Guia de Leitura

Corpo na América e alma na África

27 fevereiro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

A relação entre raças e classes no Brasil é complexa; relação que reflete o paralelismo histórico entre passado e presente, e a compreensão de que são acepções categoricamente iguais do sistema econômico.

A escravidão, após ter sido proibida em nosso país, não foi, porém, punida. Houve, após 1831, um pacto implícito, cúmplice da continuidade, a partir de então, ilegal, do comércio atlântico de africanos. Segundo o historiador brasileiro Luiz Felipe de Alencastro, como diz em artigo, assim; “Firmava-se duradouramente o princípio da impunidade e do casuísmo da lei que marca nossa história e permanece como um desafio constante aos tribunais e a esta Suprema Corte. Conseqüentemente, não são só os negros brasileiros que pagam o preço da herança escravista.

O comércio humano do tráfico negreiro justifica por um lado o início da história da pobreza no Brasil. Por outro, a eterna condição estrangeira dos descendentes de escravos, cuja consequência é a pouca integração econômico social, crônica, insolúvel, a despeito de sua maioria numérica no país.

Para Alencastro, as raízes do Brasil não devem ser buscadas em nosso próprio território, mas numa zona econômica formada entre o solo brasileiro e o africano – zona híbrida, luso-brasileira, luso-africana: trajeto do tráfico negreiro. De acordo com o historiador, pode-se “com muita razão dizer que o Brasil tem o corpo na América e a alma na África”.

Propomos um encontro desta afirmação com a análise de Florestan Fernades: “a Abolição constitui um episódio decisivo de uma revolução social feita pelo branco e para o branco”; afirmação que assim explica: “Primeiro, porque o ex-agente de trabalho escravo não recebeu nenhuma indenização, garantia ou assistência; segundo, porque se viu, repentinamente, em competição com o branco em ocupações que eram degra­dadas e repelidas anteriormente, sem ter meios para enfrentar e repelir essa forma mais sutil de despojamento social”.

Afinal, qual a dimensão do legado da escravidão para a formação social brasileira?

 

Luiz Felipe Alencastro, “O trato dos viventes”

Em O trato dos viventes – Formação do Brasil no Atlântico Sul – Séculos XVI e XVII, Alencastro analisa as consequências da colonização portuguesa, cuja base escravocrata gerou um espaço, econômico e social, localizado entre as duas costas do Atlântico sul, abrangendo desde a zona de produção escravocrata que se estendia ao longo do litoral da América do Sul, até a zona de reprodução de escravos, sobretudo Angola.

Segundo Alencastro, este espaço, aterritorial, formou uma espécie de “arquipélago lusófono”, no qual as duas partes que o compunham complementavam-se, formando um só sistema de exploração colonial que ainda marca profundamente o Brasil contemporâneo.

O comércio dos viventes, que Alencastro analisa, incorpora os eventos transcorridos em Angola à narrativa dos eventos brasileiros. O autor, assim, repensa a formação do Brasil, recusando o olhar, portanto simplista, da dominação Norte-Sul e das lutas no interior da colônia, dando, em contrapartida, um enfoque que privilegia a relevância histórica das expedições luso-brasílicas que partiram do Brasil para a África no século XVII.

