“Se lemos um livro antigo é como se lêssemos durante todo o tempo que transcorreu entre o dia em que foi escrito e nós. Por isso convém manter o culto ao livro. O livro pode conter muitos erros, podemos não concordar com as opiniões expendidas pelo autor, mas ainda assim, ele conserva algo sagrado, algo divino, não com um tipo de respeito supersticioso, mas com o desejo de encontrar felicidade, de encontrar sabedoria”
– Borges, “O livro” [in: Cinco visões pessoais. Brasília, Editora da UNB, 1985].
Os livros que lemos e os que escolhemos manter próximos a nós tornam-se capítulos de nossa história pessoal. O colecionamento de livros é tão especial justamente por ser motivado em parte como busca de certezas, em meio à velocidade um tanto efêmera do mundo.
O escritor Miguel Sanches, comentando o belo ensaio “Desempacotando minha biblioteca”, de Walter Benjamin, diz: “Se a literatura é o território movediço, a coleção de livros devolve-nos à exatidão das coisas. Não sem alguma ironia, Benjamin cita Anotole France: ‘O único conhecimento exato que existe é o ano de publicação e o formato dos livros’. Entre a desordem e a ordem possível, entre o caos e o cosmos, o colecionador vai transformando, segundo Benjamin, sua coleção em uma ‘enciclopédia mágica’, em que se manifesta um encontro inevitável: ‘o destino mais importante de cada exemplar é o encontro com ele, o colecionador, com a própria coleção’”. Trata-se de uma experiência mágica.
É, pois, semelhante a uma concha, a construção enquanto morada de filas e pilhas de livros, no sentido em que dá, à concha, Paul Valéry: “Uma concha emana de um molusco. Emanar parece-me a único termo próximo da realidade visto significar propriamente: deixar pender. Uma gruta emana suas estalactites; um molusco emana sua concha” [“O homem e a concha”].
Um dos grandes livros de Umberto Eco dedicados especificamente à paixão pelos livros, à bibliofilia, é A memória vegetal: e outros escritos de bibliofilia. Com ele, Eco, que era colecionador de livros raros, amante dos livros, ele faz uma declaração de amor aos livros, através de textos diversos, entre definições, listas de livros e contos fantásticos.
Porém, enfocamos aqui outro de seus livros, escrito em diálogo e parceria com Jean-Claude Carrière, Não contem com o fim do livro. Os autores debatem uma questão atual e que concerne a todos os bibliófilos: o possível término do livro de papel com o advento dos livros digitais.
Eco foi um grande bibliófilo. Possuia mais de 30 mil volumes distribuídos ao longo de sua casa-biblioteca – em entrevista concedida em 2010 a Ubiratan Brasil, para o Estado de São Paulo, contou que, à comum pergunta sobre ter lido todos os volumes de sua biblioteca, tem duas possíveis respostas: “Não. Estes livros são apenas os que devo ler na semana que vem. Os que eu já li estão na universidade”; que o jornalista conta ser a resposta preferida do autor . A segunda resposta é: “Não li nenhum”; ao que arremata: “Se não, por que os guardaria?”. Ao lado de outro grande bibliófilo, Jean-Claude Carrière, refletiu sobre a continuidade do livro de papel. Na entrevista, quando questionado sobre a função e a preservação da memória, questão discutida em Não contem com o fim do livro, Eco analisou: estamos perdendo a memória histórica. Diz ele: “Minha geração sabia tudo sobre o passado. Eu posso detalhar sobre o que se passava na Itália 20 anos antes do meu nascimento. Se você perguntar hoje para um aluno, ele certamente não saberá nada sobre como era o país duas décadas antes de seu nascimento, pois basta dar um clique no computador para obter essa informação. Lembro que, na escola, eu era obrigado a decorar dez versos por dia. Naquele tempo, eu achava uma inutilidade, mas hoje reconheço sua importância. A cultura alfabética cedeu espaço para as fontes visuais, para os computadores que exigem leitura em alta velocidade. Assim, ao mesmo tempo que aprimora uma habilidade, a evolução põe em risco outra, como a memória”. Na mesma entrevista, uma curiosidade sobre a biblioteca de Eco, que impediu sua secretária de fazer a catalogação dos livros, porque, diz, “a forma como você organiza seus livros depende da sua necessidade atual. Tenho um amigo que mantém os seus em ordem alfabética de autores, o que é absolutamente estúpido, pois a obra de um historiador francês vai estar em uma estante e a de outro em um lugar diferente. Eu tenho aqui literatura contemporânea separada por ordem alfabética de países. Já a não contemporânea está dividida por séculos e pelo tipo de arte. Mas, às vezes, um determinado livro pode tanto ser considerado por mim como filosófico ou de estética da arte; depende do motivo da minha pesquisa. Assim, reorganizo minha biblioteca segundo meus critérios, e somente eu, e não uma secretária, pode fazer isso. Claro que, com um acervo desse tamanho, não é fácil saber onde está cada livro. Meu método facilita, eu tenho boa memória, mas, se algum idiota da família retira alguma obra de um lugar e a coloca em outro, esse livro está perdido para sempre”. Sua conclusão, bem humorada, é que é “melhor comprar outro exemplar”.
