Artes Plásticas

“o trabalho vem do trabalho”

2 junho, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Desenho de Richard Serra.

A exposição Richard Serra: desenhos na casa da Gávea, composta por 96 obras selecionadas pelo próprio artista, foi inaugurada na sexta-feira, dia 30 de maio, e permanecerá aberta ao público até dia 28 de setembro, no centro cultural do Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro. A mostra foi especialmente concebida para o local, a antiga residência do embaixador Walther Moreira Salles (1912-2001), patrono e criador da instituição. Richard Serra, considerado por alguns críticos como um dos mais importantes artistas contemporâneos, para instalar seus desenhos no local solicitou a remoção de algumas paredes falsas, construídas sobre as paredes de vidro do projeto original para que o espaço abrigasse exposições. Os desenhos foram escolhidos a partir da escala da casa, “um espaço doméstico”, segundo Serra, para que entrassem em diálogo direto com o projeto modernista criado pelo arquiteto Olavo Redig Campos, em 1948, caracterizado pela transparência, que permite a interação dos interiores com os jardins planejados por Burle Marx.

Concomitante à abertura da exposição, na semana passado o IMS lançou o livro Escritos e entrevistas, 1967-2013, de Richard Serra. O conjunto de textos, em sua maioria inéditos em português, apresenta um panorama das preocupações do artista e do desenvolvimento do seu trabalho ao longo dos últimos quarenta anos. 

Apesar de que as grandes esculturas são o que há de mais conhecido e comentado dentre os trabalhos artísticos de Serra, o desenho para ele é uma vertente também relevante. Em 2013, o artista expôs seus desenhos na Courtauld Gallery, em Londres. A exposição no IMS contempla a série Drawings after Circuit (1972), feita a partir da famosa escultura Circuit, formada por quatro placas apoiadas e saindo dos cantos de uma sala da Documenta de Kassel, em 1972. Segundo Serra, esses desenhos “registram o que eu vi enquanto me movimentei 360 graus pela sala… Os desenhos são um diagrama da abertura e do fechamento das placas enquanto se caminha entre elas”. Além dessa série, a exposição apresenta cadernos de anotações, que mostram esboços feitos durante ou logo após a instalação de esculturas. Serra diz nunca fazer desenhos preparatórios para uma escultura e considera o desenho uma atividade independente do seu trabalho tridimensional. Para ele, o desenho sempre foi, antes de tudo, um meio de experimentação privilegiado: “Tenho trabalhado com diversos materiais e em diversas superfícies, mas um princípio básico nunca se altera: o processo sempre é mais importante do que o resultado”.

Heloisa Espada, coordenadora de artes visuais do IMS, em artigo escrito por ocasião do lançamento do livro, que, em uma das entrevistas mais fascinantes desta coletânea, o crítico inglês David Sylvester, após ouvir de Richard Serra detalhes sobre os desafios técnicos que enfrentou para elaborar as Torqued Ellipses, declara-se impressionado com a beleza das peças. O escultor então responde que não está interessado nesse tipo de qualificação, e sim no grau de inclinação das obras. Seu interlocutor persiste no assunto, dizendo que todo artista é como um gato concentrado na caça, alheio a tudo que o desvie de seu objetivo e, portanto, despreocupado com a aparência de seus movimentos. Segundo o crítico, são os outros que veem beleza no que ele faz”. Espada comenta: “Ao longo de cinco décadas de produção, seus depoimentos enfatizam a busca por resultados imprevisíveis, capazes de apontar novos caminhos para a escultura e para o desenho. Em outra passagem notável, ao comparar os trabalhos tardios de Matisse e Picasso, Serra explica sua preferência pelo primeiro. Matisse, quando acamado, teria reinventado a maneira de delimitar a forma com seus recortes de papel, enquanto Picasso, seduzido pelo próprio talento, teria abandonado a experimentação”. Segundo sua análise, Richard Serra é um artista há tanto tempo influente , graças à “sua capacidade de periodicamente surpreender o público e a crítica com novas pesquisas derivadas de seu próprio fazer — “o trabalho vem do trabalho”, ele costuma dizer — e de uma relação dialética com a história da arte e a contemporaneidade”. A respeito dessa relação com seu tempo, Heloísa Espada destaca os depoimentos de Serra e pontua: “Parece haver uma correspondência entre a materialidade explícita das obras de Richard Serra e o estilo franco de suas palavras. Nas duas instâncias, o artista se afasta de qualquer metafísica. Suas reflexões sobre o espaço como conteúdo da obra, sobre a ação da gravidade, sobre os limites das formas e dos materiais estão associadas a experiências físicas e ao enfrentamento de problemas concretos. Seus escritos revelam-se uma parte constitutiva de seu processo de trabalho, veículos de ideias que se materializam em ações”.

