“Sei que neste quarto-desamparo procuro levar a imaginação até seu limite — jeito de driblar entre aspas desintegração contínua das minhas entranhas”.
Os piores dias de minha vida foram todos, novo livro de Evandro Affonso Ferreira, fecha a sua trilogia do desespero, iniciada por Minha mãe se matou sem dizer adeus [Record, 2010] e O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam [Record, 2013].
A forte narrativa do livro é conduzida pelo diálogo imaginário da narradora: uma mulher que, em um leito de UTI, delira que caminha nua pelas ruas da metrópole e cita Antígona, de Sófocles. Em meio ao seu alucinante solilóquio, a desesperançada personagem observa a vaidade humana enquanto relembra suas perdas e a relação com o amigo escritor falecido.
Segundo o autor, como disse ao jornal O Globo, sua produção literária divide-se em duas partes, antes e depois de Minha mãe se matou sem dizer adeus: “Antes eu me preocupava com a vida da palavra. Agora eu me preocupo com a morte do homem”. No mesmo artigo, o crítico Alcir Pécora, professor de teoria literária da Unicamp, analisa: “Evandro é um escritor de estilo, antes de escritor de histórias. Ele se comporta diante de suas frases como um domador diante da onça. Gosta de cutucar e ver até onde vai dar e sabe que vai se ferir no processo. Nos últimos livros, o acento paradoxalmente irônico e patético tem se intensificado, de modo que uma afetividade tristonha tinge a graça do estilo com uma melancolia cada vez mais palpável”. Para o professor, sua escrita é “basicamente exercício de estilo, escrita como comentário de escrita”. Pécora ainda avalia: “Gosto especialmente dos momentos em que Evandro é duro consigo mesmo e não se deixa satisfazer com as suas conquistas. Um escritor tem de criticar constantemente as próprias conquistas sob pena de afundar junto com elas. Aquilo que ele acerta uma vez não pode se tornar um padrão. É quase o contrário: onde acertou, está obrigado a encontrar novas zonas de indeterminação, insegurança, risco. No caso do Evandro, cuja invenção está baseada no exercício estilístico, na frase lapidar, no léxico explosivo e farfalhante, ele tem de permanecer em constante busca, para que a invenção não se torne apenas maneirismo ou um método de rebuscamento formal”.
De acordo com Júlia Studart, poeta e professora da Escola de Letras da UniRio, em resenha também publicada no jornal O Globo, nos livros de Evandro “a imaginação se constitui como uma atividade libertadora para o corpo”. De acordo com a crítica, a narradora de Os piores dias de minha vida foram todos, doente, “segura o corpo num exílio forçoso, porém convicto com a imaginação”. Para ela, “esse modo de exílio já está em todos os livros anteriores, desde “Grogotó!” (2000), quando nos apresenta seu móbile de desespero a partir das vidas desengraçadas de seus personagens, uma espécie de estado de tensão recorrente em que lança todos eles. E mais interessante que, num excesso de imaginação próprio dos infames, quase todos têm obsessão severa pela coleção despedaçada. Assim, o traço miniaturizado que entra em cena como ação e gesto nesses personagens, para deslocar seus corpos inoperantes, é a composição de um catálogo de fracassos, de sobras etc., numa tentativa de “rastrear as próprias perdas, para escapar às armadilhas da solidão”.
Segundo Márcia Tilburi, em resenha publicada na Revista Cult, não se trata de uma prosa pessimista: “Niilismo também não seria a marca dessa aprendizagem da morte acalentada pelo maravilhoso exercício de estilo que caracteriza a obra de Evandro. No aspecto relativo ao conteúdo, tampouco se pode dizer que há, nesse livro, algo de descaso, de cansaço, ou de desistência em relação ao viver. Há, é certo, o direito à morte de que falava Maurice Blanchot. Aquele direito à morte que, nos tempos da imortalidade de plástico que estamos experimentando, constitui uma resistência mais do que estética”. De acordo com Tilburi, trata-se da dignidade ante a morte, decorrente do desespero humano que, consciente de si, dignifica a vida. O livro explica-se por si mesmo “na escolha por Antígona como um personagem ideal. Antígona é a metáfora viva, a alma imortal que sobrevive em nossa história simbólica, a preservar nosso direito à sepultura. A sepultura como metáfora do direito à dignidade. O direito a ser quem se é, o direito de ter um lugar, o direito ao respeito mesmo quando não se pode esperar mais nada, pois que se está morto. O direito, portanto, fora de toda utilidade, fora de toda relação que não comporte senão a dádiva, aquilo que podemos conceder a quem não está mais entre nós. Só o que nos pode ser concedido quando já não somos. E, com Antígona, trata-se também do direito à literatura como batalha pelo que nos dá dignidade, o direito a ir contra toda lei abstrata que nos humilha anatomopoliticamente ou biopoliticamente, em nossos corpos vivos tratados como coisas de plástico. Contra a lei da publicidade, contra o capitalismo e sua lógica de extermínio. É disso que esse livro fala. Do direito, portanto, de ter um corpo que não encarna o poder, que não se submete. Que, antes, combate o poder em si mesmo”.
OS PIORES DIAS DE MINHA VIDA FORAM TODOS
Autor: Evandro Affonso Ferreira
Editora: Record
Preço: R$ 30,00 (128 págs.)