Literatura

Dentro dos gritos

27 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

[…] O medo de tudo, algo distinto e ao mesmo tempo inseparável da própria vida. Encarniçado. Não se pode escrever sem a força do corpo. É preciso ser mais forte do que si mesmo para abordar a escrita. […] É uma coisa curiosa um escritor. Uma contradição e também um absurdo. Escrever é também não falar. É se calar. É berrar sem fazer barulho. É muitas vezes o repouso de um escritor, e ele tem muito a ouvir. Não fala muito porque é impossível falar com alguém de um livro que se escreveu e sobretudo de um livro que se está escrevendo. É impossível. É o contrário do cinema, o contrário do teatro, e de outros espetáculos. É o contrário de todas as leituras. É o mais difícil de tudo. É o pior. Porque um livro é o desconhecido, é a noite, é fechado, é assim. É o livro que avança, que cresce, que avança nas direções que se supõem exploradas, que avança para o seu próprio destino e do seu autor, agora aniquilado pela sua publicação: a separação entre os dois, o livro sonhado, como a criança recém-nascida, sempre a mais amada. Um livro aberto é também a noite. Não sei por que, estas palavras que acabei de dizer me fazem chorar. Escrever apesar do desespero. Não: com desespero” – Marguerite Duras.

cena de "Hiroshima mon amour"

cena de “Hiroshima mon amour”

Os Cadernos de guerra de Marguerite Duras são uma espécie de campo arqueológico literário.  O volume, que inclui também alguns textos inéditos, foi publicado postumamente e reproduz boa parte de quatro cadernos que a escritora manteve no início de sua carreira, entre 1943 e 1949, durante a Segunda Guerra Mundial. Ao longo dos textos selecionados dentre os quatro cadernos, o leitor encontra relatos biográficos da infância passada na então Indochina, que influenciaram a concepção de romances como O amante, ou Barragem contra o Pacífico e A dor e que podem ser considerados como suas matrizes.

O viés assumidamente autobiográfico da prosa de Marguerite Duras concede um valor especial aos cadernos, que tornam-se parte integrante e norteadora de um todo, que abarca seus romances, ensaios, peças de teatro, roteiros de cinema. Aparecem nos textos as dores e as humilhações da infância passada numa família violenta, o amante chinês rico cuja relação com a menina de quatorze anos a mãe incentivava, a espera pelo marido preso num campo de concentração nazista, a morte do primeiro filho.

Em artigo escrito ao jornal El País, o crítico Octavi Martí – segundo tradução portuguesa de Luiz Roberto Mendes Gonçalves – analisa: “Os cadernos que aparecem agora privam a mãe dessa grandeza de loucura de tragédia grega e a mostram como uma lutadora desequilibrada, como alguém que não suporta a menopausa, que tem grandes dificuldades para controlar filhos e criados, alguém que empurra sua filha para a prostituição para que seu amante lhe pague, a ela também, noites de álcool em Saigon, longe da casa em ruínas que não fica em frente ao Pacífico, mas diante do mar da China. “Minha mãe foi para nós uma vasta planície pela qual erramos durante muito tempo sem encontrar sua dimensão”, escreve Marguerite, referindo-se à difícil relação entre a mãe e seus filhos. A vergonha da pobreza, de ser uma francesa colonizadora pobre, aparece em todas as notas de Duras. “Era a podridão de Saigon”, diz sobre si mesma, repetindo alguns rumores segundo os quais “me deito com os indígenas”.

Segundo análise do professor de literatura Adriano Schwartz, em resenha escrita para o jornal Folha de São Paulo, o volume “funciona simultaneamente como porta de entrada e “porta de saída” da imensa obra literária de Marguerite Duras”. Para Schwartz há no livro “passagens primorosas, como esta, do segundo caderno, reaproveitado depois em A Dor, que narra a volta do marido de um campo de concentração em que estivera cativo: “Não seria uma coisa extraordinária se ele voltasse. Atenção: não seria extraordinário.
“Alô?” “Quem é?” “Sou eu, Robert”. Seria normal e não extraordinário. Tomar cuidado para não fazer disso um acontecimento que pertença ao extraordinário, o Extraordinário é um mal-entendido. Ser razoável. Eu sou razoável. Espero por Robert, que deve voltar. O telefone: “Alô.” “Alô, você tem notícias?” Dois tempos. O primeiro: acontece que o telefone toca, não é inútil esperar que ele toque, um telefone serve para tocar. O segundo: merda. Vontade de vomitar”.

No Brasil, o livro foi publicado pela Estação Liberdade, em 2009, oib tradução de Mário Laranjeira.

 

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Trecho

 

Não quero explicar-me. É assim para mim e para meus dois irmãos, que viveram os mesmos anos. Essa infância me perturba, entretanto, e acompanha minha vida como uma sombra. Não me atrai por seu encanto, pois não tem nenhum a meus olhos, mas sim, ao contrário, por sua estranheza. Ela nunca condicionou minha vida. Foi solitária e secreta – ferozmente guardada e sepultada em si mesma durante muito tempo.

Eu a direi ao sabor do vento que sopra em mim quando a sinto invadir-me e obsedar-me como uma aventura esquecida – e não esclarecida.

Não tive longos anos de hábitos, nem aquela doçura que deriva deles e de seu ritmo, de sua lentidão para se apartar do tempo, para fazer o seu encanto. Não, nada disso eu tive, não tive nem casa familiar, nem jardins conhecidos, nem sótãos, nem avós, nem livros, nem aqueles colegas que a gente vê crescer. Nada disso. Você se pergunta o que resta? Resta minha mãe. Por que me esconder isso?

É a história dela que quero dizer, o espantoso mistério nunca conhecido, esse mistério que foi por muito tempo minha vida, a minha dor, onde eu me reencontrava sempre e de onde fugia frequentemente para voltar a ele.

Minha mãe foi para mim uma vasta planície onde caminhamos por muito tempo sem encontrar sua medida. Não a vejo de forma alguma com aquele halo de doçura e vigilância que anda ao lado dessas recordações quando a gente as segue. Aliás, não é uma recordação. É uma vasta caminhada que nunca terminou.

Ignoro sua vida de mulher, de moça, de esposa. Vejo-a nossa mãe, é só isso.

Aqui eu paro, pois gostaria de poder dizer o que foi e o que continua sendo essa maternidade – e as palavras parecem-me inexistentes. Gostaria, para vê-la, de afastar-me dela, rechaçar por um momento essa atualidade absorvente que ela continua sendo. Aí está: ela devia ser muito impura antes de nós, impura de tanta paixão humana não santificada. É tudo o que posso dizer.

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cadernos

 

CADERNOS DE GUERRA

Autor: Marguerite Duras
Editora: Estação Liberdade
Preço: R$ 44,10 (384 págs.)

 

 

 

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