matraca

Com o mar por meio

26 outubro, 2017 | Por Isabela Gaglianone
Jorge Amado e José Saramago, na Bahia

Jorge Amado e José Saramago, na Bahia [Acervo Casa de Jorge Amado]

Com o mar por meio. Uma amizade em cartas, correspondência entre Jorge Amado e José Saramago, é um testemunho sincero da cumplicidade e da admiração que permeiam uma amizade. Os escritores conheceram-se em 1990, em Roma, quando foram jurados do prêmio União Latina; Jorge Amado, então, tinha 78 anos e, Saramago, 68. O vínculo foi tardio, mas no entanto forte e carinhoso, estendido às companheiras de ambos, Zélia e Pilar. O volume com a preciosa correspondência, trocada entre os anos de 1992 e 1998, foi lançado este ano pela Companhia das Letras, com projeto gráfico especial, conta com facsímiles das cartas, bilhetes, cartões e faxes, além de fotos do acervo pessoal dos autores.

José e Jorge travaram uma rica e singular troca, tanto pessoal, quanto em termos de discussão de ideias, sobretudo sobre a cena literária na conjuntura contemporânea. Com humor, discutiam sobre prêmios e associações de escritores, com especulações divertidas sobre quem seria, por exemplo, o próximo a ser contemplado com o Prêmio o Camões ou o Nobel – esta “invenção diabólica”, como escreveu em carta José Saramago. Jorge Amado, por exemplo, brinca,  em uma carta de 1994: “Para dizer toda a verdade, devo convir que os 950 mil dólares do Nobel cairiam muito bem no bolso de um romancista português ou brasileiro, pobre de marré, marré”. Ao que o amigo, que foi laureado com o prêmio anos depois, em 1998, responde: “Não podemos viver como se a salvação de nossas duas pátrias dependesse de termos ou não prêmio Nobel. Mas como cairia bem esse dinheiro!…”.

O encontro tardio poderia ter ocorrido antes, não fosse a timidez de Saramago. Pilar del Río, companheira de vida do escritor português e hoje presidente da Fundação José Saramago, conta, conforme o artigo “Nobel é ‘invenção diabólica’, escreve Saramago para Jorge Amado em carta”, de Fernanda Mena, publicado no jornal Folha de São Paulo: “Saramago já havia encontrado com Jorge Amado em várias ocasiões. Como ele estava sempre rodeado de gente, Saramago tinha receio de incomodá-lo, além de suspeitar que talvez o baiano não o tivesse lido […] Quando finalmente conversaram, a empatia foi tão grande que perceberam que já se conheciam”. No mesmo artigo, Pilar del Río conta, como diz Mena, que “a relação com o mar por meio era tão forte” que, sem planejar, evocou Jorge Amado na cerimônia de falecimento de Saramago: “Estávamos no crematório e me dei conta de que não haveria nenhuma cerimônia, porque somos ateus. Entendi que teria de falar algo. E resolvi contar uma história de Jorge Amado. Ele tinha medo de avião e, durante um voo turbulento, quando achou que morreria ali, pediu a Zélia [Gattai, sua mulher] que lhe passasse o jornal com urgência, dizendo: ‘Não posso morrer sem saber o que se passa no mundo’ […] E completei: ‘Hoje vou dizer a José Saramago o que os jornais dizem que se passou no mundo: morreu um homem bom’. Desta maneira, no último momento, quando ele virava cinzas, uni a memória de Jorge e José”.

Ricardo Viel, um dos organizadores do livro. em artigo publicado no Correio IMS, na bela resenha “O manjar supremo da amizade”, pontua: “O afeto entre eles e a vontade de encontrarem-se dita o tom do intercâmbio epistolar.  ‘Desta ilha de Lanzarote, com o mar por meio, mas com braços tão longos que alcançam a Bahia, […] enviamos muito saudar e votos valentes contra as coisas negativas da vida’, assinam José e Pilar no Natal de 1994. Uns meses depois o casal luso-espanhol informa que a planejada visita ao Brasil fora cancelada. ‘Pena que vossa viagem para São Paulo tenha sido suspensa. Já estávamos enfeitando de alegria a casa do Rio Vermelho para vos receber’, contestam os baianos. Em fevereiro de 1996, finalmente, o par europeu visita a famosa Casa do Rio Vermelho, com direito a participarem das festividades pelo Dia de Iemanjá (2 de fevereiro) e desfrutarem da comida de Dona Canô, mãe de Caetano Veloso”. Ao regressar à Espanha, o casal escreve desejarem “que haja mais ocasiões para estarmos juntos e partilhar do manjar supremo que é a amizade”, algo que a saúde de Jorge Amado não permitiu que acontecesse. Viel dá voz aos dois escritores, em seu artigo, para mostrar o tom da generosa amizade: “‘Como conseguimos viver tanto tempo sem fax’, pergunta Jorge Amado numa missiva enviada da Bahia, num 2 de fevereiro de 1994 ao ‘casal lindo’ José Saramago e Pilar del Rio. A mensagem carrega um pedido de desculpas pelo corte na comunicação, culpa do aparelho de fax da casa de Salvador, que ‘pegou fogo e botou fumação’ impedindo que Jorge e Zélia Gattai – quem cunhou o elogio aos amigos – mandassem notícias. A resposta, enviada da ilha espanhola de Lanzarote, nas Canárias, veio logo no dia seguinte, também por meio de fax: ‘Zélia devia estar aqui para ver o sorriso de Pilar quando leu o  ‘casal lindo’ – da expressão da minha cara, melhor é não falar. Zélia disse muitas coisas bonitas na vida (além das que escreve), mas poucas terão feito tão felizes as pessoas a quem se dirigiam. Por isso e por tudo, beijo-lhe, à moda antiga, as mãos’”. Ainda no mesmo artigo, o organizador conta sobre o recebimento de Jorge Amado quanto à notícia do Prêmio Nobel concedido a Saramago: “Praticamente cego, Jorge Amado já não escrevia nem lia, e a tristeza por essa condição o deixava sem vontade de falar com ninguém. Em 1998 saiu do mutismo por um dia. Ao saber que José Saramago tinha finalmente recebido o esperado galardão, ditou à filha Paloma Amado (uma das organizadoras do livro agora publicado) a derradeira carta ao amigo: ‘Viva Saramago!!!! Zélia, Paloma e eu estamos aqui brindando a vossa-nossa-felicidade, com este prêmio tão merecido. Ditei a nota acima [distribuída aos meios de comunicação, onde diz que o prêmio fazia justiça à Língua Portuguesa], pois não estou podendo escrever nem dar entrevistas, mas não poderia deixar de dizer a todos o quanto estamos felizes por esta vitória, pessoal e da literatura em língua portuguesa. Todo o afeto do Jorge Amado’”.