Do papiro ao arquivo eletrônico, Umberto Eco e Jean-Claude Carrière atravessam 5 mil anos de história do livro em uma discussão erudita e bem-humorada. Na conversa entre os autores, intermediada pelo jornalista Jean-Philippe de Tonnac, a intenção não é apenas entender as transformações anunciadas pela adoção do livro eletrônico, mas incitar um debate, instigante e atual, a partir da premissa de que e a história dos livros e o amor a eles os salvarão do desaparecimento. A experiência de bibliófilos, colecionadores de exemplares antigos e raros, de pesquisadores e farejadores de incunábulos – livros impressos que datam dos primeiros tempos da imprensa (até o ano de 1500) -, lembra que o livro é uma invenção perfeita e insuperável, anatômica e funcionalmente adequada: objeto, ou melhor, instrumento, que as revoluções tecnológicas não exterminarão. Parte da divertida exposição dos autores mostra como o livro atravessou a história da humanidade, muitas vezes para o pior: Eco reuniu uma coleção de livros raríssimos sobre o erro humano, pois condicionam toda tentativa de fundar uma teoria da verdade.
“Nas altas salas da biblioteca, andando de um lado para outro, Kien invocou Confúcio. Este se aproximou, vindo da estante oposta, sereno, comedido, o que afinal não era de estranhar numa pessoa que tinha toda a sua vida atrás de si. A passos largos, Kien foi ao encontro dele, sems e lembrar do devido respeito. Sua exalatação contrastava estranhamente com a postura solene do chinês.
– Creio ter certa cultura! – bradou a cinco metros de distância. – Também creio ter algum tato. Houve quem me quisesse convencer de que cultura e tato são inseparáveis, que uma não pode existir sem o outro. Quem tentou me persuadir disso? Você!”
O búlgaro Elias Canetti (1905-1984), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1981, em seu célebre romance Auto-de-fé tematiza o isolamento, o fanatismo, a destruição e a autodestruição, através da história do filólogo e sinólogo Peter Kien. O protagonista, grande conhecedor das línguas antigas, é, porém, incapaz de penetrar os problemas contemporâneos. Grande bibliófilo, Kien é proprietário da mais importante livraria privada de toda a sua grande cidade e leva consigo uma pequena porção dela aonde quer que vá.
“Toda manhã, entre as sete e as oito, costumava dar uma caminhada, enquanto olhava as vitrinas das livrarias. Obseravava com um certo prazer que a cada dia havia mais sujeira e banalidades. Quanto a ele, era o dono da maior biblioteca particular da cidade. Carregava sempre alguns livros consigo. Sua paixão de bibliófilo, a única que se permitia em uma vida austera e cheia de trabalho, obrigava-o a ser cauteloso. Qualquer livro, mesmo os ruins, dava-lhe vontade de comprar. Felizmente, a maioria das livrarias não abria antes das oito. Às vezes, um empregado mais interessado em agradar o patrão chegava mais cedo e aguardava frente à porta fechada a chegada do gerente, para dizer: ‘Estou aqui desde às sete horas!’. Tamanho zelo comovia Kien. Tinha vontade de entrar ikmediatamente. Nas livrarias pequenas, muitas vezes às sete e meia já se podiam ver os donos trabalhando. Kien confiava na sua pasta atulhada de livros como forma de resistir à tentação. Segurava-a embaixo do braço, de um jeito epsacial que permitia pô-la em contato com o corpo. Podia senti-la contra as costelas, através do casaco leve e puído. O braço ficava apoiado na concavidade inferior, adaptando-se perfeitamente a ela. O antebraço servia de escora inferior. Os dedos estendidos podiam apalpar todas as áreas que lhes apetecessem. O valor do conteúdo justificava o execesso de cuidado. Se a pasta caísse casualmente e o fecho, apesar de ter sido examinado antes do passeio matinal, se abrisse nesse momento, obras preciosas cairiam também. Mais do que tudo, Kien odiava livros sujos”.
