Grotesco, irônico, filosófico, jocoso: complexo; Graça infinita, de David Foster Wallace (1962 – 2008), é um dos acontecimentos literários mais aguardados e comentados do ano. Publicado originalmente em 1996, o aclamado Infinite Jest finalmente ganha uma – ótima – edição no Brasil, pela cuidadosa tradução de Caetano Galindo.
O autor debruçou-se sobre esta, que é considerada sua obra-testamento, por mais de uma década. Foi seu segundo e último romance, cultuado por sua bem-humorada e satírica densidade e profundidade.
Na história, os Estados Unidos e o Canadá foram substituídos pela poderosa Onan, a Organização de Nações Norte-Americanas. Uma enorme porção do continente se tornou um depósito de lixo tóxico. Separatistas quebequenses praticam atos terroristas e a contagem dos anos foi vendida às grandes corporações.
Graça infinita é considerado o último grande romance do século XX. O livro é o maior representante uma geração ligada à ironia e ao entretenimento. Ora cômico, ora doloroso, o romance acompanha os irmãos Incandenza, ao passo que eles tentam dar conta do legado do patriarca James Incandenza, um cientista de óptica que tornara-se cineasta e cometera suicídio após produzir um filme, “Infinite Jest”, que, misteriosamente, pela alta voltagem de entretenimento, levava à morte quem o assistisse. A família Incandenza é tida como a mais disfuncional de toda a literatura contemporânea,
Em meio a uma disputa entre organizações governamentais e terroristas que desejam usar o filme como arma de guerra, os irmãos Incandenza percorrem uma burlesca e filosófica busca pelo sentido da vida: uma exuberante e original investigação sobre a natureza humana.
Caetano Galindo, no blog da Companhia das Letras, diz: “[…] o livro não é um Ulysses de complexidade e, página por página, é provavelmente mais divertido do que qualquer coisa que você já tenha lido, mas ele simplesmente não subestima a tua inteligência, e não se encolhe diante de temas doloridos, doídos, dolorosos… É um livro grande, de gente grande”.
Maria Fernanda Rodrigues, em artigo escrito ao jornal O Estado de São Paulo, cita o tradutor, que, entrevistado pela jornalista, analisou: “Há muito da obra de um pensador por trás da ficção dele, Graça Infinita é prosa lindíssima, é uma mente inventiva demais, mas é também um enigma filosófico e o enigma de um filósofo, é o romance visto como um tubo de ensaio do mundo, da realidade”. O registro típico do livro, segundo o tradutor, conforme disse no mesmo artigo, é de “uma prosa onívora, composta de oralidade, de tudo quanto é tipo de jargão e de níveis diversos de formalidade e erudição, misturados num registro quase falado que é uma perfeição em termos de ‘tom’, mas que nem sempre atende, por exemplo, as exigências da gramática normativa”.
Muito comentou-se sobre a escolha da tradução do título. “Infinite Jest” é uma citação da peça Hamlet. Breno Kümmel, em seu blog literário, diz: “A palavra jest se traduz dificilmente pro português: a linhagem imediata dela do inglês é jester, bobo da corte, que não tem no português correspondente em forma de verbo ou substantivo para descrever o que seria o “ato básico” do jester. A palavra brincadeira é corriqueira, dia-a-dia, demais para jest, que é uma palavra antiga. Só que não é só antiga, é antiga mas ainda está bastante presente (tanto pela palavra jester, em todos os baralhos do mundo, ou na expressão “surely you jest” que é meio que utilizada num pedantismo auto-irônico). As palavras antigas do português para falar brincadeira, no entanto, todas tem uma sonoridade ou aparência excessivamente esquisitas (em um livro que faz do esquisito ferramenta frequentemente utilizada, e portanto não precisa de mais ainda do que já tem). Galhofa faz lembrar farofa, chiste tem uma sonoridade horrível, gracejo a palavra praticamente usa um monóculo: tudo isto daria ao livro uma aparência de rebuscamento que não é desejável (uma vez que faz do rebuscamento ferramenta frequentemente etc… é um livro complexo, é)”. A escolha de Caetano Galindo teria sido “Infinda Graça”, para valer-se da sonoridade ambivalente, “fim da graça”. O próprio tradutor, disse que a escolha do título é sempre uma escolha conjunta com os editores. Graça infinita tem a vantagem de manter um eco religioso que, dada a questão moral desenvolvida ironicamente na narrativa, torna-se plausível.
