Crítica Literária

CAMPOS DE QUEIRÓS, Vermelho Amargo

11 novembro, 2012 | Por Isabela Gaglianone

(CosacNaify, 2011)

“Amparado pela janela, debruçado no meio do escuro, contemplei a rua e sofri imprecisa saudade do mundo, confirmada pela crueldade do tempo” (p. 7).

Há um vazio pungente, preenchido só com as vagas e evanescentes imagens da memória e da imaginação, na solidão em que se enclausuram os que vivem a dor da separação abrupta, forçada, que acompanha a morte de uma criatura querida. O paradoxo inconformado deste sofrimento é que o próprio vazio é cheio, pleno; esse vazio preenche cada uma das horas dos longos dias do “impiedoso tempo”, materializa-se, assim. A lembrança, abstrata, a falta, concreta: um amálgama que dá ao tempo um sabor lânguido e que, no livro de Bartolomeu Campos de Queirós, metaforiza-se gastronomicamente. “Não se chora pelo amanhã. Só se salga a carne morta” (p. 8). A carne descobre sua mortalidade e o menino-personagem, lembrado pelo adulto-narrador, engole a seco a proximidade, sempre precoce, desta descoberta. Como engole o vazio, instaurado pela ausência da mãe, cotidianamente presentificado nas finíssimas fatias de tomate cortadas pela madastra. “A madastra retalhava um tomate em fatias, assim finas, capaz de envenenar a todos. Era possível entrever o arroz branco do outro lado do tomate, tamanha a sua transparência” (p. 9). O tomate torna-se sanguíneo. Vermelho e amargo: remissão a um só tempo à morte, à falta, à sensação profunda de abandono, à ausência da figura feminina e amorosa da mãe; remissão também aos tomates. A sinestesia desdobra o sofrimento da lacuna irremediável. Sofrimento redobrado pela substituição apressada, no seio da vida doméstica, da mãe pela madastra. Sentimentos representados em metáforas amargas, a míngua do amor escancarada nas fatias de tomate. Vermelho amargo é lírico desde o título.

O livro é escrito no pretérito, em forma de memória. As lembranças do menino são carminizadas: os tomates, o sanguíneo, as mulheres e o amor. Vermelhos impregnados por um amargor, da vida que o carregou, na ausência da mãe, com desilusão e solidão. Lembranças que se fazem sensações táteis, degustativas, através da prosa poética do autor. “Ela decapitava um tomate para cada refeição. Isso, depois de tomar o martelo e espancar, com a força dos seus músculos, os bifes. Sofrer amaciava, talvez ela pensasse. (…) eu padecia pelo medo do martelo e a violência da mulher ao açoitar a carne. (…) os bifes eram finos – magros como eu – pelo amargor dos espancamentos. Ao depois de muita tortura, a carne se transfigurava em pedaços de renda esgarçadas” (pp. 23, 24). As lembranças movem-se no texto como num devaneio distraído, a imaginação do narrador invade sua memória, permeando uma nostalgia indefesa; as lembranças sucedem-se, sem ordem cronológica mas formando um sentido sentimental. Isso fortalece a carga dramática do texto, que é forte. Ao saudosismo é contraposta a insípida mesquinhez da finíssimas fatias, dos finíssimos bifes, símbolos de uma pobreza material, mas também pobreza de espírito, pobreza de amor.

A prosa do texto é fragmentada, fatiada em gomos, como o contraponto dos tomates cortados pela mãe: “Antes, minha mãe, com muito afago, fatiava o tomate em cruz, adivinhando os gomos que os olhos não desvendavam, mas a imaginação alcançava. Isso, depois de banhá-los em água pura e enxugá-los em pano de prato alvejado, puxando seu brilho para o lado do sol. Cortados em cruzes eles se transfiguravam em pequenas embarcações ancoradas na baía da travessa. E barqueiros eram as sementes, vestidas em resina de limo e brilho. Pousado sobre a língua, o pequeno barco suscitava um gosto de palavra por dizer-se. Há, sim, outras palavras mais doces que o açúcar” (pp. 14, 15). A imaginação singela, pueril, que transforma cada uma das sementes em navegantes e, os próprios tomates, em embarcações, une numa só fantasia o amor inconformado pela perda e o desejo do menino interiorano de conhecer o mar, representação do misterioso, do inconsciente; ambos profundos, distantes. “Um sonho fora do sono persistia em mim. Nasci afogado por ele: o de desvendar o mar. Afundar-me em sua grandeza, salgar-me em sua salmoura, esconder-me em suas ondas, surgir desafogado onde nem eu me sabia. Eu só desconfiava o mar por ouvir dizer. Numa infância sem surpresas, cercado pelas montanhas, o mar escondia-se depois de muito pensamento” (pp. 39, 40). Os gomos em que se apresenta o texto, tecido com tanta poesia, tão repleto de símbolos, parecem estrofes livres de um poema nostálgico e sonhador.

Assim, a história é adivinhada por entre metáforas encarnadas nessa poesia em prosa, verdade aturdida, rememorada, fantasiada. “Mentir a si mesmo é uma fórmula para aliviar-se. (…) cada mentira é mais outra fantasia. (…) a mãe fazia a fantasia virar verdade” (pp. 26, 27). É uma certa prosa ambaraçada, um espelho que não reflete, que contrapõe o concreto da vida à doce mentira dos sonhos – ou dos contos de fada, em que um mau maniqueísta é amparada pela figura de uma madastra malévola -, trocando coisas e palavras, umas pelas outras, em representações estendidas, dobradas sobre si mesmas, como um grão da “pimenta de um reino quase só imaginado” (p. 36).

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