Literatura

Dos silêncios expressivos

19 fevereiro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Cornélio Penna (1896 – 1958) foi romancista, além de pintor, gravador e desenhista. Na década de 1930, abandonou as artes plásticas para dedicar-se exclusivamente à literatura. Penna participou da Segunda Fase do Modernismo e criou o realismo psicológico brasileiro. A Menina Morta é considerado um dos romances primorosos da história da literatura no Brasil. O livro, que completa 60 anos em 2014, é composto por histórias caracterizadas por capítulos curtos, desenvolvidas em uma atmosfera de estranheza.

Uma obra que, entre outros temas, fala também da escravidão, escrita em pleno momento desenvolvimentista dos anos 50, no qual a tendência primordial era a de construir uma identidade nacional que fosse pautada pela modernidade e pelo progresso. A menina morta, enquanto interpretação do Brasil, é fragmentária: através sobretudo da voz do narrador, hesitante e escorregadia, pretende encontrar no passado respostas que justifiquem a formação de uma ideia diluída de nação, marcada pela linhagem escravocrata, pela lei patriarcal e pela interdição. O livro é, por isso, repleto de silêncio, de uma linguagem em dobras, apresentando a morte como signo disseminador de sentidos. Em 1976, o crítico Luiz Costa Lima publicou A perversão do trapezista – o romance de Cornélio Penna, obra em que analisou primordialmente A menina morta. Lima diz não ser possível discutir a obra de um ponto de vista teórico que se resuma a “estrutural, neo-estrutural ou o que seja”.

Segundo Maria Ângela de Araújo Resende, no artigo “A nação na ponta da meia-língua: ausência, silêncio e morte em A menina morta”, a “linguagem narrativa, aparentemente lenta e sinuosa, marcada pelo signo das minúcias e pelo esforço metonímico, encobre o silêncio e a falta que atravessam as personagens. […] O narrador, ao se referir à hesitação das escravas, com sua meia-língua: “a mais velha delas […] dizia com voz sibilante e atropelava as palavras em estranha algaraviada de palavras africanas e portuguesas” experimenta, também, a hesitação como marca textual, portanto, contrária à forma totalizadora e totalizante de se pensar a fundação. Ao presidir o réquiem deste corpo-texto vivo, morto-vivo, em aflição, cheio de dúvidas, vagando entre vultos e sombras, luz e trevas, testemunha a desconstrução, a desagregação e a ruína do mundo patriarcal”.

Como analisou Ana Vilela, no artigo “O exílio de uma menina morta”, publicado em janeiro no blog do Instituto Moreira Salles, nas cenas inicias do livro, “Penna, também artista plástico, deixou falar a mão do pintor. Sua veia artística pode ser lida nas nuances das linhas de A menina morta, cuja história ultrapassa as páginas da literatura”. O artigo segue, contextualizando criticamente a obra: “Segundo o escritor Augusto Frederico Schmidt, “não se terá escrito sobre a escravidão no Brasil, até hoje, nada mais impressionante do que alguns dos capítulos de A menina morta” (1958). Mas o tema não é o centro da obra. Pelo contrário, o foco é o social e o humano. O texto adentra o ser, suas fugas, angústias, memórias, solidão. O exílio de cada um”. E conclui: “Cornélio Penna era considerado um artista estranho, alguém “desembarcado por engano neste planeta”, segundo escreveu Murilo Mendes. Um exilado em seu tempo, cercando-se de antiguidades e sempre indo a um passado mais distante quando o assunto era literatura. […] Cornélio Penna é considerado o primeiro romancista brasileiro a adentrar as angústias dos personagens, a invadir “a problemática do ser”, segundo Adonias Filho”. A despeito, infelizmente, de seu majoritário desconhecimento pelo público brasileiro. (Desconhecimento que, inclusive, alastra-se a um descaso editorial: a única versão disponível para venda em livrarias brasileiras é uma edição da editora portuguesa Cotovia).

 

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“ De quando em quando chegavam até ela, em ondas, os sons quebrados de gargalhadas, mas tinha ouvido as ordens deixadas por seu pai antes de partir e sabia terem sido as armas embaladas distribuídas aos feitores e aos guardas, com a recomendação de atirar ao primeiro sinal de revolta. Assim estava informada de que toda aquela paz, na aparência nascida da ordem e da abundância, todo aquele burburinho fecundo de trabalho, guardavam no fundo a angústia do mal, da incompreensão dos homens, a ameaça sempre presente de sangue derramado”.

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A MENINA MORTA

Autor: Cornélio Penna
Editora: Cotovia
Preço: R$ 87,50 (560 págs.)

 

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