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Complexas relações: democracia e totalitarismo

9 setembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“O ódio à democracia é tão velho quanto a democracia: a própria palavra é a expressão de um ódio”.

A Boitempo acaba de lançar O ódio à democracia, do filósofo francês Jacques Rancière, ensaio sucinto e provocativo, que com irreverência e erudição, evoca momentos da história da filosofia política para analisar alguns dos principais impasses nos quais se encontra hoje a democracia e a esquerda. Rancière aponta uma mutação ideológica, a democracia não mais opõe-se, virtuosa, ao horror totalitário, ela é, atualmente, exportada pelos governos pela força das armas, ao passo que reina silencioso um “individualismo democrático”, que sob  as injúrias do “igualitarismo”, esvazia os valores coletivos e forja um novo totalitarismo.

O filósofo questiona as políticas liberais que argumentam defender a democracia através de poderio militar e, assim, ele mostra que há uma deturpação do ideal democrático e que o atual sistema, na verdade, é guiado por uma classe dominante que não o deixa existir plenamente. Sua análise, atemporal, analisa as formas pelas quais justificativas a favor da democracia são usadas contra o próprio sistema e aponta as contrariedades dos principais países e forças capitalistas. Por exemplo, nações autoproclamadas democráticas querem supostamente levar o sistema para outras regiões e, para isso, invadem e obrigam esses lugares a seguir suas regras. Dessa forma, esses países “espalham a democracia” de forma violenta, enquanto vendem uma imagem democrática dentro de seu próprio território, ainda que, muitas vezes, nele mesmo reprimam lutas sociais. O “individualismo democrático”, relaciona-se à racionalização de uma “infinitude de desejos individuais”, trata-se de um sintoma do excesso do que hoje conhecemos por democracia.

Para analisar essa transformação ideológica, o filósofo problematiza e analisa as complexas relações entre democracia, política, república e representação. Seu percurso argumentativo depara-se, por trás das tépidas paixões políticas de outrora, os impetuosos ódios de hoje, a força subversiva sempre da própria ideia democrática.

Como analisou Slavoj Žižek, “nos atuais tempos de desorientação da esquerda, o texto de Rancière oferece uma das raras conceitualizações consistentes de como continuar a resistir”.

O filósofo brasileiro Renato Janine Ribeiro, no texto de orelha ao livro, analisa: “Nos últimos anos, o Brasil se tornou um exemplo de inclusão social, com dezenas de milhões de pessoas saindo da pobreza e da miséria para terem uma vida melhor. Em que pese a inclusão ter ocorrido sobretudo pelo consumo – mais que pela educação –, ela mudou o país. Hoje, ninguém disputa o Poder Executivo atacando os programas de inclusão social. Eles se tornaram um consenso junto à grande maioria dos eleitores. Entretanto, um número expressivo de membros da classe média os desqualifica, alegando diversos pretextos. Para eles, o Brasil era bom quando pertencia a poucos. Assim, quando os polloi – a multidão – ocupam os espaços antes reservados às pessoas de “boa aparência”, uma gritaria se alastra em sinal de protesto. O que é isso, senão o enorme mal-estar dos privilegiados quando se expande a democracia?”. Segundo Ribeiro, a expansão da democracia incomoda, donde “um ódio que domina nossa política, tal como não se via desde as vésperas do golpe de 1964, condenando medidas que favorecem os mais pobres como populistas e demagógicas”. A democracia não é um Estado acabado e, segundo Ribeiro, nem mesmo “um estado acabado das coisas; que ela vive constante e conflitiva expansão; que não se reduz ao desenho das instituições, ou à governabilidade, ou ao jogo dos partidos, mas é algo que vem de baixo, desdenhado desde os gregos como o empenho insolente dos pobres em invadir o espaço que era de seus melhores, de seus superiores. Porque a ideia de separação social continua presente e forte”.

Analisando especificamente a situação brasileira e a crítica à democracia regida pelos movimentos sociais, que a comparam à ditadura militar, apontando um totalitarismo que se veste democrático, Edson Teles, professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em artigo escrito ao blog da Boitempo, diz: “[…] por que os movimentos sociais insistem em relacionar a democracia com a ditadura? Por que não conseguem entender que esforços estão sendo feitos no sentido de efetivar direitos e de diminuir as diferenças sociais? Ou ainda que, na medida do possível, os governos procuram criar as condições necessárias para se evitar as graves violações de direitos humanos assistidas cotidianamente nas periferias, no campo e nas ruas em disputa? […] A democracia nasce sob a suspensão de direitos: os crimes de graves violações de direitos durante a democracia não foram apurados (não o são até hoje) e o primeiro governo civil foi indicado por um colégio eleitoral de cerca de 500 parlamentares integrantes de um legislativo sitiado pelas leis autoritárias do regime ditatorial. A nova constituição mantém as polícias militares, a concepção de que segurança pública é contra um inimigo interno – este variando entre ‘bandidos’, militantes do MST, craqueiros, jovens negros e pobres, vândalos, terroristas, a depender do contexto – e, de modo absurdo, a presença das Forças Armadas na vida cotidiana do país, seja em sua influência política, seja nos morros cariocas ou em outros espaços civis”. Segundo Teles, contraditoriamente, “nesta democracia se investe em efetivas políticas de inclusão, como as cotas, concomitante à autorização da prática de extermínio dos jovens negros e pobres das periferias por parte do braço armado do mesmo Estado que produz as políticas sociais”.

Em entrevista ao jornal O Globo, Rancière disse: “Quis analisar e criticar uma tendência muito forte na França, cuja particularidade é tomar a democracia não como forma de Estado, mas como forma de vida em sociedade. Este ódio denuncia uma pretensa invasão da igualdade e do igualitarismo em todos os domínios da vida e a relação com uma figura central: o indivíduo da sociedade de consumo de massa, que o ódio à democracia acusa de ser destruidor de todos os laços sociais tradicionais. O que esse ódio expressa é o ódio à igualdade, e está acompanhado do recuo efetivo da democracia e da igualdade nesses Estados. A democracia, no estrito senso desse termo, é o poder do povo, o poder de qualquer um, dos que não estão destinados ao exercício do poder por nascimento, riqueza, conhecimento científico ou qualquer qualidade especial”. O filósofo francês apontou ainda: “Insisti no fato de que o “poder do povo” é impossível de ser contido em uma fórmula constitucional. Há uma contradição entre esse poder e a forma estatal em geral, que é sempre uma forma de privatização do poder de todos em benefício de uma minoria. Por um lado, isso quer dizer que o poder do povo deve ter seus organismos e suas formas de ação autônomas em relação às formas estatais. De outro lado, isso quer dizer que aquilo chamamos de democracia representativa é um modelo misto, submetido a duas formas contraditórias. […] A “democracia” que nossas oligarquias defendem é, de fato, o confisco da democracia”.

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“A representação nunca foi um sistema inventado para amenizar o impacto do crescimento das populações. Não é uma forma de adaptação da democracia aos tempos modernos e aos vastos espaços. É, de pleno direito, uma forma oligárquica, uma representação das minorias que têm título para se ocupar dos negócios comuns”.

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O ÓDIO À DEMOCRACIA

Autor: Jacques Rancière
Editora: Boitempo
Preço: R$ 29,00 (128 págs.)

 

 

 

 

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