O que é o real? – é a questão que propõe o filósofo francês Alain Badiou no livro Em busca do real perdido, recentemente lançado no Brasil pela editora Autêntica, com tradução de Fernando Scheibe.
De acordo com Gilson Iannini: “Hoje em dia, o real aparece sempre como aquilo que intimida. Não temos como escapar do real, ele está aí, impõe-se a nós como uma lei inexorável. Por uma ironia da história, quem pretende deter os segredos do real no mundo contemporâneo são os economistas, que o apresentam para nós através de planilhas, gráficos e números pretensamente objetivos, que diriam a última palavra sobre o real. As projeções econômicas apresentam-se, em geral, como catástrofe: caso seus modelos não sejam implementados, tudo pode ruir. Apesar da sua total incapacidade não apenas de prever, mas ainda de compreender os desastres que ela mesma produz, a economia sobrevive à sua própria impotência, porque todos, ou quase, parecem continuar acreditando na peça representada em escala planetária pelo capitalismo”.
Alain Badiou articula o teatro, a psicanálise e a poesia à filosofia, para investigar os impasses da apreensão do real. A questão filosófica do real, segundo ele, centra-se na possibilidade, ou não, de modificar o mundo, tornando suas fissuras visíveis. O conciso e elegante ensaio desenvolve um tema filosófico tradicional, o mito platônico da caverna e as complexas relações entre essência e aparência. Sua intervenção na discussão é esta resposta original, teórica e política, aplicada em chave lacaniana. O real avança mascarado e, se sua máscara cair, poderemos ver a realidade.
Analisando a democracia, Badiou discute a antiga contraposição entre democracia formal de uma real. Segundo Jose Fernandez Vega, em resenha publicada na Revista Ñ do jornal argentino Clarín, “a democracia atualmente existente é uma mera faceta do capitalismo, que é o real. Trataria-se, então, de tornar novamente real a democracia, mas sem a confiança marxista em uma marcha histórica necessariamente aliada à essa difícil empreitada. Frente a um comunismo tradicional confiante no progresso ascendente da história até a igualdade, Badiou propõe um comunismo passional. Se no cinema ‘o real’ é tudo aquilo que fica fora do campo que a câmera capta, na política seria o espaço que se estende fora do Estado, ou seja, do âmbito da democracia formal, mera faceta dos negócios e da corrupção generalizada. E é neste terreno que se deve contrapor ao capitalismo com sua impossibilidade fundamental: a igualdade.
A paixão pelo real – por uma religião verídica que afirma a existência de uma verdade – caracterizou o século XX. a consequência foi a disseminação de uma épica que resultou sangrenta e acabou desprestigiada. A lição do século passado é que aqueles que buscavam a igualdade – o real – só encontraram tragédias. O melhor então seria confiar nos prognósticos econômicos que pressagiam desenvolvimento e justiça futuros enquanto a política (e a sociedade) paga por uma corrupção irremediável e, ainda que prorrogada, apenas episódica. Entretanto, pode-se viver ao abrigo do real, entregados ao consumo e ao que Pascal já denominava ‘divertimento’, a indústria do entretenimento massivo”.
De acordo com Vladimir Safatle, em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, “Badiou sabe que falar de felicidade em eras atuais não é um exercício simples. É da felicidade e do direito em procurá-la que mais dissertam os conselheiros midiáticos, psicólogos, publicitários, assim como todos os arquitetos simbólicos da ideologia liberal contemporânea. Por que um dos filósofo mais relevantes do cenário atual, reconhecidamente radicalmente avesso a tal universo, resolveria falar da felicidade com a qual uma certa filosofia nos afetaria, desta ‘felicidade real’?
Certamente porque um dos eixos fundamentais da experiência intelectual de Badiou pode ser descrita como uma filosofia do engajamento (tema que ele trouxe de Sartre) e da transformação. Perguntando-se sobre as condições para uma filosofia capaz de pensar acontecimentos que nos engajam em verdades com a força de romper a normalidade de uma situação, filosofia capaz de reconhecer sujeitos que não se configuram como indivíduos com seus sistemas particulares de interesses e sua lógica de maximização utilitarista de benefícios, Badiou precisa se perguntar sobre o que leva os indivíduos que nós nos tornamos a se disporem a experiências de forte potencial de transformação e de destruição”.
Ainda nas palavras de Safatle, a reflexão de Badiou “visa problematizar os afetos do indivíduo moderno, todos eles submetidos a um cálculo de ‘custos e benefícios’. Desta forma, trata-se de insistir que somos, muitas vezes, impulsionados pelo que nos desacostuma de nossa finitude e que se apresenta a nós através de amores intensos que nos despossuem, obras de arte inovadoras que quebram a capacidade de esquematização de nossa imaginação, políticas revolucionárias que nos fazem recusar um mundo que teima em não morrer e saberes científicos complexos, ou seja, através de acontecimentos que, ao mesmo tempo, instauram novas sequências e destroem o que até então vigorou como condições de possibilidade da experiência”.
