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Frágil experiência do indivíduo

10 março, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“É diferente ser sem pátria em seu próprio país e sê-lo no estrangeiro, onde justamente essa falta de pátria pode nos levar a encontrar um novo lar”.

Fotografia de Roger-Viollet, da entrada de Auschwitz [janeiro de 1945]

A língua exilada, do húngaro Imre Kertész (1929), reúne ensaios, discursos e conferências, inclusive o texto proferido pelo autor quando do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura, em 2002. A Academia Sueca, ao anunciá-lo vencedor, definiu sua escrita como sustentáculo da “vivência frágil do indivíduo contra a arbitrariedade bárbara da história”.

Entre as narrativas marcantes da segunda metade do século XX figuram seus relatos e reflexões, enquanto sobrevivente dos campos de extermínio nazistas. Imre Kertész transforma a experiência da deportação em reflexão sobre os valores éticos e morais da nossa sociedade.

A língua exilada é uma coleção de ensaios permeados pela idéia de que o Holocausto não é um acontecimento restrito aos nazistas e aos judeus: é uma experiência universal. Se Theodor Adorno disse ser impossível escrever versos após Auschwitz, Kertész afirma que o campo de concentração é um marco zero e que, portanto, nada mais poderia ser escrito sem fazer menção a ele. Segundo o autor húngaro, em todas as produções artísticas pós-Segunda Guerra Mundial estão evidentes as marcas da aniquilação dos valores que sustentavam a civilização antes do Holocausto. Passada a euforia inicial da queda do Muro de Berlim, em 1989, renasceram os velhos nacionalismos e, com eles, a sombra do anti-semitismo.

“Vivemos na era das catástrofes”, diz Kertész, “todo homem é portador da catástrofe, e para a sobrevivência se faz necessária uma arte peculiar da sobrevivência. O homem do tempo das catástrofes não tem destino, não tem qualidades, não tem caráter. O meio social terrível — o Estado, a ditadura, chame-o como quiser — o seduz com a força de atração dos redemoinhos vertiginosos até que ele desista da resistência e nele exploda o caos como um gêiser fervente — e a partir de então o caos se torna sua morada. Para ele, já não existe retorno a um ponto de equilíbrio do Eu, a uma certeza sólida e incontestável do Eu: portanto, perde-se no sentido mais verdadeiro da palavra. Esse ser sem o Eu é a catástrofe, o verdadeiro Mal”.

Como diz o diretor de teatro Gabriel Villela, em artigo publicado na Folha de São Paulo, o livro “dá continuidade à estirpe de grandes pensadores, independentemente da escolha de gênero literário, atentos à falência do homem como cultura, à idéia de civilização como um projeto desesperançoso. Chama a atenção pela contundência dos relatos sobre Auschwitz, para onde Kertész foi deportado aos 15 anos, o que lhe causou impressões que são a base de toda sua obra”.

Para o cientista social Isaías Carvalho Jr, em artigo publicado no portal Cronóipios, “Kertész tem a consciência histórica de sua posição de escritor e ser humano que faz questão de expor essa tragédia em seus textos. Seus livros não são apenas obras memorialísticas que se preocupam em relatar ‘realisticamente’ o horror dos campos de concentração”. Carvalho Jr. analisa que o Holocausto “marca a escrita de Kertész como uma cicatriz tão profunda que se torna impossível referir-se ao mundo sem citá-lo. Com um discurso sóbrio e ressentido, o autor caminha pela literatura de seu país dedicando uma carta aos 90 anos de Ferenc Fetjö e um belíssimo ensaio sobre Sándor Márai. O cerne do ensaio sobre Márai é discussão entre duas alternativas possíveis de um escritor húngaro em meio à situação do país no pós-guerra: abandonar a pátria como fez Márai ou ficar, como fez Kertész”. Há, para o crítico, no livro, “a procura de interrogar o presente, não a partir de um passado estanque e datado, mas a partir de um passado presentificado, como um fenômeno de tal magnitude que rompe as barreiras cronológicas da história linear e espalha sua onipresença necessária para qualquer tentativa de entendimento crítico do mundo”.

O trauma coletivo marca toda sua vida. Decidido a viver na Hungria, o autor conta que pôde ver “como uma nação inteira pode ser levada a negar seus ideais”. Diz ele: “observei os primeiros movimentos, cuidadosos, no sentido da acomodação; compreendi que a esperança é um instrumento do mal e que o imperativo categórico de Kant, a ética, não passa de uma serviçal moldável da autopreservação”.

É importante aqui citar o breve, e ótimo, comentário de contextualização histórica e poética de Kertész, realizado pelo crítico Kelvin Falcão Klein e publicado em seu blog “Um túnel no fim da luz”, em que compara três escritores hpungaros, de três gerações: Gyula Krúdy, Sándor Márai e Imre Kertész. O crítico cita um doa ensaios de A língua exilada, em que, diz, “Kertész escreve: ‘eu poderia falar da topografia de Gyula Krúdy durante muito tempo’ (e o mesmo sem dúvida valeria para Sándor Márai) – ou seja, as praças, ruas, panoramas, becos e monumentos de Budapeste. E com ‘as paisagens de Budapeste’ e ‘as imagens de Budapeste’, segundo Kertész, que Krúdy recria o “mito fundamental de Dante”. Kertész fala sobre um romance específico de Krúdy, O prêmio das mulheres, publicado em 1919,  em que, “justo em meio ao inferno europeu […] nascia naquele momento o romance que no final evocava o pensamento de Dante: da orgia universal da morte e da catástrofre… renascerá o amor?. Essa é a Montanha mágica, de Thomas Mann”. Falcão Klein lembra o quanto Kertész é marcado por esta linhagem literária: o escritor, conta, “algumas páginas adiante, insiste em uma frase que encontra nos diários de Márai: tive que fugir da Hungria para ser um escritor húngaro”.