O escritor brasileiro Moacyr Scliar comenta que, para o protagonista, os livros “eram mais importantes que os seres humanos; uma pessoa só tem importância se valoriza os livros. Mas existe aí um elemento de ambivalência: em pesadelos ele vê a biblioteca destruída por um incêndio (semelhante às fogueiras da Inquisição que Auto-de-fé evoca). Pior, a cultura que adquiriu não o tornava sábio: é um homem ingênuo, dominado por uma governanta sexagenária, com quem acaba se casando”.
A obra, publicada em 1935 foi imediatamente proibida pelo nazismo e considerada por escritores, como Thomas Mann, um livro à frente de seu tempo. Trata-se de um livro monumental e minucioso. Marco histórico e literário, foi a obra de estreia e o único romance de Elias Canetti, concebido enquanto imagem de uma época fragmentada, em que visões e experiências individuais não encontram denominador comum e em que a linguagem tende à cacofonia, como se lê no texto da orelha da edição brasileira, publicada pela extinta Cosac Naify.
Walter Benjamin, no breve, mas precioso, ensaio “Desempacotando minha biblioteca“, presente no volume Rua de mão única [Obras completas, vol. II. Brasiliense, 2012, 6a. edição], fala da bibliolatria presente no colecionador, que vê o livro como companheiro ao longo dos caminhos da vida . Benjamin analisa este colecionador como alguém que oscila entre a ordem a a desordem, entre a tentativa de arrumação perfeita da biblioteca e a constante aquisição de novos livros que demandam, por sua vez, nova organização da biblioteca.
Para Benjamin, toda coleção beira o caos; porém, o colecionamento de livros beira o caos da memória.
O próprio filósofo, ao fazer a retrato do bibliófilo, fala de si mesmo, de uma auto-projeção nos livros que caracterizará um aspecto importante: “Pois dentro dele se domiciliaram espíritos ou geniozinhos que fazem com que para o colecionador — e me refiro aqui ao colecionador autêntico, como deve ser — a posse seja a mais íntima relação que se pode ter com as coisas: não que elas estejam vivas dentro dele; é ele que vive dentro delas. E, assim, erigi diante de vocês uma de suas moradas, que tem livros como tijolos, e agora, como convém, ele vai desaparecer dentro dela”.
O texto foi escrito por Benjamin na década de 1930, quando ele hospedou-se na casa do amigo Bertolt Brecht, exilado na Dinamarca: ambos fugiam da perseguição nazista. Diz o filósofo:
“Estou desempacotando minha biblioteca. Sim, estou. Os livros, portanto, ainda não estão nas estantes; o suave tédio da ordem ainda não os envolve. Tampouco posso passar ao longo de suas fileiras para, na presença de ouvintes amigos, revista-los. Nada disso vocês têm que temer. Ao contrário, devo pedir-lhes que se transfiram comigo para a desordem de caixotes abertos à força, para o ar cheio de pó de madeira, para o chão coberto de papéis rasgados, por entre as pilhas de volumes trazidos de novo à luz do dia após uma escuridão de dois anos justamente, a fim de, desde o início, compartilhar comigo um pouco da disposição de espírito – certamente não elegíaca , mas, antes, tensa – que estes livros despertam no autêntico colecionar. Pois quem lhes fala é um deles, e, no fundo está falando de si”.
Em outro texto, “Revisor de livros juramentado” [presente no supracitado Rua de mão única, também possui outra tradução publicada no Brasil, feita por Haroldo de Campos e Flávio Kothe e publicada no livro Mallarmé, de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos [Perspectiva, 1991, 3a. Ed.], Benjamin analisa o futuro do livro e da escrita, anunciando a perda da hegemonia do livro na sua forma tradicional, enquanto marco temporal da cultura: “Nosso tempo está como que em contraposição frontal à Renascença, e especialmente em contraste com a conjuntura em que foi inventada a arte da imprensa. Casualidade ou não, o surgimento desta na Alemanha ocorre na época em que o livro, no sentido eminente do vocábulo, o Livro dos Livros na tradução da Bíblia por Lutero, torna-se um bem do domínio público. Agora tudo indica que o livro, nessa forma tradicional, encaminha-se para o seu fim”. Para o filósofo, “antes que um contemporâneo chegue a abrir um livro, terá desabado sobre os seus olhos um turbilhão tão denso de letras móveis, coloridas, litigantes, que as chances de seu adentramento no arcaico estilo do livro já estarão reduzidas a um mínimo. Nuvens de letras-gafanhotos, que já hoje obscurecem o sol do suposto espírito aos habitantes das metrópoles, tornar-se-ão cada vez mais espessas, com a sucessão dos anos. Outras demandas do mundo dos negócios assumem o comando”.
