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Consciência da terra e do oceano, tal é a ilha deserta

30 maio, 2014 | Por Isabela Gaglianone

O livro A ilha deserta é composto por uma sequência heterogênea de textos de Gilles Deleuze. São vários textos esparsos, publicados entre 1953 e 1974; pequenas pérolas, entre resenhas, entrevistas, textos circunstanciais, depoimentos e conferências, há artigos luminosos sobre Bergson, Kant, Nietzsche, Hume, uma comovente homenagem a Sartre – “Ele foi meu mestre” –, uma conversa ensandecida sobre pintura –“Faces e Superfícies” – e o enigmático texto que dá título ao volume, que foi inusitadamente preparado para uma revista de turismo – único texto realmente inédito desta coletânea.

Os textos foram cuidadosamente reunidos na França por David Lapoujade. No Brasil, ficaram sob os cuidados do especialista Luiz Orlandi, responsável por selecionar ótimos tradutores, incluindo outros grandes leitores deleuzianos, como Peter Pál Pelbart, Roberto Machado e Daniel Lins.

O volume mostra as marcas de vinte anos da febril atividade filosófica de Deleuze. Há traços de um confronto, por vezes cômico, com os movimentos do pós-guerra francês, seja com o estruturalismo, o marxismo, a fenomenologia, a psicanálise; há, por outro lado, um testemunho vivo do que foi Maio de 68 para o filósofo, bem como seu encontro com Félix Guattari, conjunto à explosão de uma temática política e subjetiva, inteiramente relacionada com a reviravolta vinda da rua.

Peter Pál Pelbart, na apresentação do livro no site da editora Iluminuras, diz: “Há duas maneiras de desconhecer um grande autor, diz Deleuze – e isso se aplica inteiramente aos textos dessa coletânea. Ora ignorando o caráter sistemático de sua obra, sua lógica profunda (que aqui aparece claramente na gênese ou na recorrência de um conceito como “diferença”), ora ignorando “sua potência e seu gênio cômicos, de onde a obra retira geralmente o máximo de sua eficácia anticonformista”. Com Deleuze, como o mostra o ziguezagueante livro que o leitor tem em mãos, aprende-se que o pensamento é, paradoxalmente, inseparável de sobriedade e de gargalhadas. Mas também, que a solidão do filósofo, sempre povoada, como diz ele, é indissociável da agitação de seu tempo, cuja vitalidade lhe cabe captar e restituir”. 

Lapoujade, além de filósofo e professor da Sorbonne, foi aluno de Deleuze. Sobre a seleção de textos presentes neste volume, explica: “Este primeiro volume reagrupa a quase totalidade dos textos de Gilles Deleuze publicados na França e fora dela entre 1953 e 1974, desde o aparecimento de Empirismo e subjetividade, sua primeira obra, até os debates subsequentes à publicação de O anti-Édipo, escrito com Félix Guattari. No essencial, esta compilação compõe-se de textos já publicados – artigos, resenhas, prefácios, entrevistas, conferências – mas que não figuram em obra alguma já existente de Deleuze. A fim de não impor uma opinião preconcebida ao sentido ou à orientação dos textos, adotamos uma ordem estritamente cronológica. Uma classificação temática teria tido, talvez, a vantagem de inscrever-se na linhagem da compilação denominada Conversações e de um projeto de bibliografia redigido por volta de 1989, mas isso teria tido a desvantagem maior de alimentar a crença na reconstituição de algum livro “de” Deleuze ou que ele teria projetado. As únicas condições fixadas por Deleuze – e que respeitamos, evidentemente – são as seguintes: não publicar textos anteriores a 1953, nada de publicações póstumas ou de inéditos. Entretanto, o leitor encontrará alguns textos publicados aqui pela primeira vez, mas estão todos mencionados no esboço de bibliografia de 1989. Assim, esta compilação procura tornar disponíveis textos quase sempre pouco acessíveis por se encontrarem dispersos em revistas, jornais, obras coletivas etc”. Em entrevista, questionado sobre a existência de apenas um texto inédito nesta coletânea, Lapoujade analisa: Todo o trabalho de Deleuze se ordenava em torno da composição de seus livros. Frequentemente, os artigos existiam apenas numa estreita relação com os livros que ele estava fazendo. Isso se pode verificar mais e mais, à medida que a obra avança. Ora, como ele dá tudo que pode a cada um de seus livros, ele não dispõe de nenhuma reserva que poderia servir em outro lugar. Quaisquer que sejam as razões, os inéditos supõem uma lógica de poupança bem estranha a Deleuze”.

