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Didi-Huberman

25 outubro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“A casca não é menos verdadeira que o tronco. É inclusive pela casca que a árvore, se me atrevo a dizer, se exprime”.

Fotografia de Gilles Caron

O filósofo francês Georges Didi-Huberman nasceu em Saint-Étienne, na França, em 1953. É autor de mais de trinta livros, professor da École de Hautes Études em Sciences Sociales, em Paris, e um dos mais importantes pensadores sobre a arte hoje. Didi-Huberman esteve na semana passada no Brasil para a abertura da exposição “Levantes”, da qual é curador e que fica em cartaz em São Paulo, no Sesc Pinheiros, até 28 de janeiro.

Por ocasião da presença do filósofo, dois de seus livros foram aqui lançados: o belo ensaio Cascas, publicado pela Editora 34 com tradução de André Telles, e Levantes, reflexão de Didi-Huberman à guisa de catálogo da exposição, reunido a ensaios de outros filósofos renomados, como Judith Butler, Antonio Negri e Jacques Rancière, volume organizado pelo próprio Didi-Huberman e publicado pelas Edições Sesc. 

Cascas é, por seu profundo lirismo, uma obra singular no percurso de Georges Didi-Huberman. Trata-se do relato do autor a respeito de uma visita por ele feita ao campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau – atualmente, um museu – de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, em junho de 2011; viagem da qual retorna com algumas cascas de bétulas e um punhado de fotografias, que são seu ponto de partida para uma arguta interrogação a respeito da memória do Holocausto e do potencial subversivo das imagens. O ensaio amalgama uma reflexão a um só tempo pessoal e coletiva, lírica e intelectual. O volume publicado pela 34 conta ainda com a entrevista inédita “Alguns pedaços de película, alguns gestos políticos”, concedida pelo autor a Ilana Feldman, doutora em cinema pela ECA – USP.

Segundo a interpretação de Ilana Feldman, no artigo “Imagens apesar de tudo: problemas e polêmicas em torno da representação, de Shoah a O filho de Saul”, publicado na revista Ars: “Suas fotos em preto e branco, publicadas em papel poroso e amarelado, são a expressão justa daquilo que sobreviveu, das cascas do bosque às imagens clandestinas capturadas pelos membros do Sonderkommando. Se o projeto nazista era não deixar rastros do extermínio em massa para torná-lo ‘inimaginável’, argumenta o filósofo, então as fotos dos prisioneiros ‘dirigem-se ao inimaginável, refutando-o’. Por isso, Auschwitz não é inimaginável. Auschwitz é senão imaginável. E isso significa não uma negação da negação, mas um apelo, um chamado à tarefa – tão insuportável quanto necessária – de nos colocarmos a imaginar”.

Didi-Huberman expõe a paradoxal situação da transformação do campo de extermínio nazista em um Museu de Estado, ou como ele coloca, da transformação de um “lugar de barbárie”, em um “lugar de cultura”. “O que dizer quando Auschwitz deve ser esquecido em seu próprio lugar, para construir-se como um lugar fictício destinado a lembrar Auschwitz?” – questiona-se o filósofo. Ao caminhar pelo museu a céu aberto, buscando mentalmente articular, como um arqueólogo, “o que vemos no presente, o que sobreviveu, com o que sabemos ter desaparecido”, Didi-Huberman fotografa um passarinho, que pousara entre dois arames farpados: “Eu caminhava rente aos arames farpados quando um passarinho veio pousar perto de mim. Bem ao lado, mas: do outro lado. Tirei uma foto, sem pensar muito, provavelmente tocado pela liberdade daquele animal que driblava as cercas. A lembrança das borboletas desenhadas em 1942, no campo de Theresienstadt, por Eva Bulová, uma criança de doze anos que viria a morrer aqui, em Auschwitz, no início de outubro de 1944, possivelmente me veio à cabeça. Mas hoje, observando essa imagem, percebo uma coisa bem diferente: em segundo plano, corre o arame farpado eletrificado do campo, com o metal já escurecido pela ferrugem e disposto segundo uma ‘trama’ bastante peculiar que não vemos no arame farpado do primeiro plano. A cor deste último – cinza-claro – sugere que foi instalado recentemente.