Analisando  a relação do tráfico negreiro com a unidade nacional brasileira, Alencastro ressalta que 750 mil africanos “entraram aqui depois da proibição legal do tráfico em 1831. Os navios negreiros desembarcavam ilegalmente até 40 mil africanos por ano no Rio de Janeiro e ninguém via. […] E isso manteve a unidade nacional, porque o imperador agora se legitimava com todas as oligarquias dando cobertura a essa pirataria” – conforme disse em entrevista concedida à revista Pesquisa Fapesp. Na mesma entrevista, sobre os mecanismos que possibilitaram a articulação da abolição da escravidão, Alencastro faz uma análise lúcida e cética; diz ele: “Uma atividade que dura 300 anos, clandestina há 30 anos, lucrativa para um monte de gente e de repente acaba de uma vez só, não indica que a polícia ficou ótima ou que subitamente todo mundo ficou decente. O fim brusco do tráfico em 1850 mostra que houve uma negociação intensa entre as partes envolvidas, entre a bandidagem negreira, os fazendeiros e o governo”. De acordo com o historiador, “o Estado decidiu que ia fazer estrada de ferro para o pessoal do café, o mais envolvido na pirataria negreira àquela altura, o que diminuiria o preço do transporte. Decidiu também fazer uma lei para trazer imigrantes, baixando a taxa de exportação do café e fazendo uma porção de arreglos. Aí vem o arranjo principal, que é dito, não escrito, mas acaba sendo efetivado. Porque de repente tinha 750 mil africanos e os filhos deles, os netos, todos ilegalmente nas mãos de soi-disant proprietários. Mas nenhum desses proprietários foi condenado por sequestro e quase todos os indivíduos livres continuaram a ser mantidos na escravidão. Este é o fato escandaloso, um dos maiores crimes do século XIX, ocorrido no Brasil, que não se ensina nas nossas escolas e faculdades: as duas últimas gerações de escravos no Brasil não eram escravos e estavam ilegalmente mantidos como propriedade de alguém, como cativos”.

Segundo Alencastro: “Isso virou um tabu na história do Brasil e hoje pouca gente sabe que a escravidão era não somente imoral, mas era também, e sobretudo, ilegal”; processo continuado, uma vez que “a sucessão de ciclos produtivos no Brasil só é possível graças ao grande ciclo reprodutivo do tráfico negreiro, graças à injeção contínua de energia humana deportada da África para o Brasil”.

O escravo, porém, permanece forasteiro, excluído. Diz Alencastro ter tomado emprestadas noções de Claude Meillassoux, antropólogo econômico, autor de A antropologia da escravidão; segundo o historiador, o antropólogo “mostra que a escravização tem dois processos: o primeiro é a despersonalização, e o segundo e a dessocialização, quer dizer, a pessoa é extraída de sua comunidade, do seu país, da sua nação, da sua língua e da sua religião para ser levada a outro lugar. O escravo é sempre um estrangeiro. E, nesse outro lugar, ele vira coisa, é despersonalizado. Vira mercadoria, gado, no momento em que é ferrado. O ferro é a marca do imposto pago à Coroa”.

 

Gilberto Freyre, “O escravo nos anúncios de jornias brasileiros do século XIX”

Gilberto Freyre, no estudo O Escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, utiliza, para descrever os comportamentos prevalecentes nos meios urbanos e, sobretudo, analisar a origem dos africanos trazidos ao Brasil, anúncios de venda e procura de escravos. Freyre busca identificar as áreas e os povos da África que mais contribuíram para ocupar e desenvolver as diferentes regiões das Américas. A que grupos étnicos, por exemplo, pertenciam os homens e as mulheres levados à força de Cacheu para São Luís do Maranhão, e de que povos foram arrancados os cativos que se embarcaram em Luanda e que no Brasil receberam o nome genérico de angolas.

Por meio dos anúncios, no geral de escravos que se queriam recuperar ou vender, o sociólogo pode saber qual sua região de origem: parte do reconhecimento recaía sobre marcas existentes no rosto ou na testa dos africanos. Algumas, eram gravadas a ferro em brasa, de modo semelhante e, portanto, poderiam ser reconhecidas como carimbos com os quais, nos portos de embarque no outro lado do Atlântico, marcavam-se os escravos para indicar seus proprietários. Quase sempre, porém, os sinais de nação se faziam, na África, utilizando-se uma faca ou com outro instrumento cortante – incisões rasas ou profundas, que podiam ter significados diferentes de povo para povo. No Brasil, as marcas identificavam toda uma etnia; na África, acusavam o pertencimento a um estado ou grupo político.