_____________
.trecho.
Hoje, o real, como palavra, como vocábulo, é utilizado essencialmente de maneira intimidante. Devemos nos preocupar constantemente com o real, obedecer a ele, devemos compreender que não podemos fazer nada contra o real, ou – os homens de negócios e os políticos preferem esta palavra – as realidades. As realidades são impositivas e formam uma espécie de lei, da qual é insensato querer escapar. Somos atacados por uma opinião dominante segundo a qual existiriam realidades impositivas a ponto de não se poder imaginar uma ação coletiva racional cujo ponto de partida subjetivo não seja aceitar essa imposição.
Pergunto-me então diante de vocês: a única resposta possível para a questão “O que é o real?” deve assumir como evidência que só se pode falar do real como suporte de uma imposição? O real nunca é encontrado, descoberto, inventado, mas sempre fonte de uma imposição, figura de uma lei de bronze (como a “lei de bronze dos salários”, ou a “regra de ouro” que proíbe qualquer déficit orçamentário)? Será preciso aceitar como uma lei da razão que o real exige em toda e qualquer circunstância uma submissão mais do que uma invenção? O problema é que, em se tratando do real, é muito difícil saber como começar. Esse problema atormenta a filosofia desde suas origens. Onde começa o pensamento? E como começar de maneira que esse começo ajuste o pensamento a um real de verdade, um real autêntico, um real real?
Por que é tão difícil começar quando se trata do real? Porque não se pode começar nem pelo conceito, a ideia, a definição, nem pela experiência, o dado imediato ou o sensível. É fácil demonstrar que começar pela definição, o conceito, a ideia leva a uma construção que é na verdade o contrário do que acredita ser, que é uma perda ou uma subtração do real. Afinal, como posso alcançar o real, encontrar a prova do verdadeiro real, se me instalei justamente, e de maneira peremptória, naquilo que aceita existir – ao menos aparentemente – sem prova do real, ou seja, justamente a ideia, o conceito ou a definição? A simples realidade do conceito não pode valer como uma autêntica prova do real, já que, precisamente, supõe-se que o real seja aquilo que, à minha frente, resiste a mim, não é homogêneo a mim, não é imediatamente redutível a minha decisão de pensar. Quando muito, posso pretender formular, com semelhante ponto de partida, uma hipótese sobre o real, mas não uma apresentação do próprio real. Assim, a filosofia, exageradamente racional, ou tentada pelo idealismo, careceria de real, porque em sua própria maneira de começar ela o teria rasurado, obliterado, dissimulado sob abstrações fáceis demais.
Ora, assim que se diagnostica esse defeito, essa falta idealista de uma prova do real, é o real como imposição que vai voltar. O poder de intimidação do uso da palavra “real” vai levantar precisamente o “concreto” como bandeira. Vai se opor à mania idealizadora, que costuma ser chamada hoje de utopia criminosa, ideologia desastrosa, devaneio arcaico… Todos esses nomes estigmatizam a fraqueza da tese que pretenderia começar a busca pelo real com a figura da abstração. Ao que oporão então um verdadeiro real, autêntico e concreto: as realidades da economia do mundo, a inércia das relações sociais, o sofrimento das existências concretas, o veredicto dos mercados financeiros… Oporão tudo isso, que efetivamente tem um grande peso, à mania especulativa, à ideocracia militante, que – dirão – nos meteu em tantas aventuras sangrentas ao longo do século XX.
Há algo que, desse ponto de vista, desempenha hoje um papel decisivo: o lugar ocupado pela economia em toda e qualquer discussão que diga respeito ao real. Parece até que o saber do real foi confiado à economia. É ela que sabe.
E, no entanto, tivemos, não faz muito tempo, diversas oportunidades de constatar que ela não sabia grande coisa, a economia. Ela não sabe nem sequer prever desastres iminentes em sua própria esfera. Mas isso não mudou quase nada. É ainda e sempre ela que sabe o real e o impõe a nós. É aliás muito interessante constatar que a função da economia em relação ao real sobreviveu perfeitamente à sua incapacidade absoluta não apenas de prever o que ia acontecer, mas até mesmo de compreender o que estava acontecendo. Tudo indica que, no mundo atual, o discurso econômico se apresenta como o guardião e o fiador do real. Enquanto as leis do mundo do Capital continuarem sendo o que são, a prevalência intimidante do discurso econômico não será desbancada.
[fragmento de trecho divulgado pelo Suplemento Pernambuco em 20/janeiro/2017]
_____________
Autor: Alain Badiou
Editora: Autêntica
Preço: R$ 25,60 (64 págs.)