A grande crítica e historiadora da arte Rosalind Krauss, quando analisou o trabalho de Serra, apontou a infinitude de possibilidades, intelectuais e artísticas, que representava a exploração – feita não só por Serra, mas por outros artistas contemporâneos – da “escultura no campo ampliado”, como ela definiu. Segundo ela: “O campo ampliado é portanto gerado pela problematização do conjunto de oposições entre as quais está suspensa a categoria modernista escultura. Quando isso acontece e quando conseguimos nos situar dentro dessa expansão, surgem, logicamente, três outras categorias facilmente previstas, todas elas uma condição do campo propriamente dito e nenhuma delas assimilável pela escultura. Pois, como vemos, escultura não é mais apenas um único termo na periferia de um campo que inclui outras possibilidades estruturadas de formas diferentes. Ganha-se, assim, “permissão” para pensar essa outras formas. […] Parece bastante claro que a permissão (ou pressão) para pensar a ampliação desse campo foi sentida por vários artistas mais ou menos ao mesmo tempo, entre os anos de 1968 e 1970. Robert Morris, Robert Smithson, Michael Heizer, Richard Serra, Walter de Maria, Robert Irvin, Sol LeWitt, Bruce Nauman, um depois do outro, assumiram uma posição cujas condições lógicas já não podem ser descritas como modernistas.  Precisamos recorrer a um outro termo para denominar essa ruptura histórica e a transformação no campo cultural que ela caracteriza. Pós-modernismo é o termo já em uso em outras áreas da crítica. Parece não haver motivos para não usá-lo. […] Os primeiros artistas que exploraram as possibilidades da arquitetura mais não-arquitetura foram Robert Irvin, Sol LeWitt, Bruce Nauman, Richard Serra e Christo. Em todas essas estruturas axiomáticas existe uma espécie de intervenção no espaço real da arquitetura”. Segundo Krauss, “a lógica do espaço da práxis pós-modernista já não é organizada em torno da definição de um determinado meio de expressão, tomando-se por base o material ou a percepção desse material, mas sim através do universo de termos sentidos como estando em oposição no âmbito cultural”.

As obras de Serra tem em comum a força, nas esculturas, de maneira imponência – ainda que isso se deva a uma aparente instabilidade estrutural, a um equilíbrio constantemente adiado. Segundo ele, o que lhe interessa “é a possibilidade de nos transformarmos em algo diferente do que somos, por meio da construção de espaços que contribuam para a experiência de quem somos”.

O jornal Folha de São Paulo divulgou integralmente o texto “Peso”, de 1988, presente no livro:

Peso

Uma das minhas recordações mais antigas é a de estar atravessando com meu pai a ponte Golden Gate de carro, ao amanhecer. Íamos para o antigo estaleiro da Marinha, onde ele trabalhava como encanador, para a cerimônia de batismo de um navio. Era o outono de 1943, no dia do meu aniversário. Eu tinha quatro anos. Quando chegamos, o cargueiro coberto de aço preto, azul e laranja, estava equilibrado num poleiro. Ele era desproporcionalmente horizontal e, para um menino de quatro anos como eu, tinha as laterais grandes como um arranha-céu. Eu me lembro de passear ao redor do casco com meu pai e olhar a enorme hélice de cobre, espiando através dos suportes. Então, numa lufada repentina de atividade, as estacas, as vigas, as placas, os postes, as barras, os blocos da quilha, toda a proteção foi removida; os cabos foram cortados, as correntes foram soltas, as travas foram abertas. Houve uma total incongruência entre o deslocamento dessa enorme tonelagem e a velocidade e a agilidade com que a tarefa foi executada. À medida que a estrutura de apoio foi desfeita, o navio começou a se mover para baixo, ao longo da calha, na direção do mar. Ouviu-se o som da celebração, os gritos, as buzinas, os berros, os assobios. Livre de suas amarras, com as toras rolando, o navio escorregou do berço com um movimento sempre crescente. Foi um momento de tremenda ansiedade quando o cargueiro chacoalhou, balançou, se inclinou e bateu de encontro ao mar, meio submerso, para então emergir e se levantar e encontrar seu equilíbrio. Não apenas o navio havia recobrado o equilíbrio, mas a multidão de espectadores também. O navio havia passado por uma transformação: de um enorme peso morto para uma estrutura brilhante, livre, flutuante e à deriva. O espanto e a admiração que eu senti naquele momento permaneceram. Toda a matéria-prima de que eu necessitava está contida no reservatório dessa lembrança, que se tornou um sonho recorrente.