“Compreender isso já me dá um aperto no coração. Significa que Auschwitz como ‘lugar de barbárie’ (o campo) instalou os arames farpados do fundo nos anos 1940, ao passo que os do primeiro plano foram dispostos por Auschwitz como ‘lugar de cultura’ (o museu) bem mais recentemente. Por que razão? Seria para orientar o fluxo dos visitantes, empregando o arame farpado como ‘cor local’? Ou para ‘restaurar’ uma cerca degradada pelo tempo? Não sei. Mas sinto claramente que o passarinho pousou entre duas temporalidades terrivelmente disjuntas, duas gestões bem diferentes da mesma parcela de espaço e de história. Sem saber, o passarinho pousou entre a barbárie e a cultura”.

Para Vera Casa Nova, professora da UFMG, no artigo “Cascas sobre o papel: memória do dilaceramento”, Georges Didi-Huberman traz uma experiência dos rastros, “através do movimento da leitura desses rastros, constituindo, assim, sentidos a partir de fatos banais. Palavra que vem por meio das imagens. […] Cicatrizes de acontecimentos. Os debaixos das cascas e a vertigem da memória. Do que se esconde e do que se manifesta na superfície. […] Somente via fotografia, esse suporte, esse subjétil revelador/ocultador tanto quanto o papel sobre o qual repousam as cascas das árvores, o parergon, a moldura branca que envolve a casca. Substância sobre substância para mostrar os debaixos da memória, esse labirinto repassado pelos discursos. De origem vegetal como o papel, as cascas talvez escondam a história interdita: ‘Coloquei três pedacinhos de casca de árvore sobre uma folha de papel. Olhei. Olhei, julgando que olhar talvez me ajudasse a ler algo jamais escrito. Olhei as três lascas como as três letras de uma escrita prévia a qualquer alfabeto’. Três lascas arrancadas de uma árvore na Polônia. ‘Três lascas de tempo’ – resíduos, presentes a serem enviados, como uma carta, ao futuro”. Segundo a professora, “as cascas da árvore são como ‘lascas de pele’, ‘carne germinando’. Corpo e memória”.

As imagens, para Didi-Huberman, são portadoras de memória, resguardam em si um tempo: “São gestos, atos de fala”. O filósofo deixa explícita sua escolha por um “olhar arqueológico” sobre as imagens e o mundo; método inspirado no filósofo Walter Benjamin e no historiador da arte Aby Warburg. Analisar as imagens, para ele, é como andar sobre ruínas da história do mundo, ou “criar a história com os próprios detritos da história”, como disse Benjamin.

É nesse sentido que Levantes propõe noções de montagem e anacronismo na observação das imagens, de maneira atenta à dimensão política que toda imagem tem. Segundo Didi-Huberman, “de Victor Hugo a Eisenstein e além, os levantes serão frequentemente comparados a turbilhões e a grandes ondas que arrebentam, por ser quando os elementos (da história) se desencadeiam”. A exposição e os textos tecem uma aguda reflexão artística, filosófica e social, tomando, como fio condutor, os levantes, as insurreições através das quais grupos, com palavras, gestos e ações expressivos, fazem reivindicações sociais ou políticas, ou desafiam formas de submissão a um poder absoluto. Em entrevista concedida ao jornal argentino Página/12, em junho deste ano, e publicada pelo Instituto Unisinos com tradução de André Langer, Didi-Huberman diz que a concepção não-linear de história funciona, através das imagens da exposição, “por meio dos gestos. O fato de que quando se está alienado e se protesta contra essa alienação, o protesto toma uma forma corporal: é o braço que se levanta, o corpo que se movimenta, a boca que se abre, entre palavras e cantos, tudo isso é corporal. O corpo humano é a coisa mais antiga que possuímos, o corpo humano é mais antigo que um fóssil, que uma obra de arte grega; o corpo humano é muito antigo, é nossa antiguidade. Tudo isso é anacrônico. Quando um jovem do Maio de 68 se movimenta e pode se movimentar como Dionísio, é anacrônico”.

