Literatura

não, você não entende, pelo menos agora

20 fevereiro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“O negócio do mundo é derrubar com o rodopio da vida aqueles que andam soltos… E a gente vai se virando com ele, fazendo força pra girar pro outro lado, torcendo pra tontura passar… Passar, não passa, mas Deus vai colocando as paredes no lugar certo pra apoiar, coloca uns postes… Bom, de vez em quando a gente se desequilibra e dá umas cabeçadas… Olha, parece que é mais difícil morrer do que viver, valha-nos Deus, todo poderoso!”

 

O interessante livro As visitas que hoje estamos, do mineiro Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, é composto por centenas de trechos, em sua maioria relatos em primeira pessoa, salvo o roteiro teatral protagonizado pelas personagens Cora e Naum, que interrompe as séries de discursos pessoais. Os fragmentos de discursos em primeira pessoa, espécies de monólogos interiores, aparentam repetições, pois tratam de situações parecidas, normalmente marcadas por questões religiosas e com tratamento linguístico muito similar.

O livro recebeu notoriedade atrasada em relação ao seu lançamento. Foi o professor e crítico literário Luiz Costa Lima que primeiro chamou atenção para sua originalidade, com o artigo “Uma grande surpresa”, escrito para o jornal Valor Econômico, do Rio. No artigo, Costa Lima defende que o livro traz uma linguagem rural inédita na literatura brasileira, diferente tanto da tendência naturalista quanto dos experimentalismos de Guimarães Rosa. Segundo o crítico, o modo de composição de As visitas que hoje estamos “mostra uma ficção que parece evitar ser reconhecida como ficção”. Para ele, “o não fictício de “As Visitas” não tem nada a ver com nossa tradição naturalista de romances documentais e de testemunhos. Tem sim a ver com a ausência de dois ingredientes comuns na obra romanesca: o enredo e a unidade de dicção”. Sem enredo, os personagens do livro “são os anônimos de toda uma comunidade. Qual comunidade? Aquela que é coberta pela quebra da unidade de dicção. Ou seja, a ausência de um ingrediente usual se acompanha da ausência do outro. Com efeito, a unidade de dicção, com frequência entendida como “estilo”, é substituída por uma dualidade de dicções: a dominante é a de cunho rural-interiorano, a dominada é a dicção culta, que remete à fala do próprio autor”. Assim, irônico, bem construído e desenvolvido, no livro de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, segundo o crítico, os “capítulos, ora mais longos, ora muito curtos, se não reduzidos a uma frase, lidam por excelência com uma enciclopédia de espoliados pela vida. São velhos de juntas capengas, “sem girar certo a dobradiça dos ofícios”, enfermos, ladrões, mendigos, toda espécie imaginável de lúmpen, magotes de moleques, candidatos a trombadinhas, um raro descendente que consome o resto de herança, em suma, o “povinho alastrado pelo brasil”, aqueles que sabem, sem disfarces nem coloridos televisivos, que aprender a viver é acostumar-se com as perdas. Pois “o fim da gente começa lá no começo”.

A leitura do livro foi considerada uma “experiência caudalosa mas formidável” pelo crítico Alfredo Monte. Segundo ele, “na raivosa e contundente enchente narrativa, vêm arrastados o Brasil profundo, o povo brasileiro em sua condição de arquétipo e os pequenos nadas da vida: a passagem do tempo, a instabilidade econômica, altos e baixos da sorte, atos sórdidos, guerras conjugais, solidão, lendas urbanas, e a maciça presença dos santos. Muita religiosidade e, não obstante, desordem geral, desalinho de todo o tecido social, dificultando o fio dos relatos: “…e isso é um deus nos acuda de desvios”.

O professor da USP José Antonio Pasta, no texto de orelha do livro, diz: “A imagem de uma orelha descomunal bem poderia ser o emblema deste livro. De fato, ele parece ser o resultado de um ouvido absoluto para as vozes deste mundo e, de certo modo, até do outro. O partido compositivo – tão próprio aos impasses da modernidade – de revolver nas falas mesmas a realidade social e histórica que se deposita, como sedimento, na linguagem vai, aqui, a sua potência máxima. O livro é, assim, o lugar no qual, como em ondas de linguagem, essas vozes todas, múrmuras ou veementes, vêm quebrar. O rumor que então se levanta, engrossado do eco de tantas falas, emanadas de tantas vidas, faz sua atmosfera e clama aos céus por um sentido. Em vão, que o céu está vazio”.

Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira definiu seu livro, em entrevista ao Jornal do Commercio, como “a arquitetura de uma sala de ser” e conta: “Costumo dizer que aprecio o artista que não deixa uma única vírgula passar distante de seu crivo crítico. A pretensão de boa parte dos criadores, afinal, é pôr em funcionamento sua “máquina do mundo” particular, mesmo que as peças aparentemente desconectadas. O aleatório em meu livro virá sempre de uma disposição consciente e rigorosa do ato criador”. Em outra entrevista, ao Jornal Rascunho, o autor analisa: “A maioria dos fragmentos d’as visitas é um recorte da fala de uma das centenas de personagens que passam pelas páginas. Alguns trechos se ligam a outros, às vezes de maneira explícita, estabelecendo um diálogo inusitado, porque são personagens de recortes distintos. […] Poder-se-ia dizer que as visitas que hoje estamos são e não são romance. O tamanho variado de cada fragmento, que deveria ter, necessariamente, autonomia e dependência em relação aos outros fragmentos, obedeceu ao mesmo princípio. Personagens que falam demais; personagens que se arrependem de falar e se calam; personagens que falam pouco; e, até mesmo, personagens que não falam. O livro são vários livros”. Na mesma entrevista, ele cita um fragmento, cujo título é “ninguém escreveu isso”, que Antonio diz ser “uma reflexão auto-irônica, esperançosa, crítica, ciente do papel continuamente amarfanhado do escrito”:

 

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continuo porque acredito nisso, não depende do indivíduo, nunca dependeu, um livro pode melhorar muito com o tempo, é assim, ó, é possível que um livro seja mais bem escrito mesmo depois de publicado, depende dos rumos do mundo, não, não é maluquice, acontece bastante, vai rindo, vai, pode dizer que é esperança dos desajustados, não é, não, entende?, não, você não entende, pelo menos agora

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as visitas que hoje estamos

Autor: Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira
Editora: Iluminuras
Preço: R$ 37,10 (448 págs.)

 

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