Segundo José Alberto Cotta, em artigo publicado na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, a obra literária de Kertész “aborda de forma profunda e mesmo poética as questões do desterro humano, da busca incessante pela identidade e da importância fundamental do outro para a constituição do si mesmo, questões essas que não encontro ou pouco encontro descritas e pensadas na literatura psicanalítica”.

A busca pela identidade marcada pela prosa de Kertész perpassa sua relação com a escrita e com o totalitarismo. Seus textos são trabalhados enquanto espaços de confronto do Eu, com um Outro. Em meio a este confronto, é marcante o sentimento de não pertencimento a lugar algum, a cultura alguma, de vivência em meio a grande escombro cultural; o autor não se sabe judeu, húngaro ou, apenas, um sobrevivente.

O autor, em 2012, aos 83 anos, declarou sua aposentadoria. “Já não quero escrever. A obra, que está tão relacionada com o Holocausto, está concluída para mim”, disse.

A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para leitura.

 

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Trecho:

[…]

Gostaria, porém, de voltar ao que me é pessoal, à escrita. Existem algumas questões que alguém na minha situação não formularia. Jean-Paul Sartre, por exemplo, dedicou um pequeno livro à questão “Para quem escrevemos?”. Ela é interessante, mas pode também ser perigosa, e agradeço aos astros por nunca ter tido necessidade de me ocupar dela. Vejamos qual é o perigo. Se um escritor escolhesse um grupo ou classe social não somente para entretê-los, mas também para influenciá-los, teria primeiro de examinar seu próprio estilo para verificar se é adequado a essa prática. Logo seria assaltado por dúvidas e passaria o tempo se observando. Como teria certeza do que seus leitores desejariam, do que de fato gostariam? Afinal, não poderia consultar cada um deles. E, ainda que o fizesse, seria em vão. Teria de confiar na imagem que ele faria de seus possíveis leitores, nas expectativas que lhes atribuiria e no efeito que gostaria de obter sobre eles. Portanto, para quem escreve um escritor? A resposta é óbvia: escreve para si mesmo.

Ao menos, posso dizer que cheguei a essa resposta sem rodeios. Reconheço que para mim não foi difícil – eu não tinha leitores e nenhum desejo de influenciar quem quer que fosse. Não comecei a escrever por nenhuma razão especial, e o que escrevia não era dirigido a ninguém. Se tinha algum objetivo, era o de ser fiel, na linguagem e na forma, ao assunto em pauta, e nada mais. Era importante ter isso claro durante o período absurdo e triste em que a literatura era engajada e controlada pelo Estado.

Seria mais difícil responder a outra questão, perfeitamente legítima, ainda que mais ambivalente: por que escrevemos? Nisso também tive sorte, pois nunca me ocorreu que em tal questão houvesse uma escolha. Descrevi um incidente marcante em meu romance O fiasco. Eu estava no corredor vazio de um edifício de escritórios e ouvi o som de passos vindo de outro corredor. Fui tomado por uma agitação estranha, porque os passos se aproximavam, e, embora o que ecoasse fossem claramente os passos de uma única pessoa invisível, de repente tive a impressão de que ouvia as passadas de milhares de pessoas. Era como se uma imensa procissão marchasse por aquele corredor, e naquele instante notei a força de atração irresistível daqueles passos. Num único instante compreendi o êxtase da entrega, o prazer inebriante de encontrar a multidão, o que Nietzsche chamou – num contexto diferente, apesar de relevante – de “experiência dionisíaca”. Era quase como se uma força física me empurrasse na direção das fileiras que marchavam; senti a necessidade de recuar e de me colar na parede, para evitar ceder àquela força sedutora.

Narrei esse instante intenso como o vivi; a fonte de onde ele brotava, como uma visão, parecia estar fora de mim. Todo artista conhece tais momentos. Houve um tempo em que eram chamados de “inspirações súbitas”. Apesar de tudo, eu não diria que a experiência tenha sido uma revelação artística. Seria mais uma descoberta existencial. O que ganhei com ela não foi a minha arte – suas ferramentas, ainda tive de buscar por algum tempo -, mas a minha vida, que eu quase perdera. A experiência dizia respeito à solidão, à vida mais difícil, àquilo de que falei no início: à necessidade de sair da multidão narcotizante, da História, que nos suprime a individualidade e o destino. Reconheci, horrorizado, que uma década depois de ter voltado dos campos de concentração nazistas, e ainda a meio caminho do feitiço terrível do terror stalinista, da vivência toda restavam apenas algumas impressões confusas, algumas anedotas. Como se não tivesse acontecido comigo, como se costuma dizer.

[…]

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A LÍNGUA EXILADA

Autor: Imre Kertész
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 31,43 (216 págs.)

 

 

 

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