O organizador da edição brasileira, o professor doutor Luiz B. L. Orlandi, aponta que, para Deleuze, “qualquer coisa pode forçar o pensamento filosófico a cumprir sua única tarefa: a de sentir e pensar conceitualmente o jogo problemático constitutivo da coisa em seus encontros, o jogo que envolve a diferença e o problema em pauta a cada caso. Tarefa difícil e tematizada de modo exemplar em Diferença e repetição (1968). É que, a cada instante, o pensamento recai em um jogo antigo, o jogado entre quatro paredes da representação: a identidade do conceito, a analogia do juízo, a oposição dos predicados e a semelhança do percebido. Como subverter este jogo a cada instante? Tarefa difícil, para a qual o meio deleuzeano conta com uma proposição ontológica irredutível a receituários metodológicos: na experiência real dos encontros, todo e qualquer ente se diz univocamente como correspondências problemáticas entre diferenciações virtuais e diferenciações atuais. Assim, a problemática da diferença ganha uma nova imagem do pensamento filosófico”.

Evando Nascimento, professor na Universidade Federal de Juiz de Fora, em artigo publicado na Folha de São Paulo, analisa que os textos do livro “apresentam temas fundamentais de Deleuze, como política, arte e esquizofrenia, que aparecem como linhas de força”, textos que “são, portanto, sobretudo textos de intervenção, perfazendo uma das tarefas mais essenciais ao intelectual”. Para Nascimento, “É fascinante que o volume de Deleuze abra com um belíssimo texto inédito de 1953, que dá título ao conjunto: “Causas e Razões da Ilha Deserta”. A ilha deserta é o lugar da separação como condição para o movimento que consiste em reinventar o mundo, a partir não de uma impossível tábula rasa, mas das condições provisórias de isolamento que toda ilha oferece. É nesse ponto imaginário -e por isso mesmo inaudito- que a literatura e a filosofia começam, já se dando como diferença e repetição, singularidade e série. E aí também principia a obra magnífica de Deleuze, uma ilha à deriva, porém sempre conectada ao continente. Vale tirar proveito da duplicidade do termo “semiologia” (ciência dos signos e parte da medicina que cuida dos sintomas) para entender como a filosofia deleuziana se propõe a ser uma “clínica”. Trata-se de ler os “sintomas” da cultura para fazer funcionar a máquina do pensamento, em que o filósofo se torna duplo do artista, em lugar do médico”. 

O ensaio sobre as ilhas desertas, como o disse o crítico Alcino Leite Neto, em artigo para a revista Trópico, “já avança, em linguagem muito próxima da prosa poética, rumo ao seu pensamento da diferença”. Leite Neto pontua que “Nietzsche é a principal presença na coletânea. Ele é tema de quatro ensaios, inclusive o genial “Pensamento Nômade”, de 1973. Mas o universo de referências de Deleuze está todo lá […]. E, surpresa, o pensamento rousseauniano é examinado sob um viés imprevisto em “Jean-Jacques Rousseau, precursor de Kafka, Céline e Ponge”, de 1972”.

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Os geógrafos dizem que há dois tipos de ilhas. Eis uma informação preciosa para a imaginação, porque ela aí encontra uma confirmação daquilo que, por outro lado, já sabia. Não é o único caso em que a ciência torna a mitologia mais material e em que a mitologia torna a ciência mais animada. As ilhas continentais são ilhas acidentais, ilhas derivadas: estão separadas de um continente, nasceram de uma desarticulação, de uma erosão, de uma fratura, sobrevivem pela absorção daquilo que as retinha. As ilhas oceânicas são ilhas originárias, essenciais: ora são constituídas de corais, apresentando-nos um verdadeiro organismo, ora surgem de erupções submarinas, trazendo ao ar livre um movimento vindo de baixo; algumas emergem lentamente, outras também desaparecem e retornam sem que haja tempo para anexa-las.  Esses dois tipos de ilhas, originárias ou continentais, dão testemunho de uma oposição profunda entre o oceano e a terra. Umas nos fazem lembrar que o mar está sobre a terra, aproveitando-se do menor decaimento das estruturas mais elevadas; as outras lembram-nos que a terra está ainda aí, sob o mar, e congrega suas forças para romper a superfície. Reconheçamos que os elementos, em geral, se detestam, que eles têm horror uns dos outros. Nada de tranquilizador nisso tudo. Do mesmo modo, deve parecer-nos filosoficamente normal que uma ilha esteja deserta. O homem só pode viver bem, e em segurança, ao supor findo (pelo menos dominado) o combate vivo entre a terra e o mar. Ele quer chamar esses dois elementos de pai e mãe, distribuindo os sexos à medida do seu devaneio. Em parte, ele deve persuadir-se de que não existe combate desse gênero; em parte, deve fazer de conta que esse combate já não ocorre. De um modo ou de outro, a existência das ilhas é a negação de um tal ponto de vista, de um tal esforço e de uma tal convicção. Será sempre causa de espanto que a Inglaterra seja povoada, já que o homem só pode viver sobre uma ilha esquecendo o que ela representa. Ou as ilhas antecedem o homem ou o sucedem.

[Trecho de “Causas e razões das ilhas desertas”]

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A ILHA DESERTA

Autor: Gilles Deleuze
Editora: Iluminuras
Preço: R$ 37,10 (384 págs.)

 

 

 

 

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