 

O peso é um valor para mim. Não que ele seja mais expressivo que a leveza; mas simplesmente eu sei mais sobre o peso do que sobre a leveza, e tenho, portanto, mais a dizer sobre ele, mais a dizer sobre o equilíbrio do peso, a diminuição do peso, a adição e a subtração do peso, a concentração do peso, a manipulação do peso, o suporte do peso, a colocação do peso, o travamento do peso, o efeito psicológico do peso, a desorientação do peso, o desequilíbrio do peso, a rotação do peso, o movimento do peso, o direcionamento do peso, a forma do peso. Eu tenho mais a dizer sobre os ajustes perpétuos e meticulosos do peso, sobre o prazer que deriva da exatidão das leis da gravidade. Tenho mais a dizer sobre o processamento do peso do aço, sobre as forjas, as usinas de laminação e as fornalhas.

 

É difícil empregar objetos do dia a dia para expressar ideias de peso, pois a tarefa seria infinita. Há uma vastidão imponderável no peso. No entanto, eu posso registrar a história da arte como uma história da particularização do peso. Tenho mais a dizer sobre Mantegna, Cézanne e Picasso do que sobre Botticelli, Renoir e Matisse, ainda que eu admire o que me falta. Tenho mais a dizer sobre a história da escultura como uma história do peso; mais a dizer sobre os monumentos à morte, sobre o peso e a densidade e a concretude de inúmeros sarcófagos, sobre câmaras funerárias; mais a dizer sobre Michelangelo e Donatello; mais a dizer sobre a arquitetura micênica e inca, sobre o peso das cabeças olmecas.

 

Nós somos todos restringidos e condenados pelo peso da gravidade. No entanto, Sísifo empurrando eternamente o peso da sua rocha montanha acima não me impressiona tanto quanto o trabalho incansável de Vulcano no fundo da cratera fumegante, martelando a matéria bruta. O processo construtivo, a concentração e o esforço diários me atraem mais que o leve e o fantástico, mais que a busca pelo etéreo. Tudo que escolhemos na vida pela sua leveza logo revela seu insuportável peso. Estamos diante do medo do peso insuportável: o peso da repressão, o peso da constrição, o peso do governo, o peso da tolerância, o peso da resolução, o peso da responsabilidade, o peso da destruição, o peso do suicídio, o peso da história que dissolve o peso e erode o sentido de uma construção calculada de leveza palpável. O resíduo da história: a página impressa, a cintilação da imagem, sempre fragmentária, sempre dizendo algo aquém do peso da experiência.

 

É a distinção entre o peso pré-fabricado da história e a experiência direta que evoca em mim a necessidade de fazer coisas que ainda não foram feitas. Eu tento continuamente confrontar as contradições da memória e fazer tábula rasa, de modo a ter que apelar para as minhas próprias experiências e os meus próprios materiais, mesmo diante de uma situação sem chance de realização. Inventar métodos sobre os quais eu não sei nada, utilizar o conteúdo da experiência de modo que ele se torne conhecido para mim, para então questionar a autoridade daquela experiência e assim questionar a mim mesmo.

 

 

 

 

ESCRITOS E ENTREVISTAS, 1967-2013

Autor: Richard Serra
Editora: Instituto Moreira Salles
Preço: R$ 54,90 (362 págs.)

 

 

 

 

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