Como diz Alberto da Costa e Silva, no prefácio [texto intitulado “A escravidão nos anúncios de jornal”]: “Os anúncios de jornais revelavam a mudança dos hábitos alimentares e a gula dos africanos.E como os escravos se vestiam. E como se comportavam. E os seus defeitos, que algumas vezes só eram defeitos aos olhos do senhor. E as suas habilidades profissionais, como as daquele escravo que era exímio músico – tocava piano e marimba – e também cocheiro e alfaiate. Mais do que qualquer outra cousa, os anúncios mostram, porém, sem o menor disfarce, a crueldade a que estavam sujeitos. Pois, neles, os escravos fugidos eram muitas vezes descritos pelos sinais dos maus​-tratos e castigos que sofriam. E também – como acentua Gilberto Freyre – pelas deformações decorrentes de excesso de trabalho, das condições anti​-higiênicas de vida e da má alimentação. O dono não tinha pejo em identificar o escravo por marcas de ferro em brasa e por sinais de tortura, como feias cicatrizes de relho, de correntes no pescoço e de ferros nos pés. Este infeliz tinha os “quartos arriados”; este outro se apresentava “rendido”, isto é, com hérnia, ou com veias estouradas; aquele com apostemas pelo corpo. Num anúncio, um senhor reclama que lhe escapou “um escravo com o olho vazado”; noutro, o desditoso tinha os artelhos comidos; em outros, faltavam ao fugitivo os dedos da mão, a mão inteira ou um pedaço do braço”.

Gilberto Freyre assim identifica costumes culturais, ou o quanto havia de raquitismo entre as vítimas da falta de higiene nos navios negreiros; confirma entre os escravos a ocorrência de ainhum, doença que causa amputação de dedos dos pés; mostra a preferência dos senhores por “escravos de tipos físicos e características culturais mais semelhantes aos da população culturalmente dominante”.

Um exemplo de anúncio, respeitando a grafia da época: “Fugio desde o dia 13 de agosto do corrente anno o escravo Luiz, com os signaes seguintes: alto e bem feito de corpo, tem dentes limados e perfeitos e o dedo mínimo do pé cortado; quando falla com mêdo é bastante gago’’.

O “lado benigno da escravidão no Brasil’’, aspecto caro à obra do sociólogo, aqui aparece revisto: o próprio autor, no prefácio à segunda edição, escreve que os anúncios “revelam o que, na verdade, houve de cruel, em contraste com aquelas evidências de benignidade”.

 

Manolo Florentino, “Em costas negras”

Manolo Florentino, na já clássica obra Em costas negras – uma história do tráfico negreiro de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX), propõe uma significativa revisão da história do tráfico negreiro escravista, analisando as estruturas política, social e econômica tanto no Brasil quanto na África, nas quais influiu o deslocamento de cerca de 10 milhões de africanos entre os séculos XVI e XIX.

Florentino investiga como os mercadores de escravos, classe social ascendente, influenciaram na própria constituição do Estado brasileiro. Sua pesquisa baseia-se em uma leitura detalhada de documentos históricos, entre listagens de navios negreiros, inventários post-mortem e registros imobiliários, submetendo-a a uma metodologia estatística que vincula necessariamente o comércio escravista a uma crescente demanda de mão-de-obra da economia fluminense.

A organização do comércio, o autor mostra, funcionava como instrumento de viabilização da reprodução física dos escravos no Brasil, e contava com a anterior produção social do cativo na África, sendo que esta dava-se por um lado através da violência – o que, em termos econômicos, efetivamente baixava os preços – e, por outro lado, em termos sociais, pela cristalização da hierarquia e das relações de poder.

Florentino prova que nenhuma outra região americana esteve tão ligada à África por meio do tráfico como o Brasil – a segunda maior área receptora de escravos negros, composta pelas colônias britânicas no Caribe, recebeu pouco menos de metade da quantidade de africanos que desembarcou no Brasil.