“O universo (que outros chamam a Biblioteca) constitui-se de um número indefinido, e quiçá infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por varandas baixíssimas” – Borges, “A Biblioteca de Babel”.
Ao longo da obra de Jorge Luis Borges é recorrente, em seus contos e ensaios, a imagem do livro enquanto universo ou elemento chave para decifrar o mundo.
No famoso conto “A Biblioteca de Babel“, reunido no volume Ficções, Borges descreve uma biblioteca tão grande quanto o universo, composta de salas hexagonais, povoadas por livros únicos, dos quais não há dois idênticos. Ali há todas as possibilidades de expressão, a utilização de todas as combinações possíveis do alfabeto.
A biblioteca, para Borges, representa o absoluto. É um arquivo infinito, labiríntico, em que os caminhos sempre se cruzam, porém, sempre de maneira diferente. Ele mostra a analogia que vê entre a biblioteca e o universo: “O universo (que outros chamam a Biblioteca) constitui-se de um número indefinido, e quiçá infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por varandas baixíssimas. De qualquer hexágono, vêem-se os pisos inferiores e superiores: interminavelmente. A distribuição das galerias é invariável”. A Biblioteca de Babel, cuja grandiosidade abarca o mundo, é um lugar sagrado, pois seu acesso poderia significar atingir todo o conhecimento alí concentrado. Os promissores hexágonos proporcionaram, a princípio, nos homens, uma “extravagente felicidade”: “Todos os homens sentiram-se proprietários de um tesouro intacto e secreto. Não havia problema pessoal ou mundial cuja eloqüente solução não existisse: nalgum hexágono. O universo estava justificado, o universo usurpou bruscamente as dimensões ilimitadas da esperança”. Se, porém, a biblioteca é perfeita, o homem é necessariamente “o bibliotecário imperfeito”, incapaz de desvendar os enigmas alí resguardados, de modo que a biblioteca é, ao mesmo tempo, acessível e secreta.
Sua inacessibilidade fica evidente, alí existe, inclusive, um livro perfeito, livro que reúne em si a totalidade do mundo e que, portanto, só é possivelmente lido por algum deus: “Sabemos, igualmente, de outra superstição daquele tempo: a do Homem do Livro. Nalguma estante de algum hexágono (raciocinaram os homens) deve existir um livro que seja a cifra e o compêndio perfeito de todos os demais: algum bibliotecário o consultou e é análogo a um deus. […] Não me parece inverossímil que nalguma divisão do universo haja um livro total; rogo aos deuses ignorados que um homem – um só, ainda que seja, há mil anos! – o tenha examinado e lido. Se a honra e a sabedoria e a felicidade não estão para mim, que sejam para os outros. Que o céu exista, embora meu lugar seja o inferno”.
O conto, publicado em 1941, deu origem a um projeto online.
Outro conto do mesmo volume, “O jardim das veredas que se bifurcam”, aborda novamente a relação entre livro e totalidade, porém, aqui, através de um jogo com o tempo. Borges descreve um livro infinito, escrito por um sábio chinês, que é um labirinto temporal.
Em “O livro”, texto presente em Cinco visões pessoais [Editora da UNB, 1985], Borges conta, sobre sua própria experiência bibliófila: “Continuo imaginando não ser cego; continuo comprando livros; continuo enchendo minha casa de livros. Há poucos dias fui presenteado com uma edição de 1966 da Enciclopédia Brokhaus. Senti sua presença em minha casa – eu a senti como uma espécie de felicidade. Ali estavam os vinte e tantos volumes com uma letra gótica que não posso ler, com mapas e gravuras que não posso ver. E, no entanto, o livro estava ali. Eu sentia como que uma gravitação amistosa partindo do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade de que dispomos, nós, os homens”.
