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Diários políticos

21 maio, 2015 | Por Isabela Gaglianone

fotografia de Beatriz Sarlo durante viagem pela América Latina [fonte: Clarín]

Foram divulgados os nomes dos autores convidados a participarem da FLIP deste ano. A Abertura da Festa Literária, ano dia 1° de julho, caberá à mesa dividida pela ensaísta argentina Beatriz Sarlo, pela professora de literatura Eliane Robert Moraes e pelo filósofo Eduardo Jardim, que comentarão as cidades e o erotismo que marcam a obra de Mário de Andrade.

Beatriz Sarlo tem alguns livros publicados no Brasil. 

Um deles, o envolvente A cidade vista – Mercadorias e cultura urbana [WMF Martins Fontes, 2013], que, a partir de meandros inusitados de Buenos Aires e da cultura portenha, perpassando lugares incomuns da cidade e analisando seus significados e suas decorrências em relação a resultados da crise econômica, realiza uma análise sociológica riquíssima, Outro livro interessante de Sarlo, Tempo passado – Cultura da memória e guinada subjetiva, publicado pela Companhia das Letras em 2007 mas infelizmente há muito esgotado, debruça-se sobre o modo como se reconstituiu a história da ditadura militar, sobretudo na memória que dela se cria através da voz de suas vítimas. Nele, a autora reúne uma profusão de relatos, depoimentos e testemunhos dos anos de transição democrática, não só na Argentina, como em outros países latino-americanos. Seu texto, profundo, evidencia a fundamental relevância do testemunho em primeira pessoa para a reconstituição histórica do passado, fundamentando sua pesquisa em trabalhos teóricos sobre cultura e historiografia, numa linhagem teórica que perpassa Walter Benjamin e Agamben, Starobinski e Paul Ricoeur.

Sarlo é atualmente renomada intelectual e uma das mais ferrenhas opositoras ao kirchnerismo. Em sua juventude, percorreu a América Latina de mochila, em busca de um espírito revolucionário que julgava latente por todo o continente. Essas viagens deram origem ao livro Viajes – De la Amazonia a las Malvinas [Seix Barral, 2014, importado]. Sobre o volume, a ensaísta comentou, em entrevista concedida a Sylvia Colombo e publicada na Folha de São Paulo no ano passado: “Eu acreditava, com ingenuidade, que minhas viagens por esses territórios me permitiam conhecer, em seu próprio teatro, os futuros sujeitos de uma revolução continental que julgava tão inevitável como próxima.
“Acreditava na autenticidade desses sujeitos e, mais, que meu olhar ia poder descobri-los. Sem ter lido Walter Benjamin, confiava na aura da experiência direta, em seu potencial de empatia. Não duvidava que era possível comunicar-me com etnias amazônicas ou mineiros bolivianos ou camponeses do altiplano, inclusive quando não falava suas línguas nem conhecia sua cultura.
Pensava que entre eles e eu, uma universitária, não houvesse um abismo cultural. E se esse abismo se manifestava, minha aposta era que a experiência direta era capaz de tapá-lo. Tinha uma confiança cega na experiência. Isso me permitiu um conhecimento que só décadas depois pude organizar numa narrativa
. Sylvia Colombo analisa: “O tom não é de desilusão, mas trata-se, sim, de um registro autobiográfico cheio de emoção e autocrítica”.

Por isso, na FLIP, Beatriz Sarlo também participará de outra mesa, no dia 4 de julho, sobre justamente esse tema que lhe é especialmente caro: o diário de viagem. A ideia da mesa, no contexto de sua homenagem a Mário de Andrade, é travar um diálogo com o livro O turista aprendiz [Duas cidades, 1976].

Um trecho do livro Viajes foi publicado na edição da revista piauí deste mês, sob tradução de Sérgio Molina e Rubia Goldoni [a tradução completa do livro deve ser publicado no Brasil em breve pela editora e-galáxia]. O trecho refere-se à ida de Beatriz Sarlo às Malvinas, sobre a qual, na entrevista já referida acima, ela comenta, quando questionada sobre a inclusão deste texto ao livro, uma vez que há um salto de tempo grande entre esta viagem, feita em 2013, e as outras, realizadas pela América Latina nas décadas de 1960 e 70: Essa viagem recente foi tão importante como a dos anos de minha formação. Fui às ilhas como jornalista, mas escolhi hospedar-me na casa de uma família, em Stanley (Puerto Argentino, a capital). Entrei em contato com uma cotidianidade da ilha que nunca pude imaginar. Encontrei uma espécie de aldeia do norte da Inglaterra, com dois pubs, um proletário, outro de classe média, seus jogos de dardos e suas mesas de bilhar, com sua igreja e uma escola grande, com largos corredores com janelas dando para a baía. Nas margens, um bulevar marítimo onde os monumentos lembram batalhas e a vitória sobre a invasão argentina. No respaldo de um banco desse passeio está gravada a inscrição: “do mar, a liberdade”. Os dias que passei nas Malvinas me permitiram entender que essas ilhas tinham uma autonomia cultural e linguística. Essa compreensão é essencial para mitigar qualquer nacionalismo argentino. Por tudo isso incluí essa viagem. E também porque, talvez, seja a última viagem importante de minha vida”.

No texto em questão, sobre a viagem às ilhas, sua impressão é uma reflexão polivalente, fruto do embate entre sensações políticas, históricas, sociais e pessoais. Como introdução, Sarlo conta: “Nunca pensei em viajar para as Malvinas. A ocupação argentina de 1982 foi um dos episódios mais traumáticos da minha experiência política durante a ditadura. Eu me opus à operação naquele momento, quando se opor implicava fazer parte de um grupo quase invisível. […] A questão das Malvinas continuou a me perseguir durante muitos anos, e eu continuei a criticar o triunfalismo cego e o nacionalismo sem princípios. Nunca me senti mais distante do país onde vivia do que naqueles meses em que tudo foi eclipsado pela ilusão de que, guiada pela ditadura, a Argentina estava derrotando a Grã-Bretanha. Essa fantasia coletiva foi meu pesadelo”. O referendo realizado em março de 2013 foi o motivo que impulsionou sua viagem. O que ela viu lá durante os dias de estadia, a fez compreender a cultura e a sociedade das ilhas e dos ilhéus, sua leitura da própria história enquanto povo autônomo. Em dado momento final de sua estadia, conclui: “Sou uma estrangeira: não tenho origem britânica nem venho das ilhas do Atlântico Norte; ninguém poderia me confundir com uma habitante de Stanley. Tampouco eu poderia me imaginar aqui, como podemos nos imaginar em lugares por onde passamos, até mesmo os menos diferentes do lugar de origem. Tenho a permanente sensação de entender e de não entender. Sou um mal-entendido também para os outros, que me entendem, mas nunca sei até que ponto entendem a razão da minha vinda, da minha simpatia por seu direito de decidir. Eu mesma não sei se defendo esse direito porque uma ditadura na Argentina me obrigou a defendê-lo. Quer dizer, então – paradoxo final –, que a ditadura me obrigou a entender esses ilhéus. É o que nós temos em comum”.

 

viajes

 

 

VIAJES – DE LA AMAZONIA A LAS MALVINAS

Autor: Beatriz Sarlo
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 22,21 [e-book]

 

 

 

 

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