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Certezas antropológicas contra as incertezas feministas ou vice-versa

26 agosto, 2014 | Por Isabela Gaglianone

A CosacNaify acaba de publicar O efeito etnográfico, coletânea de dezesseis dos artigos mais influentes da antropóloga britânica Marilyn Strathern, publicados entre 1980 e 2004. Os textos foram traduzidos por Iracema Dulley, Jamille Pinheiro e Luísa Valentini e o volume conta com texto de quarta capa escrito por Eduardo Viveiros de Castro.

Strathern, autora de O gênero da dádiva (UNICAMP, 2006) aborda temas diversos como as categorias etnográficas de doméstico e selvagem, gênero, parentesco, economias da dádiva versus economia da mercadoria, noção de pessoa, evento histórico, cultura material, técnicas de fertilização, direitos de propriedade intelectual, além de empreender uma reflexão sobre a própria antropologia. 

Com uma linguagem radical e uma abordagem teórica de ponta apoiada em seu campo na Melanésia, Strathern adota a descrição – em detrimento da explicação e da representação – como forma de compreender outro pensamento e outra vida possível.

Titular da cátedra William Wyse de Antropologia Social da Universidade de Cambridge, mistress de Girton College e ex-presidente da European Association of Social Anthropologists, Marilyn Strathern exerce uma influência decisiva sobre os rumos da antropologia contemporânea, conhecida por aclamados e polêmicos aportes à etnologia melanésia, estudos das relações de gênero, teoria da troca e do parentesco. Seu estilo analítico é denso e original, apoiado pela crítica catalisada pelo contradiscurso feminista.

Em entrevista, concedida a Eduardo Viveiros de Castro e Carlos Fausto, em 1998, por ocasião da visita da antropóloga ao Museu Nacional, disse, sobre suas “decisões teóricas”: “Como você bem sabe, tais decisões nunca são decisões teóricas… Elas são o resultado de uma série de fatores, e eu provavelmente só conseguiria falar de um ou dois deles. Mas suponho que isso já quer dizer que eu concordo com sua caracterização. Deve-se apenas ter em mente que a antropologia, na Grã-Bretanha em todo caso, mudou, e não tenho tanta certeza de estar muito distanciada dos colegas que trabalham atualmente em Cambridge. Não vou contar a história toda; deixem-me apenas evocar uma ou duas coisas que me passaram pela cabeça enquanto você falava. A primeira é que entre 1960 e 1963, quando eu era aluna de graduação em Cambridge, estávamos no momento culminante do debate contrapontístico entre Edmund Leach e Meyer Fortes. Tínhamos duas salas de aula, uma quase ao lado da outra, chamadas de Sala Norte e de Sala Sul – e era quase como se você pudesse ir a uma e ouvir Edmund, passar para a outra e ouvir Meyer. Não era exatamente assim, pois a grade horária não era desse jeito, mas tinha-se uma sensação muita viva do debate. Aquela era a época em que Meyer estava consolidando o seu Kinship and the Social Order; ele estava preparando suas Morgan Lectures, e estava realmente implementando seu próprio paradigma. Ao mesmo tempo, Edmund tinha acabado de escrever Pul Eliya; ele estava, além disso, regurgitando Lévi-Strauss, de quem nos apresentou algumas das idéias, via seus próprios interesses na noção de tabu e tudo o mais que vocês sabem. Edmund era ainda o responsável por um fascinante seminário (para o terceiro ano da graduação) sobre Malinowski; tivemos um trimestre inteiro dedicado aos trabalhos de Malinowski, que foi muito estimulante”. Sobre os debates a respeito da antropologia feminista, disse: “Foi isso que gerou aquele tipo de triangulação que se vê em The Gender of the Gift. Como digo logo no começo do livro, há ali a teoria antropológica, há a informação etnográfica, e há, enfim, a produção feminista. Não sei bem como formular isso. Mas todos nós temos dúvidas quanto à utilidade de nosso próprio trabalho, quanto ao público a que ele se dirige; todos nos perguntamos se o que estamos fazendo vale alguma coisa. Na verdade, acho que a depressão e a dúvida que acompanham qualquer trabalho são realmente criativas, pois elas nos fazem escutar outras pessoas. Se você é demasiado confiante, se tudo o que você consegue ver é você mesma, você termina sendo uma barreira, fechada à comunicação. Por isso, ter estado aberta para esse outro domínio significou que eu estava sempre jogando as certezas antropológicas contra as incertezas feministas ou vice-versa. Isto se tornou realmente importante para mim, porque os dois pólos da teoria antropológica e da etnografia, estes se consomem mutuamente, eles se entre-canibalizam. Por isso, um terceiro pólo…”. Segundo Viveiros de Castro, Marilyn Strathern dialoga diretamente com temas marxistas e feministas, enquanto o estruturalismo parece ser uma fonte silenciosa. Na mesma entrevista, a antropóloga  arrematou uma de suas respostas com uma pergunta aos entrevistadores: “O que estou dizendo é que a diferença que existe está no fato de que os modos pelos quais os melanésios descrevem, dão conta da natureza humana, são radicalmente diferentes dos nossos – e o ponto é que só temos acesso a descrições e explicações, só podemos trabalhar com isso. Não há meio de eludir essa diferença. Então, não se pode dizer: muito bem, agora entendi, é só uma questão de descrições diferentes, então passemos aos pontos em comum entre nós e eles… pois a partir do momento em que entramos em comunicação, nós o fazemos através dessas autodescrições. É essencial dar-se conta disso. Posso fazer agora uma pergunta a vocês? Onde, a seu ver, estaria uma base futura para a antropologia crítica?”. Ao que Viveiros de Castro respondeu: “Tradicionalmente, a antropologia usou os selvagens para dar lições de moral aos ocidentais: para nos fazer sentir, ora orgulhosos, ora culpados de não sermos (mais) selvagens. Mas era só isso. Até pouco tempo atrás, os antropólogos que trabalhavam com as chamadas sociedades primitivas e os especialistas nas chamadas sociedades complexas não tinham lá muita coisa a dizer uns aos outros. É esta barreira que começou a ruir, e que precisa ruir. Penso que o futuro está na idéia de Latour de uma antropologia simétrica, e que é algo que você também está fazendo, em seus trabalhos sobre o parentesco euro-americano”.

A CosacNaify disponibiliza um trecho de O efeito etnográfico para leitura.

 

 

O EFEITO ETNOGRÁFICO E OUTROS ENSAIOS

Autor: Marilyn Strathern
Editora: CosacNaify
Preço: R$ 84,00 (576 págs.)

 

 

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