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De carne e osso

24 setembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Oswldo Goeldi, xilogravura, impressão póstuma

Carlos Henrique Schroeder acaba de lançar As fantasias eletivas, pela Record. Sua narrativa une prosa, poesia e fotografia, usando-os para pensar sobre a solidão e a criação literária. Uma forma literária que acaba por mostrar-se profundamente humana. Segundo o autor: “Quem ler o livro vai observar que são personagens de carne e osso, gente como a gente que tem problemas também”.

O livro conta a história de um recepcionista noturno de hotel que leva uma vida atormentada em Balneário Camboriú. Ele encontra, na improvável amizade com o travesti Copi e sua paixão por fotografia, uma alternativa para reconstruir sua vida e seguir em frente: ele lerá o que Copi escreve e será o único que terá acesso a suas fotos de surpreendente beleza. 

A compilação dos escritos de Copi compõe-se de capítulos curtos, que vão de ‘A’ a ‘Z’. Ao longo de cada um deles, a personagem visita Jaraguá do Sul, fotografa e disserta sobre cada ponto por ela conhecido.

Um livro abre-se dentro do livro, e o romance, assim, torna-se um profundo ensaio a respeito da alma humana.

Schroeder é autor, entre outros, de As certezas e as palavras (que pode ser baixado em formato pdf gratuitamente pelo site do autor), vencedor do Prêmio Clarice Lispector 2010, da Fundação Biblioteca Nacional. É também idealizador do Festival Nacional do Conto, coordenador do ótimo selo, dedicado apenas a contos, “Formas Breves” – da editora de ebooks e-galáxia –, além de curador da seção de contos da revista Pessoa. Schroeder é também colunista do O Correio do Povo.  As fantasias eletivas é seu primeiro livro pela Editora Record.

As fantasias eletivas é uma obra considerada mais realista, abordando questões diferentes de tudo que o autor já publicou.

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Trecho:

B.

Mal saiu do hotel, guardou o crachá no bolso traseiro e tirou a camisa de dentro das calças, afrouxou o cinto e abriu mais um botão da camisa. Atravessou a avenida dos Estados em dois fôlegos, andou quatro pequenos quarteirões e entrou na rua Paraguay. Respirou fundo, pois faria quase dois quilômetros por uma rua com pequenas subidas, até chegar onde morava, na rua Paquistão, no bairro das Nações. Havia trabalhado a noite toda, estava cansado, e desta vez não tinha dinheiro para pagar um mototáxi. Era inverno, e os invernos eram sempre duros com ele e para ele. Seu uniforme, composto de uma camisa de poliéster bege (que não o deixava transpirar e criava uma cachoeira que escorria de suas costas e empoçava sua cueca) e uma calça vermelho-cardeal (também de poliéster, que assava suas coxas), fazia com que amaldiçoasse diariamente quem projetou ou teve ideia de fazer um uniforme cem por cento poliéster. Que lhe dessem uns sacos de lixo de uma vez, pensava. Aquele uniforme definitivamente não combinava com um homem de trinta e quatro anos. Aquilo não era decente, e atravessou a avenida Palestina, meneando a cabeça negativamente, mas já pensando em pendurar um macarrão e alho no Mercado Passarinho, que ficava perto de sua casa. As únicas duas coisas que ele sabia cozinhar eram macarrão ao alho e óleo e arroz com legumes. Intercalava esses pratos, e nunca enjoava. É o que se tem, é o que se faz. E enquanto pensava no cheiro do alho, logo após passar a Escola Municipal Presidente Médici, escutou seu nome.

“Ei, Renê!”

Olhou para trás e viu um rapaz magro, de cabeça baixa, usando uma camiseta surrada e um boné que lhe cobria os olhos. E quando viu a faca na mão, o desconhecido já estava a um metro. Renê deu um passo para trás e virou-se rapidamente para o lado, e sentiu uma terrível ardência na barriga, como um corte mergulhado em álcool. Viu a faca cair no chão: era de cozinha, aquelas pequenas, de serra. Queriam mesmo machucá-lo. E aí viu os olhos do agressor, não havia dor, não havia raiva.

“É um aviso, um lembrete, mermão, é pá deixá a Seca na dela. Some, sacô?”

Seca. Sacô. Seca. Sacô. Seca. Sacô. As duas palavras ecoaram alguns segundos no ouvido dele e se misturaram, secô, saca, secô, saca

C.

E ardia, o corte, ardia a esperança, e Renê não pensou em pedir ajuda, e o Seca, saco, saca, secô continuou por alguns instantes, até surgir uma imagem, ou melhor, uma lembrança de uma tarde de domingo em que ele apanhara. Fora humilhado (também) por um estranho, num daqueles domingos em que as pessoas são geralmente felizes, antes de começar o “Fantástico”, ao menos. E aquela humilhação ardia como o corte. Naquela época, havia vinte anos ou mais, ele se revoltou, apenas isso, e não entendeu. Aliás, Renê não era muito bom em entendimentos: tem gente assim, você sabe, seus pais sabem, seus avós sabem e até alguns cachorros sabem. Foi o mastigar do tempo que o fez digerir aquele tapa de mão aberta e o chute, naquele domingo. Ambas as coisas doeram muito mais no moral do que no corpo, e geralmente é assim. Não que ele se lembrasse daquele fim de tarde constantemente, mas era uma imagem viva, e ao menos uma vez por ano aquilo assaltava sua mente. Apanhou porque estava bem-vestido, feliz, porque tinha um tênis bacana, um Commander, a bota que era moda entre os pré-adolescentes, porque tinha os dentes brancos e o cabelo não era oleoso, apanhou porque em seus olhos havia futuro (mal sabiam os agressores que o futuro de Renê não seria nada glorioso). E, quando esteve olho no olho com aquele agressor de outrora, viu sua olheira profunda, uma raiva intermitente. E sabia que não devia reagir, não podia, que tudo podia piorar, devia apanhar quieto, ao menos desta vez. E tudo isso num tempo e numa época em que as crianças podiam sair de casa sozinhas. Quantos anos ele tinha? Doze, treze, quatorze? Tinha uma namorada, isso sim, a Lúcia, que morava a quinhentos metros de sua casa. Bastava cruzar a Terceira Avenida e pronto, estava lá, na casa de Lúcia. Também lembrava que a mãe de Lúcia era bonita, e brava.

E naquela tarde eles chegaram, eram quatro e, embora magros, eram altos e tinham os olhos fundos, foi a primeira vez que ele viu alguém com olheiras. Estavam malvestidos, descalços. Não disseram nada, passaram a mão na bunda das meninas, deram um soco no olho do Waldir, uns safanões no Humberto, e ele recebeu um tapa bem na rosca do ouvido (que zuniu por horas). E um chute muito forte na perna esquerda. As meninas começaram a gritar e eles foram embora. Mas aqueles garotos não sabiam que Renê era um ferrado também, e a roupa que usava havia ganhado de sua madrinha, naquele dia, inclusive o Commander. Renê lembrou do Commander, era marrom-claro ou verde-claro? E viu o vermelho-escuro empapar sua camisa.

[Fonte: Folha de São Paulo, caderno Ilustríssima]

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AS FANTASIAS ELETIVAS

Autor: Carlos Henrique Schroeder
Editora: Record
Preço: R$ 32,00 (111 págs.)

 

 

 

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