Literatura

Contraponto escrito

3 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Eu já tenho uma filhinha, Mário. Chama-se Maria Julieta, é linda, quase robusta, manhosa e risonha como nunca foi esse diabo de pai. Até nem sei como, diante de um pedacinho de gente tão interessante e vivaz como é ela, eu ainda tenho tempo e jeito para ser tão vencido, tão bestamente e confessadamente falhado” – Drummond, carta a Mário de Andrade, escrita em 1928.

Mário de Andrade, por Lasar Segall, 1927 / Carlos Drummond de Andrade, por Cândido Portinari, 1936.

Ler a correspondência trocada entre dois dos mais ilustres escritores brasileiros dá um sabor lúdico à sensação voyeurística. Carlos e Mário – Correspondência reproduz as ricas conversas epistolares entre Drummond e Mário de Andrade.

O livro foi organizado pela crítica literária Lélia Coelho Frota, reconstitui um diálogo intenso, que se estendeu de 1924 a 1945. Frota compilou as cartas de Drummond endereçadas a Mário de Andrade durante meses nos arquivos do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. O crítico Silviano Santiago, responsável pelas 500 notas elucidativas que acompanham o volume, no prefácio pontua que são textos nos quais a estilização literária “recobre, surrupia, esconde, escamoteia e dramatiza a experiência pessoal”.

A correspondência entre os escritores foi primeiro publicada em fragmentos. As duas primeiras cartas escritas por Mário ao jovem poeta mineiro foram reproduzidas no quarto volume da revista literária José, em 1976. A respeito da publicação, Drummond escreveu uma breve nota justificativa: “Publico suas cartas por estar convencido de que elas, como toda a vastíssima correspondência de Mário, transcendem a área da comunicação entre amigos para se caracterizarem como textos de reflexão de grande proveito no debate, jamais esgotado, sobre a aventura criativa”. Tão convencido que alguns anos mais tarde, em 1982, ele publicou, pela José Olympio, o conjunto de cartas enviadas por Mário, volume a que nomeou A lição do amigo.

A edição da Bem-te-vi traz ao público também as respostas de Drummond, ou seja, a correspondência completa entre os dois. Como analisa o poeta Eucanaã Ferraz, em resenha: “A Revolução de 30, a Revolução Constitucionalista de 1932, o ministério de Gustavo Capanema e outros momentos fundamentais da história brasileira, mais que panos de fundo, aparecem como quadros em que se situam e atuam os dois missivistas. […] Mais adiante, outras questões ético-estéticas viriam à tona, quando simultaneamente se fortalecia o afeto, a amizade, a intimidade entre os dois amigos. Com a leitura das cartas podemos avaliar o quanto certos interesses, dúvidas, convicções e uma variada gama de idiossincrasias estenderam-se dos limites individuais aos poemas de Mário e de Drummond, donde uma patente conversão do dado biográfico em tema ou mesmo traço estético-estilístico na obra de ambos”. Eucanaã pontua que o prefácio, escrito por Silviano Santiago, “na trilha aberta por Drummond na sua introdução para A lição do amigo, reafirma o quanto correspondências, diários, entrevistas e outros documentos da intimidade podem ser convertidos em bens de grande valor para a teoria literária e, no caso presente, o quanto as cartas são preciosas para o conhecimento da obra dos dois poetas e da história do modernismo, em particular o período seguinte à Semana de Arte Moderna”. Ainda na mesma resenha, Eucanaã elogia as notas, “responsáveis pela nitidez e alcance do que se considera o eixo central” do texto, margem que ao leitor “assegura um conhecimento mais amplo, seguro e crítico, reforçando a significância das cartas para além do perímetro instituído entre os missivistas”; segundo ele, “é preciso registrar o quanto Silviano escolhe com grande acerto os momentos de incluí-las. Ele convida o leitor a pensar sobre os pontos que lhe parecem interessantes, ou turvos, quando dá à sua fala sempre a medida certa. O leitor, que não desconfiava da importância deste ou daquele trecho, descobre com satisfação que ali se escondia um momento-chave. A nota de Silviano Santiago aparece, então, esclarecedora sem nunca se sobrepor às cartas com exibicionismo crítico ou documentação aparatosa”.

