Um dos romances finalistas do Prêmio Jabuti, O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, de Evandro Affonso Ferreira, narra a comovente história de um homem erudito, que é abandonado repentinamente por sua amada mulher e que perde, então, a razão de viver e torna-se morador de rua – “Dia anterior àquele em que ela deixou bilhete elíptico ACABOU-SE; ADEUS sobre o criado-mudo, disse-me, olhos nos olhos: Vou amá-lo vida toda. Silhueta da lâmina da despedida estava por trás daquele olhar umedecido”. O livro vem causando polêmica pelo estilo do autor, considerado demasiadamente hermético.
O crítico literário e escritor Vinícius Jatobá, escreveu, em artigo publicado no jornal Estado de São Paulo que o “sentimento que motiva cada palavra do relato está invisível pela escolha estilística do autor” e que se trata de um livro “escrito apenas para 43 pessoas”. O título e a escolha do personagem como um erudito, porém, talvez façam tão somente confirmar o que a crítica especializada indica: Evandro é um escritor consistente e coerente, muito cuidadoso com a forma de seus romances, capaz de criar um personagem denso envolvido numa trama emocional complexa e de fazê-lo com a elegância das sutilezas das indicações – sua loucura, seu tormento, são seu próprio cenário transbordante, repleto de citações e neologismos que o cercam em seu monólogo: seu relato resguarda a dor que há sob a passagem pela linha divisória entre realidade e fantasia. Levando consigo os Adágios de Erasmo de Rotterdam, o mendigo erudito narra sua história a um interlocutor-escritor imaginário, a quem chama de “senhor”. Narrador e interlocutor encontram-se debaixo de um viaduto, entre outros personagens, também mendigos, que em seu transtorno transformam-se, de anônimos e miseráveis, em criaturas imaginárias extraordinárias, como o “menino borboleta” ou o mendigo-poeta. Seu fluxo de consciência é escrito num só parágrafo, como se num só fôlego.
Márcia Tilburi, em seu blog, escreveu uma resenha sobre o livro, na qual analisa: “O texto é o mantra do nonsense, ritmo diário que escutamos sem ouvir, do qual este livro é o grito sutil. Por isso é que Evandro marca certas frases e as repete fazendo de sua literatura uma lembrança da oralidade. […] Mais longe, descobrimos que é a erudição como emblema do conhecimento inútil, que está sendo questionada como escape, como resto que se tem às mãos em um mundo que só valoriza bens materiais, poder e vida fácil, e que reduz a corpo, à mera vida sobrevivente, todo aquele que por motivos vários, não suportou a luta de vida e morte em que sempre vence a ordem aviltante das coisas. No fundo, há o sistema sustentado em miséria e dor, um sistema em que toda a cultura é tratada como lixo e em que o lixo tem muito mais chance de se tornar ‘cultura”. Segundo ela, “Para os que não tem medo do pensamento e do estilo de Evandro Affonso Ferreira, o efeito é o aprendizado da coragem com que ele erigiu essas páginas fazendo ver que, para além da esperança, ainda há a chance da literatura”.
Trata-se de um romance “niilista-lírico”, como define o próprio autor. Um livro que versa a respeito da memória e da tênue linha sobre a qual equilibram-se a razão e a loucura.
O MENDIGO QUE SABIA DE COR OS ADÁGIOS DE ERASMO DE ROTTERDAM
Autor: Evandro Affonso Ferreira
Editora: Record
Preço: R$ 27,90 (128 págs.)