O romance Nove noites, com o qual o escritor Bernardo Carvalho ganhou o Prêmio Portugal Telecom em 2003, acaba de ser reeditado pela Companhia das Letras.
Trata-se da narrativa de como, na noite de 2 de agosto de 1939, o jovem e promissor antropólogo americano Buell Quain, suicidou-se de maneira violenta, enquanto tentava voltar para a civilização, vindo de uma aldeia indígena no interior do Brasil. Quain tinha então 27 anos e o caso chocante de sua morte jamais encontrou explicação e logo caiu no esquecimento.
O narrador do romance descobre por acaso a história ao ler um artigo de jornal, mais de sessenta anos depois do acontecido. Torna-se, desde aquele momento, para ele, uma verdadeira obsessão a tentativa de desvendar a motivação do suicídio e suas verdadeiras circunstâncias. O narrador vai reconstruindo a história do antropólogo seguindo, como pistas, algumas de suas cartas e um testamento, de um engenheiro de quem Quain ficara amigo meses antes de sua morte. A história é contada em dois tempos, unindo à pesquisa dessas pistas escritas, o conhecimento da tribo dos índios Krahô, no interior do sertão brasileiro.
Nove noites traça, assim, o percurso daquele jovem expoente da antropologia americana, colega de Lévi-Strauss e aluno dileto de Ruth Benedict, às vésperas da Segunda Guerra.
Para escrever o livro, Bernardo Carvalho travou de fato contato com os Krahô, no Estado do Tocantins, e para aprofundar sua pesquisa foi aos Estados Unidos em busca de documentos e pessoas que pudessem saber algo sobre o antropólogo. A história de Buell Quain revela as contradições e os desejos de um homem sozinho numa terra estranha, confrontado com os seus próprios limites e com a alteridade mais absoluta.
À ficcionalização do caso real, por si só uma narrativa muito interessante, o autor ainda contrapõe a própria história do narrador, que coincidentemente também perdera o pai, morto na região do Xingu, onde possuía uma fazenda. O romance, múltiplo, recompõe em sua própria prosa a trama misteriosa do interior da floresta e seu reflexo nas angústias e desesperos humanos.
Em entrevista realizada à revista Trópico pelo crítico Flávio Moura, Bernardo de Carvalho diz, sobre a distinção entre ficção e realidade em Nove noites: “A indistinção entre fato e ficção faz parte do suspense do romance. Por isso não vejo sentido em dizer o que é real e o que não é. Isso tem a ver com meus outros livros. Também neles há um dispositivo labiríntico, em que o leitor vai se perdendo ao longo da narração. Nesse caso isso fica mais nítido porque existem referências a pessoas reais. Mas mesmo as partes em que elas aparecem podem ter sido inventadas. Em última instância, é tudo ficção.
“Quando eu mostrei o livro à editora, eles ficaram apreensivos com a possibilidade de alguém me processar. Então consultaram um advogado. Ele leu o livro e disse que apenas uma pessoa poderia entrar na justiça contra mim. Mas esse perigo eu não corria, porque, de todas as que ele analisou, aquela era a única que tinha sido inventada. Foi aí que percebi que o livro estava funcionando como ficção.
“Tem mais um ponto a esse respeito. Você nunca sabe se os índios estão inventando ou dizendo a verdade. Não dá para confiar em nada. O cara te diz uma coisa hoje, depois é outra completamente diferente. É uma forma de narrar estranha, você não sabe se ele está querendo agradar, se está dizendo aquilo só porque acha que você quer ouvir. O fato é que você nunca sabe onde está pisando. De certa maneira, esse livro é uma literatura à maneira dos índios, pois mantém essa dúvida para o leitor”.
Autor: Bernardo Carvalho
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 27,93 (176 págs.)