O que o historiador analisa é a ressignificação, tanto simbólica quanto estratégica, do Oceano Atlântico enquanto elemento de formação do território e, portanto, do Estado nacional brasileiro. As duas costas representam dois momentos de um mesmo sistema: a produção escravista americana e a reprodução de escravos do lado africano.

Na esfera da demanda brasileira, a disseminação tanto da propriedade escrava quanto do exercício de uma lógica empresarial foi, em princípio, bastante reificadora. “O tráfico atlântico passa a ser afro-americano por definição, não porque signifique uma migração forçada de africanos para a América, mas sim e principalmente porque desempenha funções estruturais nos dois continentes”, escreve Florentino.

Vencedor do Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa em 1993, foi editado a primeira vez pela Companhia das Letras e esteve durante um tempo esgotado; no ano passado, a Editora Unesp lançou nova edição.

 

 

Hebe Mattos, “Das cores do silêncio”

Das cores do silêncio, da historiadora Hebe Mattos, coincidentemente, também vencedora do primeiro lugar do Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa no ano de 1993, foi publicado em 1995. O livro lançou novo olhar sobre a trama e o drama da abolição e do pós-abolição, tendo, como foco, as aspirações de liberdade da última geração de africanos escravizados nas lavouras cafeeiras do Sudeste e de seus descendentes diretos.

As fronteiras fluídas entre escravidão e liberdade, aqui examinadas, iluminam um processo específico de racialização pelo avesso, associado às primeiras definições do cidadão brasileiro como portador de direitos civis e políticos.

Das cores do silêncio foi pioneiro em destacar o silêncio na documentação pública sobre as cores dos brasileiros livres afrodescendentes, prevalecente desde meados do século XIX. A nova edição vem acrescida de um posfácio, que busca refletir sobre a atualidade do livro para as discussões em curso hoje, no Brasil, sobre esquecimento, silêncio e memória da escravidão.

Problematizar a ausência de informação sobre a cor da população livre na documentação cartorária e judicial do Brasil oitocentista é a pedra de toque para a principal inovação empírica do trabalho, que discute os sentidos da liberdade para os escravos desde o início da escravidão, suas ações e motivações.

Com base em processos cíveis, criminais, paroquiais, de batismo, registro de nascimento, óbito e casamento dos escravos, a autora aponta relações de favorecimento, formas de acesso a terra, conflitos gerados pela Lei de Terras de 1850, a construção de identidades, suas relações, grupos sociais, étnicos, histórias de vida, dilemas e estratégias de sobrevivência.

Em entrevista à Revista de História, Hebe Mattos conta como nasceu sua pesquisa: “Eu comecei entrevistando camponeses negros, pequenos proprietários, produtores de mandioca, que falavam de seus pais, que já eram livres e que remontavam ao final do século XIX. E aquilo parecia muito surpreendente, porque eu tinha uma visão mais maniqueísta e simples da sociedade oitocentista, como se ela fosse formada apenas por escravos e grandes proprietários. Os pequenos lavradores escravistas se tornaram o tema do meu projeto de mestrado e do meu primeiro livro.  Durante a pesquisa, descobri que até 1887, naquela região de pequenos produtores, ainda tinha gente comprando e vendendo escravos. Fiquei muito surpresa com o processo todo. E então saí para o doutorado com a ideia de trabalhar, de entender melhor mesmo a experiência da escravização e o período pós-abolição, de reverter a ‘invisibilidade’ dos ex-escravos depois da abolição”.

Na mesma entrevista, Mattos diz, sobre a atualidade do passado escravo: “Hoje a questão das políticas afirmativas está na pauta do poder público e da sociedade. Eu sou francamente favorável. Acho que a sociedade brasileira tem realmente uma dívida histórica com as populações afrodescendentes. E, efetivamente, as políticas afirmativas são a única maneira não só de reparar, mas de fazê-lo de uma forma que o problema da desigualdade racial seja eliminado. Isso está começando a mudar, mas é preciso mudar muito mais aceleradamente para que a conexão entre cor e lugar social realmente se desfaça”.

