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A alma do corpo

26 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Wesley Duke Lee

Wesley Duke Lee

Corpo, de Carlos Drummond de Andrade, foi lançado originalmente em 1984. Estava esgotado e acaba de ganhar nova edição, agora pela Companhia das Letras, com posfácio da crítica e escritora Maria Esther Maciel. Trata-se de um dos mais esplêndidos livros da última fase do poeta; publicado aos 82 anos do poeta, três anos antes de seu falecimento, revela um olhar poético preciso, profundo e inesgotável.

Os poemas tematizam o amor, a morte, a relação entre pessoas e das pessoas com o meio ambiente. O corpo a que refere-se o título, diz respeito não só ao corpo humano físico, mas ao corpo das cidades, corpo geográfico e urbano, histórico: degradado, devastado, violentado. Em seus versos, Drummond denuncia, ainda que resguarde seu olhar generoso em relação à vida.

O corpo de que trata, é erótico, sem ser pornográfico; é simbólico e carnal.

Como coloca Angélica Soares, em artigo, Drummond poematiza a indissociabilidade entre abundância e penúria, dialogando com a ideia de “abismo que separa os seres humanos, decorrente das diferenças que nos caracterizam como indivíduos faltantes, mas sempre desejantes de atingir a continuidade no outro pela vivência erótica”. Outro aspecto que Soares aponta, citando o poema “A metafísica do corpo”, é o apelo ecológico, “sobre o qual se alicerçam as imagens de recriação do corpo feminino, cuja perfeição situa-se além da vida, além do sonho, além de céu e mar, além do próprio corpo, traz-nos a consciência da Natureza em nós. Na figurização da mulher, Drummond resume a constituição telúrica do ser humano, porque tudo nela conduz para outra vida, “em que todos fomos terra, seiva e amor”. Para a crítica, “o revelar-se no outro, o conhecer, enquanto co-nascer (em francês, connaître) estruturante de harmonia no socius, por sua vez, se transfigura, literariamente, na dinâmica de mostrar-se e esconder-se da Natureza, geradora do ser humano e, ao mesmo tempo, dos elementos que, com ele, se interam”.

Para Arlete Koenen, professora de Literatura Brasileira da UFSC, em análise, interpreta que, nos “poemas organizados sob o titulo de Corpo, o poeta nos transmite uma certeza nova de que a mudança opera em tudo, em nós também, uma eterna improvisação. Mas ate que ponto podemos manter-nos em coerência com o nosso eu, frente es inevitáveis mudanças em um mundo sob o signo de permanente ameaça ao homem? Eis o conflito”. Escreve Koenen: “Conflito – nódulo temático que governa a organização do livro de Carlos Drummond de Andrade. Este conflito apreende as ações do homem em seu estar-sendo e sua relação com o espaço social. O texto poético de Drummond se alicerça em duas partes diferentes e complementares: o pessoal e o social. São como dois volumes diferentes, um centrado no canibalismo amoroso; o outro, focalizando a devoração do homem pelo homem, em uma sociedade capitalista onde predominam violentos contrastes entre as diversas camadas sociais. A união entre estes dois espaços se de através de imagens organizadas em torno do corpo humano”.

Transpassada pela imagem do corpo e pela ideia de corpóreo, nos poemas delineia-se a tematização da contradição irredutível das certezas e das ilusões, temporalidades vistas com a imprecisão de um relance, “feitas de sonho e vento”, ou “como linguagem fértil do corpo”, “da matéria inebriada para sempre pela sublime conjunção”.

 

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As contradições do corpo

 

Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta.

Meu corpo, não meu agente,
meu envelope selado,
meu revólver de assustar,
tornou-se meu carcereiro,
me sabe mais que me sei.

Meu corpo apaga a lembrança
que eu tinha de minha mente.
Inocula-me seu patos,
me ataca, fere e condena
por crimes não cometidos.

O seu ardil mais diabólico
está em fazer-me doente.
Joga-me o peso dos males
que ele tece a cada instante
e me passa em revulsão.

Meu corpo inventou a dor
a fim de torná-la interna,
integrante do meu Id,
ofuscadora da luz
que aí tentava espalhar-se.

Outras vezes se diverte
sem que eu saiba ou que deseje,
e nesse prazer maligno,
que suas células impregna,
do meu mutismo escarnece.

Meu corpo ordena que eu saia
em busca do que não quero,
e me nega, ao se afirmar
como senhor do meu Eu
convertido em cão servil.

Meu prazer mais refinado,
não sou eu quem vai senti-lo.
É ele, por mim, rapace,
e dá mastigados restos
à minha fome absoluta.

Se tento dele afastar-me,
por abstração ignorá-lo,
volta a mim, com todo o peso
de sua carne poluída,
seu tédio, seu desconforto.

Quero romper com meu corpo,
quero enfrentá-lo, acusá-lo,
por abolir minha essência,
mas ele sequer me escuta
e vai pelo rumo oposto.

Já premido por seu pulso
de inquebrantável rigor,
não sou mais quem dantes era:
com volúpia dirigida,
saio a bailar com meu corpo.

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corpo

 

CORPO

Autor: Carlos Drummond de Andrade
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 39,90 (120 págs.)

 

 

 

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