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Um belo sentido à escrita

21 fevereiro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“O poeta está mais próximo do mundo quando carrega em seu íntimo um caos; no entanto, e este foi nosso ponto de partida, sente responsabilidade por esse caos – não o aprova, não se sente bem com ele, não se crê importante por ter em si espaço para tanta coisa contraditória e desconexa, mas odeia o caos e não perde jamais a esperança de dominá-lo em prol dos outros e de si mesmo. Para dizer algo sobre este mundo que tenha algum valor, o poeta não pode afastá-lo de si ou evitá-lo. Tem de carregá-lo em si enquanto caos, a despeito de todas as metas e planejamentos, pois o mundo se move com velocidade crescente rumo à própria destruição. […] Contudo, não se pode permitir sucumbir ao caos, mas, a partir justamente da experiência que dele possui, precisa combatê-lo, contrapondo a ele a impetuosidade de sua esperança”.

– Do ensaio “O ofício do poeta”.

  

Elias Canetti, prêmio Nobel de Literatura de 1981, foi um dos escritores mais influentes do século XX. Além do premiado romance Auto-de-Fé, escreveu magníficos ensaios, como o denso trabalho de teoria social Massa e Poder – considerado, ao lado de Auto-de-fé, uma das obras magnas das letras no século XX –, ensaios político-literários extremamente lúcidos, como A consciência das palavras e, também publicada no Brasil, sua autobiografia – que, mais do que um simples livro de memórias, é um retrato rico do descobrimento intelectual do mundo, através da linguagem e da literatura, ou, como definiu o jornal Stuttgarter Zeitung, um livro em que “a vida se torna literatura”, sem que, no entanto, nem a vida, nem a literatura sofram com isso nenhum prejuízo –, dividida em três volumes: A língua absolvida, Luz em meu ouvido e O jogo dos olhos. A escrita, para ele, sempre foi um ato de extrema responsabilidade, como sugerido pelo título da coletânea de ensaios A consciência das palavras, traduzida por Márcio Suzuki e Herbert Caro e publicada pela Companhia das Letras. Como definiu Susan Sontag, “Canetti é alguém que sentiu de forma profunda a responsabilidade das palavras; e muito de sua obra esforça-se por comunicar algo do que ele aprendeu a respeito de como prestar atenção ao mundo”.

A consciência das palavras reúne variados ensaios, escritos entre 1962 e 1974 – à exceção do primeiro ensaio, que contempla o escritor Hemann Broch, escrito em 1936. São textos sobre Confúcio, Georg Büchner, Tolstoi, Kafka, Karl Kraus, Albert Speer, arquiteto chefe de Hitler, além da evocação do diário de um médico, sobrevivente à tragédia de Hiroshima, e de reminiscências das origens do romance Auto-de-fé. Os ensaios orbitam em torno da relação das pessoas com as palavras: Canetti, com erudição e sensibilidade, reflete sobre como, não somente a literatura, mas a escrita de maneira geral, modifica a vida daquele que a realiza.

Um livro rico e vivo que, a partir das reflexões sobre a escrita, desenvolve ideias sobre a percepção do mundo e do tempo, sobre, por exemplo, a necessidade de considerar a existência de pelo menos três realidades, e não apenas uma – como apontou o escritor José Castello, em artigo publicado no jornal Rascunho, Canetti fala “da “realidade crescente”, da “realidade mais exata” e da “realidade do devir” […], a realidade é uma construção (uma ficção) e suas possibilidades são infindáveis” e, assim, a “realidade não cabe mais dentro de nossa ideia de realidade”. O interessante conjunto dos ensaios é lúcido, filosófico e literário.

 

A Companhia das Letras disponibiliza a visualização das páginas inicias.

 

 

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Trecho:

 

O corpo do homem é frágil, doentio e bastante vulnerável em sua nudez. Tudo pode penetrar nele, e a cada ferimento lhe fica mais difícil pôr- se em defesa; num instante está tudo feito. Um homem que se apresenta para uma luta sabe o que está arriscando; se não vê nenhuma vantagem a seu lado, arrisca ao máximo. Quem tem a sorte de vencer sente acréscimo em suas forças, apresentando-se com tanto mais empenho a seu próximo adversário. Após uma série de vitórias, alcançará aquilo que há de mais precioso para o lutador, um sentimento de invulnerabilidade – e, tão logo o possua, ousará lutas cada vez mais perigosas. A partir daí, é como se possuísse um outro corpo, não mais nu, não mais doentio, mas blindado pelos seus momentos de triunfo. Por fim, ninguém mais pode afetá-lo: ele se torna um herói.

 

– Do ensaio “Poder e Sobrevivência”.

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A CONSCIÊNCIA DAS PALAVRAS

Autor: Elias Canetti
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 18,55 (328 págs.)

 

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