Segundo Galindo, como disse no blog da Companhia das Letras: “Infinite Jest (que a princípio pode querer dizer algo como Piada Infinita) é uma citação. De quando Hamlet, do Hamlet, segura nas mãos a caveira de Yorick, o bobo-da-corte, e lembra que na sua infância conheceu aquele fellow of infinite jest, um camarada que não parava de brincar… (Diga-se de passagem, é por causa dessa cena que a gente pode saber a idade de Hamlet, que, ao contrário de certo imaginário comum, tem seus trintinha.) Essa citação, no melhor dos mundos, deveria ser reconhecível. Hamlet, crânios, enterros, são temas relevantes para o livro de Wallace. Logo na abertura se menciona por exemplo uma cena em que um filho desenterra o pai para procurar por algo dentro do seu crânio! Mas um problema recorrente da tradução de citações é que, a não ser em casos muito óbvios (ser ou não ser), elas tendem a se perder”.
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Trecho:
Uma mão levantada pelo violentamente vesgo Carl ‘Baleia’ Whale, treze anos. Struck percebe:
‘E se você precisar peidar.’
‘É sério, né, Moby.’
‘Jim, senhor, e se você está lá jogando, e de repente tem que peidar. Parece que é um daqueles pressurizados nojentos bem quentes e tal.’
‘Deu pra entender.’
Agora uns murmúrios empáticos, olhares de um pro outro. Josh Gopnick concorda intensissimamente com a cabeça. Struck está de pé muito ereto à direita do monitor, mãos atrás das costas como um catedrático de Oxford.
‘Assim, é do tipo que é urgente pacas.’ Whale olha brevemente em volta. ‘Mas que não é impossível que seja na verdade uma vontade de ir ao banheiro, por outro lado, disfarçada de peido.’
Agora cinco cabeças estão aquiescendo, sofridas, urgentes: claramente uma questão controversa no sub-14. Struck examina uma cutícula.
‘Você quer dizer defecar, então, Baleião. Ir ao banheiro.’
Gopnik ergue os olhos. ‘O Carl está dizendo aquele tipo que você não sabe o que fazer. E se você acha que tem que peidar mas na verdade é que você tem que cagar?’
‘Assim tipo numa situação de competição, não é uma situação que você pode ir aguentando e forçando pra ver o que rola.’
‘Aí por cautela você não solta,’ Gopnik diz.
‘– o peido,’ Philip Traub diz.
‘Mas aí você se negou um peido urgente, e está correndo de um lado pro outro tentando competir com um peido quente terrível desconfortável e nojento andando pela quadra dentro de você.
[…]
‘Moby, se sou eu: eu deixo andar.’
‘Você manda ver haja o que houver?’
‘Au contraire. Eu deixo andando dentro de mim o dia inteiro se for o caso. Eu tenho uma regra de ferro: nada me escapa da bunda durante o jogo. Nem um apito ou um silvo. Se eu jogar dobrado eu jogo dobrado. Eu aguento o desconforto em nome de uma dignidade cautelosa, e se for um especialmente ruim eu olho pro céu entre os pontos e digo pro céu Obrigado Cavalheiro mais um por favor. Obrigado cavalheiro mais um por favor.’
Gopnik e Tallat-Kelpsa estão anotando isso tudo.
[Trecho divulgado pelo tradutor no blog da Companhia das Letras, em junho deste ano. O tradutor adverte que o trecho foi retirado de seu arquivo pessoal, sem preparação e que o resultado final publicado no livro deve apresentar diferenças].
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Autor: David Foster Wallace
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 78,33 (1144 págs.)