Arquivo do autor:Isabela Gaglianone

Crítica Literária

CAMPOS DE QUEIRÓS, Vermelho Amargo

11 novembro, 2012 | Por Isabela Gaglianone

(CosacNaify, 2011)

“Amparado pela janela, debruçado no meio do escuro, contemplei a rua e sofri imprecisa saudade do mundo, confirmada pela crueldade do tempo” (p. 7).

Há um vazio pungente, preenchido só com as vagas e evanescentes imagens da memória e da imaginação, na solidão em que se enclausuram os que vivem a dor da separação abrupta, forçada, que acompanha a morte de uma criatura querida. O paradoxo inconformado deste sofrimento é que o próprio vazio é cheio, pleno; esse vazio preenche cada uma das horas dos longos dias do “impiedoso tempo”, materializa-se, assim. Continue lendo

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Resenhas

CLASTRES, A sociedade contra o Estado

13 agosto, 2012 | Por Isabela Gaglianone

(CosacNaify, tradução de Theo Santiago)

 1) O que é o poder político? Isto é: o que é a sociedade?

2) Como e por que se passa do poder político não-coercitivo ao poder político coercitivo? Isto é: o que é a história? 

 Os fundamentos filosóficos presentes na antropologia política de Pierre Clastres desvelam-se desde o título do primeiro artigo do livro A sociedade contra o estado: “Copérnico e os selvagens“. Clastres articula filosofia e antropologia políticas, calcado em pesquisas etnográficas realizadas em sociedades amazônicas, de modo a desenvolver um projeto crítico à contaminação etnocêntrica latente na antropologia europeia, sugerindo-lhe uma nova orientação, que pudesse estabelecê-la legitimamente como ciência. Continue lendo

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Crítica Literária

LÍSIAS, O céu dos suicidas

24 maio, 2012 | Por Isabela Gaglianone
[Alfaguara, 2012]

[Alfaguara, 2012]

“Penso em coleções o tempo inteiro, dou cursos, ofereço consultoria e escrevo sobre isso. Mas não tenho sequer um conjunto de cartões-postais” (p. 70).

 

É um romance da própria consciência o que o jovem escritor paulistano Ricardo Lísias realiza com O céu dos suicidas. Colocando a si mesmo como autor-narrador-protagonista, ele personifica uma consciência desesperada, que tenta sair de si mundo afora em busca de algo que a unifique e realize, um eu que a resguarde, através da memória. Sempre que volta a si, embate-se com seu eterno futuro do pretérito; entre o que foi e o que poderia ter sido, a contingência do passado negada, sobrecarregada pelos efeitos presentes. Porque é justamente uma lembrança retumbante que transforma o sustentáculo da consciência em uma coleção de cacos: o eu, culpado – pela impotência, pela apatia –, fragmenta-se.  Continue lendo

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Crítica Literária

WALSER, Jakob von Gunten

13 março, 2012 | Por Isabela Gaglianone

(Companhia das letras, tradução de Sérgio Tellaroli)

 

Para pessoas tão pequenas como nós, pupilos, nada é engraçado.

Estudamos em bibliotecas. Como soldados, verdadeiros recrutas, temos de nos deitar no chão e atirar. Vamos às compras em grandes lojas, banhamo-nos em balneários, oramos nas igrejas: “Não nos deixei cair em tentação”.

Com a cortante lucidez de seu lirismo realista, Robert Walser, no romance Jakob Von Gunten, expõe as vísceras do drama do indivíduo impessoalizado dentro do sistema capitalista industrial. O livro foi escrito em 1908, época em que amanhecia o modelo de mundo em que vivemos hoje; e ainda hoje o leitor se reconhece na alegoria do pupilo a lacaio de uma sociedade industrializada, interesseira, fria e calculista. A serialidade da carne humana é exposta, paradoxalmente, porém, com encantadora poesia. Com Walser, o bruto é tomado de tal sinceridade que dele se extrai uma beleza rara, única e incondicional. Cada pequeno detalhe é dotado de importância, pois é o que traz humanidade à amorfa condição das pessoas industrializadas. Um instituto como o Instituto Benjamenta, cenário das narrativas de Jakob Von Gunten, dedicado a criar servos minimamente familiarizados com as maneiras e costumes da alta sociedade, regido por velhas normas e dedicado a tornar seus pupilos úteis a outrem, poderia ser uma caricatura de todo o mecanismo silencioso que mantém até hoje o sistema social intacto, às custas de algumas insignificâncias vitais; a escolarização é encolhedora, pois basta-se a ensinar uma função e assim fornecer mais uma máquina humana barata a juntar-se com inércia à pútedra monumentalidade social, sempre sustentáculo econômico, indiferente se legitimada pela estandartização de uma falsa moral, baseada no enaltecimento de valores reles, a girar sempre em torno de utilidade, funcionalidade, subserviência, quer a Deus, ao Estado, ao dinheiro.