A autora, especialista em história social da escravidão e do pós-abolição no Brasil, tem publicados diversos livros e artigos a respeito desse tema, entre eles Ao sul da história — Lavradores pobres na crise do trabalho escravo (1987, 2009) e Memórias do cativeiro (2005).

 

 

Florestan Fernandes, “Sociedade de classes e subdesenvolvimento”

Florestan Fernandes, em Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, analisa a emergência da revolução burguesa no Brasil, iniciada no último quarto do século XIX, com a transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Florestan mostra a singularidade da modernidade burguesa, que não rompe as cadeias do passado, mantendo com persistência as antigas relações patrimonialistas e a mentalidade tradicional – a problemática acerca da oposição e combinação das formas de relação da sociedade tradicional e da sociedade moderna.

A partir da análise sociológica da colonização e da escravidão, Florestan aponta as características específicas da formação social brasileira, bem como suas conseqüências para a formação das classes sociais, e de suas dinâmicas, no país. Para ele, os padrões assimétricos das relações raciais no Brasil foram incorporados ao regime de classes; as desigualdades presentes nas relações raciais do passado escravista foram reabsorvidas e redefinidas com o advento do trabalho livre e das novas condições histórico-sociais. Por isso, o estudo do sociólogo, sobre a sociedade de classes, parte da análise da anterior desagregação da formação social.

Segundo Florestan, portanto, as heranças coloniais balizam as relações internas de exploração. E balizam também a relação que o Brasil estabeleceu com a economia capitalista mundial.

O período escravista, diz, teve importância para a ascendente burguesia enquanto momento de acumulação de capital; o fim do pacto colonial e a continuidade de tal relação de trabalho propiciaram o início de uma acumulação interna de capital, sendo, portanto, importante instrumento para os setores dominantes. Por outro lado, porém, a herança escravista e a lenta transição do trabalho escravo para o trabalho livre criaram uma população de ex-escravos que teve o pior ponto de partida possível numa sociedade de classes, pois não foi socializada para a nova relação de trabalho, contratual. A consequência foi, no “meio negro”, a formação de uma população em estado de pauperização, alheia à ordem social competitiva. Isso causou um impacto importante no processo histórico de formação da classe trabalhadora no Brasil

A herança escravista e a não socialização dos ex-escravos para o mercado de trabalho, portanto, bem como o código moral fundado na “inferioridade do negro”, formam um complexo de processos relevantes na análise da dificuldade de articulação das classes subalternas em relação ao poder. A sociedade de classes capitalista deu prosseguimento a uma rígida estrutura social, aplicada a impedir a conquista de espaço político pelas classes subalternas, para a manutenção do sistema econômico. Pois o processo de formação da burguesia é também a perpetuação da estrutura de poder que manteve as vantagens da modernização fechadas a uma única classe; dessa forma, o regime de classes no Brasil estruturou-se sobre padrões previamente definidos, de extrema desigualdade econômica, sociocultural e política. Florestan destaca o paralelismo entre raça e classe existente no Brasil por conta da herança escravista. Diz ele: “as funções construtivas do regime de classes são profundamente afetadas pelo grau de coesão e de continuidade das formações sociais anteriores à emergência e à consolidação do capitalismo”. Para as classes subalternas, portanto, esse processo de consolidação da burguesia foi trágico, pois instaurou um circuito político de esmagamento.

 

 

 

As relações de poder são sociais, mas também culturais; o desenraizamento, o esfacelamento do sujeito, o subjugo pela violência: a impotência do escravo, destituído inclusive de humanidade, atesta sua morte social.