A publicação que agrupa em uma caixa os dois volumes Memórias Esparsas de uma Biblioteca e Memórias de uma Guardadora de Livros é mais uma leitura agradável sobre o amor aos livros, à aquisição de exemplares especiais, à organização do acervo que a partir de certo ponto, ganha vida própria.
José Mindlin, ao relembrar episódios da formação de sua Biblioteca, em São Paulo, a partir da década de 30, nos introduz no universo do livro no Brasil e no exterior, falando de sua relação com editores, bibliófilos, livreiros. Há ainda, em apêndice, um ensaio seu, inédito, “O livro no Brasil: bibliotecas e tipografias”.
Cristina Antunes nos fala de sua trajetória, do seu cotidiano como conservadora, há mais de dois anos, desta mesma biblioteca que acolhe pesquisadores do mundo inteiro. A autora reflete sobre o seu ofício e conta as pesquisas e aprendizados que este a motivou a fazer. Em apêndice, o artigo “A Biblioteca de Guita e José Mindlin” publicado há anos na Revista Portuguesa de História do Livro, ainda inédito no Brasil.
Mindlin, apesar de gostar de caracterizar sua biblioteca como “indisciplinada” – traço que o grande bibliófilo brasileiro considerava representativo de si mesmo, que, com múltiplos interesses, foi um “leitor indisciplinado”, que lia “sobre os mais variados assuntos” -, a coleção possui quatro eixos temáticos bem definidos: “assuntos brasileiros”, “literatura em geral”, “livros de arte”, e “livros como objeto de arte”, estes, considerados em virtude de seus traços tipográficos, de sua diagramação, ilustração, encadernação. [um recorte detalhado do acervo “indisciplinado” de Mindlin pode ser encontrado no livro Destaques da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, escrito por Mindlin].
Em artigo escrito em 2004 por ocasião do lançamento da caixa com os dois volumes, Katia Calsavara cita uma frase do grande bibliófilo que, então, dizia-se “compulsivo patológico” na arte de colecionar livros: “A gente passa, os livros ficam”. A jornalista conta que “aos treze anos, ele já costumava passear de bonde com o irmão para percorrer os sebos de São Paulo. Também contador de histórias, Mindlin não poderia deixar de reavivar e registrar algumas das aventuras que o levaram a reunir os mais de 35 mil títulos que conserva em sua casa-biblioteca, ou vice-versa, no bairro do Brooklin, em São Paulo. Parte de suas peregrinações em busca de exemplares raros e a história de como fundou a Biblioteca de Guita e José Mindlin estão em Memórias Esparsas de uma Biblioteca”. Calsavara perguntou se, entre tantos livros, havria para ele algum preferido, ao que Mindlin lhe respondeu: “Uma característica da bibliofilia é a poligamia. Não há como dizer prefiro este ou aquele”. Porém, com esforço, elencou a versão original de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, a primeira edição de Os Lusíadas, de Camões, e outras primeiras edições, como as de O Guarani, de José de Alencar, e A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo.
A Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin abriu suas portas ao público em 2013, na Cidade Universitária de São Paulo.
Todo bom bibliófilo orgulha de todos os Ex-libris de seus livros, por meio deles cada volume é personalizado, interizado à sua propriedade, indicando parte de seus gostos e personalidade – ou, mesmo, podendo conter algum discreto lembrete a um eventual surrupiador da obra, como o sarcástico ex-libris do desenhista e caricaturista francês Gus Bofa (1883-1968), por exemplo: “Esse livro pertence a Gus Bofa. / O que está fazendo aqui?”. Há um livro especial sobre o assunto, intitulado justamente Ex-libris, escrito pelo professor Plínio Martins Filho, que traz uma vasta seleção de ex-libris pertencentes a José Luís Garaldi, dono do Sebo Sereia, em São Paulo, selecionados de acordo com três critérios principais: os mais antigos (do período imperial, onde não aparece a palavra ex-libris); os que pertenceram a personalidades brasileiras, sobretudo políticas e literárias do século XX; e aqueles que se sobressaem por alguma curiosidade do dístico ou do desenho.
Para aqueles que, por acaso ou vocação, resolvam assumir-se bibliófilos e queiram um dedo de prosa, recomendamos o livro do grande amante de livros Rubens Borba de Morais, O bibliófilo aprendiz. Mas não se esqueça de que, como diz Baudrillard, “colecionamos sempre a nós mesmos”.