De acordo com Heloísa Buarque de Hollanda, há alguns motivos para considerar a publicação deste volume a grande homenagem editorial do centenário de Carlos Drummond de Andrade. Segundo ela: “O primeiro motivo que imediatamente salta aos olhos, é seu valor documental. Ao longo das cartas e notas, entramos em contato direto não apenas com os bastidores da história e do ideário modernista, mas sobretudo com o processo de formação do código genético de uma estética que até hoje é a grande referência artística e literária na cultura brasileira. […] O segundo motivo e o que realmente me tocou na viagem que é a leitura completa, redonda, dessas cartas e  seus subtextos mais tensos, foi o contato com um genial ensaio sobre o afeto, a felicidade, a contingência e sobretudo a amizade.  No início o mestre quer mudar o discípulo, “fazer você que nem eu” (como diz Mário numa carta de 1929), catequizá-lo, trazê-lo para a frente modernista, fazer de Carlos seu amigo. Critica o modo de ser contido, prudente, “de gabinete demais” de Carlos, a quem lhe parece faltar o “ espírito da mocidade brasileira”, que se permite “dizer asneiras, ser transitório,  imbecil”. De acordo com a análise de Heloísa, o livro delineia as personalidades dos dois escritores, “Mário e sua angustiosa impossibilidade de solidão. Do outro lado Carlos, o cauteloso, os sentimentos chegando com prudência, aquele que  responde dando tempo ao tempo, sem grandes projetos de mudança. Carlos e sua solidão trágica”. Ao final da leitura, a crítica depreende que ambos, Carlos e Mário, “em momentos diferentes da correspondência, apontam uma certa  intermediação da invenção literária na condução da escrita das cartas e mesmo na exposição de sentimentos pessoais. É neste limite impreciso que o leitor tira o encanto maior da leitura”.

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TRECHO:

São Paulo, 10 novembro 1924

Meu caro Carlos Drummond

Já começava a desesperar da minha resposta? Meu Deus! Comecei esta carta com pretensão… Em todo caso de mim não desespere nunca. Eu respondo sempre aos amigos. Às vezes demoro um pouco, mas nunca por desleixo ou esquecimento. As solicitações da vida é que são muitas e as da minha agora muitíssimas e… Quer saber quais são? Tenho o meu trabalho cotidiano, é lógico. Lições no Conservatório, lições particulares. Mas atualmente as minhas preocupações são as seguintes: escrever dísticos estrambóticos e divertidos prum baile futurista que vai haver na alta roda daqui (a que não pertenço, aliás). Escolher vestidos extravagantes mas bonitos pra mulher dum amigo que vai ao tal baile. E escrever uma conferência sem valor mas que divirta pra uma festa que damos, o pianista Sousa Lima e eu, no Automóvel Clube, sexta-feira que vem. São as minhas grandes preocupações do momento. Serão desprezíveis pra qualquer idiota antiquado, aguado e simbolista. Pra mim são tão importantes como escrever um romance ou sofrer uma recusa de amor. Tudo está em gostar da vida e saber vivê-la. Só há um jeito feliz de viver a vida: é ter espírito religioso.

Explico melhor: não se trata de ter espírito católico ou budista, trata-se de ter espírito religioso pra com a vida, isto é, viver com religião a vida. Eu sempre gostei muito de viver, de maneira que nenhuma manifestação da vida me é indiferente. Eu tanto aprecio uma boa caminhada a pé até o alto da Lapa como uma tocata de Bach e ponho tanto entusiasmo e carinho no escrever um dístico que vai figurar nas paredes dum bailarico e morrer no lixo depois como um romance a que darei a impassível eternidade da impressão.

