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Contos de Kolimá

15 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Estou convencido de que os campos de prisioneiros, todos eles, são uma escola negativa; passar neles uma hora que seja é uma defloração. O campo de prisioneiros não dá, nem pode dar, nada de positivo a ninguém. Sobre todos, encarcerados e trabalhadores contratados, o campo age de modo deflorador”.

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Na desolada região no extremo leste da Sibéria conhecida como Kolimá, onde as temperaturas chegam a 60 graus negativos, existiram alguns dos campos de trabalhos forçados mais temíveis e desumanos da era stalinista. É sobre eles que o escritor russo Varlam Chalámov (1907-1982) fala em Contos de Kolimá, recentemente lançado pela Editora 34, em uma edição cuidadosa, com tradução de Denise Sales e Elena Vasilevich, apresentação de Boris Schnaiderman e prefácio de Irina P. Sirotínskaia, companheira do escritor em seus últimos anos e profunda conhecedora de sua obra.

Chalámov, poeta e jornalista, conheceu profundamente Kolimá, pois alí cumpriu a maior parte de sua pena de quase vinte anos: preso político, trabalhou até 16 horas por dia em minas de ouro e carvão, constantemente doente e subnutrido.

Ao final da pena, o escritor retornou a Moscou e, no ano seguinte, começou a dedicar-se à composição de sua obra monumental, trabalho que lhe tomou mais novos vinte anos: Contos de Kolimá, mais de duas mil páginas divididas em seis volumes, que retomam de maneira profunda a memória do autor, uma vasta coleção de histórias da vida cotidiana nos campos de prisioneiros que forma um relato autobiográfico agudo, pois acompanhado por uma reflexão profunda sobre os limites do humano frente à brutalidade sem limites. 

Este primeiro volume,  que inicia a publicação da epopeia de Chalámov, mostra a dimensão do sofrimento suportado pelos prisioneiros, a comida insuficiente, o trabalho excessivo, o frio tamanho que congela o cuspe no ar.

Por exemplo, em “Ração seca”, texto de 1959, Chalámov escreve, sobre a reação de seu colega Savielev em relação ao suicídio de um prisioneiro durante um trabalho de derrubada de árvores: “Savielev aproximou-se de um tronco de larício curto e grosso, em que sempre cortávamos a lenha; o tronco estava retalhado, a casca, toda arrancada. Ele colocou a mão esquerda sobre o tronco, abriu os dedos e ergueu o machado.

O capataz deu um grito esganiçado e penetrante. Fiedia lançou-se na direção de Savielev; quatro dedos voaram e caíram sobre a serragem; em meio a galhos e estilhaços, não eram vistos logo de cara. Um sangue rubro jorrou dos dedos. Fiedia e eu rasgamos a camisa de Ivan Ivánovitch, apertamos um torniquete na mão de Savielev, amarramos a ferida.

O capataz levou todos nós para o campo de prisioneiros. Savielev à enfermaria, para um curativo, e à seção de investigação, para o início do processo por automutilação. Fiedia e eu voltamos para a mesma barraca de onde tínhamos saído duas semanas antes com tantas esperanças e expectativas de felicidade”.

A tradutora Denise Sales disse, conforme citada por artigo de Maria Fernanda Rodrigues, para o jornal O Estado de São Paulo: “Tentamos manter as frases curtas e a pontuação do autor pela característica do impacto”; porém, diz Sales, “quando ele escreve sobre a natureza, vemos uma narrativa com período longo, ponto e vírgula, muitos adjetivos. Ou seja, diferente de quando fala do homem, sempre de forma seca, como achava que eles ficavam naquelas condições. Sem nada de humano. Sem nada de beleza”.

O crítico Kelvin Falcão Klein, em resenha publicada no jornal O Globo, comenta que, ao longo dos contos de Chalámov, a “rotina é feita de eventos quase milagrosos, mas são milagres perversos, que contaminam a realidade como um veneno: “tínhamos sido envenenados pelo Norte para sempre e compreendíamos isso”, escreve o autor no conto “Ração seca”. Eis o “Norte”, ou também o “Extremo Oriente”, essa entidade geográfica ao mesmo tempo tão presente e tão indiferente”. Segundo o crítico, “Chalamóv retorna muitas vezes a esse fenômeno do inverossímil que invade o real. A experiência nos campos permite o questionamento tanto da religiosidade tradicional quanto da literatura — suas lições não se sustentam no gulag. “A operação de saciar cinco mil pessoas com cinco pães devia ser mais fácil e simples do que a tarefa de um único detento dividir em trinta porções sua ração para dez dias”, escreve o narrador”. Klein analisa: “Chalamóv fala de sua narrativa como uma ‘prosa alheia a qualquer mentira’. Talvez seja nesse paradoxo que resida a força de sua obra: ser um relato que, justamente em seu excesso, em seu transbordamento daquilo que convencionamos chamar “realidade”, dê conta de uma experiência direta, material, irrevogável”.

Ainda serão publicados os outros cinco volumes de Contos de Kolimá: A margem esquerda, com tradução de Cecília Rosas, O artista da pá, traduzido por Lucas Simone, Ensaios sobre o mundo do crime, traduzido por Francisco Araújo, A ressureição do Lariço, com tradução de Daniela Mountian e Mossei Mountian, e A luva ou KR-2, traduzido por Nivaldo dos Santos.

 

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Trecho de “Chuva”, 1958:

“Eu sabia que nunca me mataria porque já colocara à prova o instinto de sobrevivência. Pouco tempo antes, num poço como esse, só que mais fundo, havia soltado uma pedra grande com um golpe da picareta. Por muitos dias, fui liberando com cuidado aquele peso terrível. Daquele peso ruim pensei criar algo maravilhoso, como dizia o poeta russo. Pensei salvar minha vida, quebrando a própria perna. Na verdade, a intenção era maravilhosa, um fenômeno inteiramente natural. A pedra desabaria e partiria a minha perna. E eu: inválido para sempre! Esse sonho apaixonante foi submetido a cálculos; preparei o lugar onde colocar a perna, previ como virar de leve a picareta, então a pedra desabaria. Chegaram o dia, a hora e o minuto determinados. Coloquei a perna direita sob a pedra pendente, elogiei a própria calma, ergui o braço e virei a picareta alojada sob a pedra como uma alavanca. A pedra deslizou pela parede para o lugar calculado e esperado. Mas não sei como isso aconteceu: puxei a perna. No poço estreito, a perna ficou amassada. Duas equimoses, três arranhaduras: eis aí todo o resultado de um negócio tão bem preparado.”

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contos de kolimá

 

CONTOS DE KOLIMÁ

Autor: Varlam Chalámov
Editora: 34
Preço: R$ 34,30 (304 págs.)

 

 

 

 

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