Dentre os ensaios que compõem o catálogo da exposição, a filósofa Judith Butler reflete sobre o caráter primeiro do fenômeno dos levantes: quem se levanta, por que o faz e quando a ação de levantar-se contra algo ocorre. Segundo Butler, “quem faz um levante o faz em conjunto e ao constatar um sofrimento inaceitável” e, portanto, “para haver um levante, é preciso que laços se estabeleçam entre aqueles que sofrem e resistem no cotidiano, mesmo que eles definitivamente não tenham o poder de derrubar o regime político legal ou econômico que os sujeita”.  O italiano Antonio Negri, no artigo “O acontecimento ‘levante’”, identifica as características dos momentos que antecedem os levantes, diferenciando e relacionando o que denomina intervalo/pausa e interrupção/ruptura: “Todo coletivo se constitui de indivíduos e do levante de uma quantidade de singularidades, mas o coletivo ‘verdadeiro’ está na passagem que transforma o peso e a ‘insustentabilidade’ da vida na decisão do levantar, no esforço e na alegria desse ato. O levante é sempre uma aventura coletiva, uma palavra que não existe individualizada”. Através do desenvolvimento de uma analogia com o levantamento de peso, o texto de Negri cria uma peça de poesia filosófica que perpassa o peso envolvido na passagem da inércia indiferente ao impulso coletivo de levantar-se. A filósofa e escritora francesa Marie-José Mondzain analisa a suposta apatia generalizada que nos atinge hoje enquanto sociedade, à luz da resistência presente, por exemplo, na criatividade, na arte e na educação. O francês Jacques Rancière traz à tona a discussão entre ativo e passivo, convergindo as noções de movimento e repouso a partir de referências como Winckelmann, Platão, Eisenstein e o próprio Didi-Huberman. Nicole Brenez, historiadora e curadora francesa especializada em cinema, investiga a eficácia do cinema engajado no decorrer da história.

O livro conta ainda com pequenos textos introdutórios elaborados por Didi-Huberman a fim de introduzir ao leitor o portfólio de imagens das obras que compõem a exposição. As imagens são organizadas em cinco grandes temas, característicos das nuances que constituem os levantes: elementos, gestos, palavras, conflitos e desejos. Apoiado nos textos, esse amplo aparato imagético ganha potencialidade filosófica. O volume é encerrado pelo precioso artigo “Através dos desejos (fragmentos sobre o que nos subleva)”, de Didi-Huberman.

“Então tudo se inflama. Tem quem veja nisso apenas o puro caos. No entanto, outros veem surgir formas de um desejo de ser livre, formas de vida em comum […]. Dizer ‘manifestamos’ é constatar – mesmo com espanto, mesmo sem compreender – que algo surgiu, algo decisivo”.

Em entrevista concedida a Vera Casa Nova e publicada na revista Ars, o filósofo comenta o nome da exposição, “Levantes”: “Esse termo é de grande riqueza. Quando trabalhei sobre a Ninfa no Renascimento, as dobras (draperies), os vestidos se rebelavam por todo lado. Era o índice do desejo. Quando mergulhei em Trabalhadores do mar, de Vitor Hugo, foi a tempestade que se sublevou. É índice da potência e do conflito. Espontaneamente, essa palavra nos ajuda a fazer uma abordagem poética do político, o que não quer dizer uma abordagem estetizante. Poética vem do verbo fazer. Não estamos nas nuvens, mas no real das práticas muito modestas e, eventualmente, muito solitárias. Quem me guiou foi o poeta Henri Michaux. Só em seu quarto, ele diz melhor que ninguém o que é uma força de revolta, pois quando se revolta, ele não é um ‘eu’, mas uma multidão inteira”. As revoltas, o filósofo pondera, não são soluções mágicas, mas há uma questão de esperança na própria expressão de que há levantes, pois que o desejo tem necessidade de certa memória; ele diz: “O que eu queria era oferecer aos jovens uma espécie de tesouro de imagens, o que Walter Benjamin chamava de ‘a tradição dos oprimidos’ e que é preciso constantemente recolocar hoje. O verdadeiro sujeito da história é o ‘sem nome’. Um belo poema de Brecht questionava: ‘Quem construiu Tebas com sete portas, o rei ou os operários? E como esses últimos moravam, alimentavam-se, para onde eles foram?’”. Para Didi-Huberman, assim como com Atlas e Prometeu, titãs irmãos que se revoltaram contra a autoridade dos deuses do Olimpo, fracassaram e foram punidos, ainda frente aos fracassos há sempre alguma coisa das revoltas que sobrevive e se transmite: “Em meu livro Sobrevivência dos vagalumes, tratei do pessimismo como tema central, no qual nos encontramos e que não deve ser levado para um tom apocalíptico, e que serve tanto à esquerda (por péssimas razões) quanto à direita (por especular sobre o desespero). Contra isso, há uma frase admirável de Walter Benjamin: ‘é preciso organizar o pessimismo, e as imagens são um espaço para tal organização’. Evidentemente, nada se resolve pelas imagens. Mas o assunto desta exposição […] são as possibilidades de uma imaginação política. A exposição mostra inúmeras variações, com a ideia que, até na maior dificuldade, a maior opressão, até no fracasso de uma revolta, o desejo, como nos mostra Freud em seu livro sobre o sonho, é indestrutível”.