Eu acho, Drummond, pensando bem, que o que falta pra certos moços de tendência modernista brasileiros é isso: gostarem de verdade da vida. Como não atinaram com o verdadeiro jeito de gostar da vida, cansam-se, ficam tristes ou então fingem alegria o que ainda é mais idiota do que ser sinceramente triste. Eu não posso compreender um homem de gabinete e vocês todos, do Rio, de Minas, do Norte me parecem um pouco de gabinete demais. Meu Deus! se eu estivesse nessas terras admiráveis em que vocês vivem, com que gosto, com que religião eu caminharia sempre pelo mesmo caminho (não há mesmo caminho pros amantes da Terra) em longas caminhadas! Que diabo! estudar é bom e eu também estudo. Mas depois do estudo do livro e do gozo do livro, ou antes vem o estudo e gozo da ação corporal.

Eu neste ponto não aconselho nada porque nisso a gente não se muda por causa de conselhos, mas um dos desastres que impedem a felicidade, que é naturalidade, de vocês está aí: em casa lendo, redação de jornal, café com amigos sobre tal livro, tal escritor, escrever coisas depois, talvez cinemas e depois farra com mulheres. Isso não é vida que se leve! Isso é vício. Está muito bem com todas as outras formas de vida juntas, mas assim sozinhos e continuados é miséria, decadência e infelicidade na certa. É horrível.

Veja bem, eu não ataco nem nego a erudição e a civilização, como fez o Osvaldo num momento de erro, ao contrário respeito-as e cá tenho também (comedidamente, muito comedidamente) as minhas fichinhas de leitura. Mas vivo tudo. Que passeios admiráveis eu faço, só! Mas ninguém nunca está só a não ser especiais estados de alma, raros, em que o cansaço, preocupações, dores demasiado fortes tomam a gente e há essa desagregação dos sentidos e das partes da inteligência e da sensibilidade. Estão a gente fica só por milhões de amigos que tenha ao lado. Se não, não. Um sentido conversa com outro, a razão discute com a imaginativa etc. e é uma camaradagem sublime de pessoas tão íntimas como nenhuns Castor e Pólux ideais. E então parar e puxar conversa com gente chamada baixa e ignorante! Como é gostoso! Fique sabendo duma coisa, se não sabe ainda: é com essa gente que se aprende a sentir e não com a inteligência e a erudição livresca. Eles é que conservam o espírito religioso da vida e fazem tudo sublimemente num ritual esclarecido de religião.

Eu conto no meu “Carnaval carioca” um fato a que assisti em plena avenida Rio Branco. Uns negros dançando o samba. Mas havia uma negra moça que dançava melhor que os outros. Os jeitos eram os mesmos, mesma habilidade, mesma sensualidade mas ela era melhor. Só porque os outros faziam aquilo um pouco decorado, maquinizado, olhando o povo em volta deles, um automóvel que passava. Ela, não. Dançava com religião. Não olhava pra lado nenhum. Vivia a dança. E era sublime. Este é um caso em que tenho pensado muitas vezes. Aquela negra me ensinou o que milhões, milhões é exagero, muitos livros não me ensinaram. Ela me ensinou a felicidade.

Bom! não é preciso ninar a vida pra ser feliz dentro dela e ainda tenho umas coisinhas pra lhe dizer e perguntar. Primeiro você me fala numa carta que escrevi ao Martins de Almeida. Ora eu já escrevi duas e da segunda não veio resposta. Não sabe se ele a recebeu? Se não, fico seriamente triste porque era longa, não era pensada, não, mas era tão minha, dada de coração, e eu me horrorizo de me pensarem ingrato ou indiferente. Ele que me escreva qualquer coisa. A carta foi registrada pra avenida Paraopeba 272. Segundo: li seu artigo. Está muito bom. Mas nele ressalta bem o que falta a você — espírito de mocidade brasileira. Está bom demais pra você. Quero dizer: está muito bem pensante, refletido, sereno, acomodado, justo, principalmente isso, escrito com grande espírito de justiça. Pois eu preferia que você dissesse asneiras, injustiças, maldades moças que nunca fizeram mal a quem sofre delas. Você é uma sólida inteligência e já muito bem mobiliada… à francesa.