Casa grande e senzala (1933), de Gilberto Freyre, é o primeiro estudo de peso a defender a miscigenação como um dado positivo da formação do povo brasileiro. Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr., investigou o sentido do colonialismo e apontou, como causa do atraso brasileiro dentro da economia mundial, o problema de estar, a economia brasileira, baseada, desde o período colonial, na grande propriedade agrícola monocultora e exportadora. O terceiro estudo historiográfico a romper com as então tradicionais visões racistas das análises sociológicas e históricas, foi Raízes do Brasil (1936), de Sergio Buarque de Holanda, que encontra a causa do atraso do país no patrimonialismo português e suas consequências, como o clientelismo.

A dimensão do papel efetivamente exercido pela influência negra na formação cultural é em grande medida submetida à dimensão de interferência da cultura dominante na vida do negro. Consequentemente, porém, na cultura nacional como um todo.

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Hoje, dia 27 de fevereiro, o professor Luiz Felipe Alencastro inaugurou os encontros que o agradável espaço Tapera Taperá propõe fazer aos sábados de manhã.

A fala de Alencastro, cuja erudição natural torna sua exposição clara e precisa, perpassou uma profunda análise sobre a importância geopolítica global do domínio do Atlântico Sul, enquanto eixo econômico mundial. Alencastro expandiu a dimensão histórica da escravidão e do tráfico negreiro, mostrando, através da exibição e análise de informações extraídas do maior banco de dados existente sobre o tema, o “slave voyages[i], o quão maior foi o número de africanos escravizados trazidos ao Brasil, em relação ao resto da América. No Brasil, de acordo com o professor, entrou um número 6,5 vezes maior de africanos do que de portugueses. A rota atlântica era tão importante, que entre os principais portos de comércio brasileiros, estava o porto de Liverpool; e, entre os principais países que recebiam prata extraída da América, figurava a China. Era uma rota de importância geopolítica e econômica global[ii].

O legado da escravidão para a formação social brasileira, para a construção da identidade cultural, foi a instauração, arraigada historicamente, de uma dinâmica do racismo, de uma reprodução secular de privilégios racistas. As cotas, nesse sentido, diz o professor, são um trunfo. Não se trata de pagamento a uma dívida histórica; os índios precisariam entrar também numa conta destas. Trata-se, nas suas palavras, de uma questão de fazer funcionar a democracia.

 

 

Notas.

[i] Banco de dados que disponibiliza os resultados de pesquisas sobre as rotas atlânticas dos navios negreiros.

[ii] A questão sobre o domínio do Atlântico Sul e sua relevância geopolítica ainda é extremamente atual, seu território ainda é motivo de disputa econômica global. A construção do novo canal, na Nicarágua, tem sido vastamente patrocinada pela China, pois possibilitará a intensificação de sua presença nos portos atlânticos. E os Estados Unidos, por sua vez, instalaram uma frota naval, completa, no Atlântico Sul e são dos únicos países do mundo a não reconhecerem a legitimidade da pertença da região marítima em que descobriu-se o pré-sal, ao território brasileiro.

 

 

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Nota geral.

Hansen Bahia, xilogravura da série “Navio negreiro”

O artista expressionista alemão Hansen Bahia realizou uma série de xilogravuras à guisa de ilustração do poema de Castro Alves, “Navio negreiro“.

Hansen, aportado na Bahia, no início da segunda metade do século XX, deparou-se com a tragicidade de uma pobreza alastrada e conformada, colonialmente herdada e ramificada nos confins das bases das estruturas sociais A dramaticidade social é sentida na pele dos escravos, nas representações da série que, feita a partir do poema homônimo, carrega toda a aspereza, animalização e violência do tráfego negreiro. As figuras são fortes, mas quase indistinguíveis, simiescas, amontoadas, algemadas. Uma narrativa visual asquerosa porque histórica, contada com a sinceridade que a gravura em madeira pôde imediatamente representar. Cada talho na madeira parece sentir o horror dos porões dos navios negreiros.

A publicação do poema ilustrado pelas gravuras de Hansen Bahia ocorreu em 1979, com o título Navio negreiro – Tragédia no mar. Há raros exemplares à venda em sebos.

 

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