 

Chieh-Jen Chen, The Route (2006), fotograma que faz parte da exposição “Levantes”

 

Presente para a abertura da exposição no Brasil, o filósofo proferiu a conferência “Levantes: Imagens e sons como forma de luta”, cuja gravação o Sesc disponibilizou.

“Há uma ligação fundamental”, ele diz na abertura da conferência, “entre o sonho e a existência”. É insuficiente, portanto, “conservar os sonhos somente para a noite e, no dia seguinte, esquecê-los. O que seria necessário seria despertar nossos sonhos, e não nos despertarmos de nossos sonhos”. É a razão pela qual nos levantamos.

 

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Trecho de Cascas

 

Coloquei três pequenos pedaços de cascas sobre uma folha de papel. Olhei. Olhei pensando que olhar talvez me ajudaria a ler algo que jamais foi escrito. Olhei as três pequenas lascas de casca como as três letras de uma escritura antes de todo alfabeto. Ou, talvez, como o começo de uma carta escrita, mas a quem? Dou-me conta de que as dispus espontaneamente sobre o papel branco no sentido mesmo em que vai minha língua escrita: cada “letra” começa à esquerda, aí onde enfiei minhas unhas no tronco da árvore para dela retirar a casca. Em seguida, ela se desdobra à direita, como um fluxo infeliz, um caminho rompido: esse desdobramento estriado, esse tecido da casca que se rasga muito cedo.

São estas as três lascas extraídas de uma árvore, há algumas semanas, na Polônia. Três lascas de tempo. Meu próprio tempo nestas lascas: um pedaço de memória, essa coisa não escrita que tento ler; um pedaço de presente, aí, sob meus olhos, sobre uma página branca; um pedaço de desejo, a carta por escrever, mas a quem?

Três lascas cuja superfície é cinza, quase branca. Já datada. Característica da bétula. Ela se descama em espirais, como os restos de um livro queimado. Sobre a outra face, ela é ainda – no momento em que escrevo – rosa como carne. Ela aderia tão bem ao tronco. Ela resistiu à pegada de minhas unhas. As árvores também valorizam sua pele. Imagino que, com a passagem do tempo, estas três lascas de casca ficaram cinza, quase brancas, dos dois lados. Eu as conservarei, as armazenarei, as esquecerei? E se sim, em que envelope de minha correspondência? Em que prateleira de minha biblioteca? O que pensará meu filho assim que ele se deparar com estes resíduos quando eu já estiver morto?

[…]

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CASCAS

Autor: Georges Didi-Huberman
Editora: 34
Preço: R$ 25,90 (112 págs.)

 

 

 

 

 

 

LEVANTES

Autor: Georges Didi-Huberman
Editora: Edições Sesc
Preço: a definir (420 págs.)

[disponível a partir de 02/11]

 

 

 

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