Com toda a abundância do meu coração eu lhe digo que isso é uma pena. Eu sofro com isso. Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século 19, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. O natural da mocidade é crer e muitos moços não creem. Que horror! Veja os moços modernos da Alemanha, da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos, de toda a parte: ele creem, Carlos, e talvez sem que o façam conscientemente, se sacrificam. Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime. E nos dá felicidade. Eu me sacrifiquei inteiramente e quando eu penso em mim nas horas de consciência, eu mal posso respirar, quase gemo na pletora da minha felicidade. Toda a minha obra é transitória e educada, eu sei. E eu quero que ela seja transitória. Com a inteligência não pequena que Deus me deu e com os meus estudos, tenho a certeza de que eu poderia fazer uma obra mais ou menos duradoura. Mas que me importam a eternidade entre os homens da terra e a celebridade? Mando-as à merda. Eu não amo o Brasil espiritualmente mais que a França ou a Cochinchina. Mas é no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei.

A língua que escrevo, as ilusões que prezo, os modernismo que faço são pro Brasil. E isso nem sei se tem mérito porque me dá felicidade, que é a minha razão de ser da vida. Foi preciso coragem, confesso, porque as vaidades são muitas. Mas a gente tem a propriedade de substituir uma vaidade por outra. Foi o que fiz. A minha vaidade hoje é de ser transitório. Estraçalho a minha obra. Escrevo língua imbecil, penso ingênuo, só pra chamar a atenção dos mais fortes do que eu pra este monstro mole e indeciso ainda que é o Brasil. Os gênios nacionais não são de geração espontânea. Eles nascem porque um amontoado de sacrifício humanos anteriores lhes preparou a altitude necessária de onde podem descortinar e revelar uma nação. Que me importa que a minha obra não fique? É uma vaidade idiota pensar em ficar, principalmente quando não se sente dentro do corpo aquela fatalidade inelutável que move a mão dos gênios. O importante não é ficar, é viver. Eu vivo. E vocês não vivem porque são uns despaisados e não têm a coragem suficiente pra serem vocês. É preciso que vocês se ajuntem a nós ou com este delírio religioso que é meu, do Osvaldo, de Tarsila ou com a clara serenidade e deliciosa flexibilidade do pessoal do Rio, Graça, Ronald. De qualquer jeito porque não se trata de formar escola com um mestrão na frente. Trata-se de ser. E vocês por enquanto ainda não são. Responda, discuta, aceite ou não aceite, responda. Amigo eu serei sempre de qualquer forma. Não é a amizade e a admiração que diminuirão, é a qualidade delas.

Amizade triste ou amizade alegre e do mesmo jeito a admiração. Desculpe esta longuidão de carta. Eu sofro de gigantismo epistolar. Como vai o Nava? Vocês não arranjam mesmo um jeitinho de vir passar uns dias em São Paulo? Isto aqui é engraçado. Me avisem antes se um dia se aventurarem até aqui. E até logo. Vou lhe mandar uma cópia do “Noturno”, é só minha irmã ter um tempinho e passará a versalhada a máquina. Olhe, a Estética publicou um poema meu, “Dança”, que eu acho que tem alguma coisinha dentro. Reflita e mande me dizer.

Um abraço do

Mário de Andrade

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CARLOS E MÁRIO – CORRESPONDÊNCIA

Autor: Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade
Editora: Bem-te-vi
Preço: R$ 190,00 (616 págs.)

 

 

 

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