As personagens de Walser todavia perseguem algo elevado. Talvez uma moral diferente, menos cristã e punitiva, menos ameaçadoramente acachapante. Na prática, perseguem uma vida de servilidade para encaixarem-se na sociedade, o que significa tornarem-se economicamente ativas após aprenderem a comportar-se conforme as convenções: por isso, para os pupilos do Intituto Benjamenta, a própria sociedade é algo elevado, buscam adentrar nela através de um posto, uma função que lhes dê uma posição social, um símbolo de poder. A lucidez crítica vem proferida pela voz do irmão de Jakob, Johann Von Gunten – a semelhança entre os nomes dos irmãos não redunda apenas uma usual assonância familiar, Johann parece a consciência de Jakob personificada graças às suas observações categóricas: “Ser de fato um pobre-diabo é o que há de mais belo e vitorioso. Os ricos, Jakob, são muito insatisfeitos e infelizes. A gente rica de hoje em dia não tem mais nada. São os verdadeiros famintos”. Jakob justamente renunciara a uma vida farta, abandonara família e conforto para inscrever-se no Instituto Benjamenta e formar-se criado, “meu pai tem carruagens, cavalos e um criado, o velho Fehlman. Mamãe tem seu próprio camarote no teatro”. Uma espécie de franciscano egoísta, sem a cristandade, um neo-platônico às avessas, um ideal encarnado da autoformação, da autoeducação, não em busca da verdade, nem da justiça, mas baseado no esforço próprio, capitalista por excelência, começando “de baixo, bem de baixo”, em busca do desenvolvimento, em si, de qualidades necessárias à ascensão, econômica e social. O diário é conduzido, pois, por um narrador perspicaz, ocupante de um ponto de vista privilegiado através do qual demonstra o amálgama moral que se estabelece entre indivíduo inerte e sociedade dinheirista num mundo economicamente positivista em que os valores são vãos e as pessoas entediam-se porque são reduzidas a máquinas especializadas, inscritas num sistema rígido e simplório.

No geral, as personagens simbolizam a servilidade e o rigor que a acompanha. Suas vidas extrapolam sua compreensão, sua única verdade é que devem servir ao mundo que os repugna. São – o discreto e obsequioso Kraus em particular – o resultado icônico da sociedade tal como a justificam a benevolência e justiça mentirosas da cristandade. Há neles uma beleza triste, que encerra o peso da punição e penitência, valores herdados e encrustrados da tradição judaico-cristã. Sua servilidade é pueril, todavia, pois que ingênua e conformada, o poder é seu pai severo e insone, inalcançável, uma sombra sempre vigilante. “Nesses dias em que limpamos, lavamos e areamos, lembramos aqueles duendes de Colônia, que conforme conta a lenda, faziam todo o trabalho pesado e cansativo movidos pela mais pura e sobrenatural bondade. O que nós, pupilos, fazemos, nós o fazemos porque temos que fazer, embora nenhum de nós saiba ao certo por que razão precisa fazê-lo”. Talvez seja essa puerilidade que faça ecoar os contos de fadas durante as palavras de Walser. Na verdade foi Walter Benjamin quem escreveu que “as figuras humanas de Robert Walser partilham sua nobreza infantil com as personagens dos contos de fadas”, uma comparação bonita e que traduz todo o universo de Jakob Von Gunten. Mesmo a prosa curta de Walser aumenta essa familiaridade com os contos de fadas, pois confere ao tempo em que a própria prosa se desenrola uma suspensão mágica, uma aparente consciência de infinitude; uma infinitude de breves finitudes. Nessa atmosfera rarefeita, o lúdico funciona como o ponto de parada certo de uma lucidez fugidia, metaforizando relações de poder ou simplesmente abstraindo a rudeza do inevitável destino das histórias dos pupilos tão respeitosos, que não é o de uma vida feliz para sempre, pois fatalmente suas divagações serão substituídas por uma vida de labor, serão enfim trazidas à realidade, onde a sabedoria é vã e a virtude, inútil. “Grandes são a lei, que determina, a coação, que obriga, e as muitas normas
inexoráveis a nos balizar a direção e o gosto. Aí está a grandeza, e não em nós, discípulos. Todos, eu, inclusive, sentimos que somos apenas anões minúsculos, pobres, dependentes, obrigados a constante obediência”.

Walser parece um pintor, ele nos causa impressões sobre as impressões, descreve as cenas e deixa que elas falem por si mesmas no silêncio. Há uma melancolia que resiste neste momento reticente e dela desabrocha a profunda sensibilidade de Walser para a beleza que há em tudo que é genuinamente humano. Sua poesia paira aí, mas é tão plena quanto um depósito de tinta que a transcrevesse. Sua prosa é lírica, dotada de uma poesia discreta e modesta. Um pouco como Kraus, sua poesia esgueira-se e embeleza o texto, imperceptível, sem fazer alarde para si, uma beleza inesperada e portanto natural, espontânea e quase corriqueira. Walser traduz em toda a sua escrita a simplicidade, encarna-a através do magnífico subterfúgio do experimento literário rapsódico do diário, que permite qualquer coisa a seu narrador, que pense em voz alta, exprima juízos ou sensações, que tagarele sem sentido ou somente devaneie, sem jamais abandonar seu posto libertador de singelo observador, a forçosamente desgarrar-se da inocência infantil.

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