Ubiratan Brasil, em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, conta que o projeto da reunião da correspondência trocada entre os dois escritores “nasceu depois de uma série de boas coincidências. Em Salvador, os pesquisadores da Fundação Casa de Jorge Amado, onde repousa o acervo do autor baiano, estavam digitalizando justamente as cartas enviadas por Saramago com a intenção de publicar um livro quando Pilar del Río, mulher do escritor português, propôs de as duas famílias montarem uma casa na Flip, onde se discutisse essa troca de cartas”. Segundo Ubiratan Brasil, Pilar del Río acredita que “a divulgação dessas cartas e bilhetes promove uma aproximação dos leitores com a obra dos dois autores. ‘Nos romances que escreveram, estão os seres humanos que eles foram. São obras acabadas, mas essa correspondência mostra o dia a dia, formas de conexão, intercâmbios de opiniões, que depois se ampliariam nos encontros que eles tiveram em Paris, Roma, Madri, Lisboa, Brasília ou Bahia. Não são cartas escritas com vontade de publicação, são manifestações que desprendem a espontaneidade de duas grandes pessoas, que nem um mar pelo meio, consegue domesticar’”.

A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para visualização.

 

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Trechos

 

8 de maio — José Saramago, Cadernos de Lanzarote

Jorge Amado escrevendo do Brasil: “Aqui o sufoco é grande, problemas imensos, atraso político inacreditável, a vida do povo dá pena, um horror”. Diz-me que até ao fim do mês estará na Bahia, que passará por Lisboa antes de seguir para Paris. Esta vida de Jorge e Zélia parece do mais fácil e ameno, uma temporada aqui, uma temporada ali, viagens pelo meio, em toda a parte amigos à espera, prémios, aplausos, admiradores — que mais podem esses dois desejar? Desejam um Brasil feliz e não o têm. Trabalharam, esperaram, confiaram durante toda a vida, mas o tempo deixou-os para trás, e, à medida que vai ele passando, é como se a própria pátria, aos poucos, se fosse perdendo, também ela, numa irrecuperável distância. Em Paris, em Roma, em Madrid, em Londres, no fim do mundo, Jorge Amado recordará o Brasil e, no seu coração, em vez daquela lenitiva mágoa dos ingénuos, que é a saudade, sentirá a dor terrível de perguntar-se: “Que posso eu fazer pela minha terra?” — e encontrar como resposta: “Nada”. Porque a pátria, Brasil, Portugal, qualquer, é só de alguns, nunca de todos, e os povos servem os donos dela crendo que a servem a ela. No longo e sempre acrescentado rol das alienações, esta é, provavelmente, a maior.

 

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Tias (Lanzarote), 18 de maio de 1993

 

Querido Jorge, querida Zélia,

a inquietação é muita, mas a esperança é maior.

Uma torre como essa não cai assim. Não tardará a

recuperação e o regresso da saúde, e se certamente

já não poderemos encontrar-mos em Lisboa,

no princípio de junho, pronto virão outras ocasiões.

Se o espírito serve para alguma coisa nestes casos,

asseguramos-te, querido Jorge, que o nosso está

a usar de toda a força para te ajudar, em união com

teus infinitos amigos e leitores.

Para ambos, Zélia, Jorge, todo o nosso carinho.

Seguiremos daqui o evoluir do acidente,

preocupados, mas confiantes.

Pilar, José

 

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“Esta mensagem vai na letra gorda para que não se perca nos azares da transmissão nem um só sinal da nossa amizade, deste carinho tão bonito que veio enriquecer de um sentimento fraterno uma relação nascida tarde, mas que, em lealdade e generosidade, pede meças à melhor que por aí se encontre.” – José Saramago [Jorge Amado também a assinaria]

 

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matraca_II

 

 

COM O MAR POR MEIO. UMA AMIZADE EM CARTAS

Autores: Jorge Amado, José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 44,93 (120 págs.)

 

 

 

 

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