de cansaço com o mínimo de risco jurídico, o máximo de engajamento no projeto com o mínimo de fidelização recíproca da empresa, torna-se regra espontânea de uma vida na qual cada relação deve apresentar um balanço. Desta forma não existem zonas protegidas ‘fora do mercado’, e quem é contra isso é contra o neoliberalismo, e quem é contra o neoliberalismo é a favor do Estado. Tudo é mercado. Educação é investimento. Saúde é segurança. Relações interpessoais são networking. Imagem é marketing pessoal. Cultura é entretenimento. Pessoa é o empreendedor de si mesmo”. Para o psicanalista, “entre os anos 2000 e 2010 emergem duas novas normalopatias neoliberais: a depressão de um lado e as anorexias de outro. A primeira representa o colapso na produção, a segunda no consumo. Os antigos devotos da crença na produtividade trouxeram visibilidade ao fato de que nem todos poderiam entrar no novo sistema reduzido e flexível de produção. O que fazer com os excluídos senão atribuir-lhes uma dificuldade ‘individual’? A ascensão da salvação pelo consumo torna muito mais visível e problemático alguém que se recusa a comer (ou come exageradamente e vomita como os bulímicos). A ascensão da adequação à produção torna explícito demais aquele que recusa-se a produzir, como o depressivo (ou daquele que acumula ou consome demasiadamente, como o adicto e o acumulador). Notemos que nesse ponto o neoliberalismo também sofreu uma pequena modulação, com a entrada dos discursos sobre a emoção e o talento, com as práticas de coaching e com o marketing orientado para a experiência”. 

Alguns dos sofrimentos que Dunker analisa em Reinvenção da intimidade são solidão, depressão, melancolia, luto, ciúme, paixão, ódio, vergonha, expressos através de figuras como mães neuróticas, jovens revolucionários, casais, ex-casais, amantes, pais separados, japoneses isolados, esquerdistas, neoliberais – enfim, papéis da subjetividade nos quais ora nos reconhecemos, ora reconhecemos outros à nossa volta.

Na entrevista supracitada, concedida ao jornal Nexo, Dunker comenta que a política discursiva não reconhece modalidades de sofrimento, senão como modelos de competição capitalista com o outro. É algo intrínseco à ideia, mítica, de compreensão de si como sócio de si mesmo, em um sentido capitalista, mercadológico, à ideia do “capital identitário”, ou seja, a ilusão de nossa propriedade fundamental, “eu existo em mim mesmo, eu sou dono de mim mesmo”, mítica furada, segundo o autor, e que traz, subjacentes, processos pseudo-transformativos.

A Ubu disponibiliza um trecho para visualização.

 

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Trecho

 

Este livro segue a intuição antropológica e psicanalítica examinando como formas fundamentais de nossos sintomas relacionam-se com processos de individualização próprios da vida contemporânea, particularmente com uma das figuras mais ascendentes da individualização hoje: a experiência de sofrimento.

Sofrer é algo que depende essencialmente de três condições: a narrativa na qual está inserido; os atos de reconhecmento que fixam sua causa e a transitividade que o torna uma experiência coletiva e indeterminada. O transitivismo é um fenômeno típico da infância, relacionado ao complexo de intrusão, momento no qual a criança elabora a entrada de relações triádicas, particularmente com outras crianças da mesma idade. Nessa situação, frequentemente ela experimenta, por exemplo, se colocar como agente de uma ação na qual, na verdade, ela é paciente da ação do outro. Tipicamente, ela bate na outra criança e chora porque sente efetivamente que foi a outra criança que bateu nela. Ou então ela toma um brinquedo, mas sente e interpreta que foi a outra criança que tomou o brinquedo dela. Em adultos, a situação de transitivismo retorna, por exemplo, em desavenças e conflitos nos quais não se consegue dirimir quem está agindo, provocando ou causando um determinado estado de coisas e quem está reagindo, “devolvendo” ou respondendo ao ato iniciado pelo outro. Essa confusão entre quem age e quem sofre a ação aparece também em casos mais graves, notadamente em formações delirantes e alucinatórias nas quais um pensamento efetivamente experienciado pelo sujeito é sentido como causado ou imposto pelo Outro.

Essas três condições – narrativa, reconhecimento e transitivismo – combinam-se com uma hipótese: o sofrimento requer e propaga uma política. Isso quer dizer que a forma como contamos, justificamos e partilhamos nosso sofrimento está sujeita a uma dinâmica de poder. O poder dos opressores, o poder das vítimas, o poder dos indiferentes e até mesmo o poder da indiferença ao poder. O poder gerado por quem pode reconhecer o sofrimento e de quem esperamos legitimidade, dignidade ou atenção, seja esse alguém o Estado ou o ordenamento jurídico e suas políticas públicas, sejam as imagos do médico, do padre, do doutor ou do policial, sejam ainda aqueles com quem compartilhamos a vida cotidiana e, mais ainda, aqueles a quem amamos.

A ex-sistência (existir fora de si) compreende uma parcela de sofrimento que não é eliminável. Nosso corpo se degrada, nossas leis são repetitivamente imperfeitas, a natureza nos impõe reveses de toda sorte. As três Parcas continuam a tecer e cortar impiedosamente nosso destino. A isso Freud chamou de mal-estar (Unbehagen) e Lacan, de Real. Contudo, nem tudo no mal-estar é aceitável e requer nossa resignação. Por isso, diante do sofrimento há sempre uma escolha a fazer, transformar o mundo ou transformar a nós mesmos. Essa transformação depende, portanto, de como reconhecemos o sofrimento que nos acomete. Frequentemente nos recusamos a admitir, e até mesmo a perceber, que estamos sofrendo. Algumas vezes isso se apoia na interpretação de que sofrer e, principalmente, coletivizar ou externalizar essa experiência é uma fraqueza moral. Há, portanto, uma micropolítica envolvida no reconhecimento: culpa, responsabilidade ou implicação acerca das causas, das razões e dos motivos do sofrimento.

[…]

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REINVENÇÃO DA INTIMIDADE: POLÍTICAS DO SOFRIMENTO COTIDIANO

Autor: Christian Dunker
Editora: Ubu
Preço: R$ 37,80 (320 págs.)

 

 

 

 

 

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