Guia de Leitura

Os cinco romances da maturidade de Dostoiévski

14 dezembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski nasceu em Moscou, em 30 de outubro de 1821, e estreou na literatura com Gente pobre, em 1844. Foi preso e condenado à morte pelo regime czarista, em 1849, porém teve sua pena reduzida para quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria – experiência que lhe foi profundamente marcante e que é retratada em Recordações da casa dos mortos, obra publicada em 1861.

Dostoiévski escreveu uma sequência de grandes romances, Crime e castigoO idiota, Os demônios, O adolescente – cuja tradução é um dos grandes lançamentos do ano no Brasil – e Os irmãos Karamazov, publicado em 1880.

Seus romances são marcados por conflitos emocionais e psicológicos, por lúcidas críticas à sociedade russa da época, por uma forte questão religiosa, por uma comentada polifonia criada entre as fortes, vivas e complexas personagens.

Reconhecido como um dos maiores autores de todos os tempos, morreu em São Petersburgo, em 28 de janeiro de 1881.

 

Dostoiévski, “O adolescente”

O adolescente acaba de ganhar no Brasil uma tradução direta do russo lançada pela editora 34. O tradutor, Paulo Bezerra, traduziu também os romances Crime e CastigoIrmãos KaramázovDemônios e O Duplo, de Dostoiévski, e, ao longo de sua carreira, ao todo converteu mais de quarenta obras de filosofia, psicologia e literatura do russo para o português, motivo pelo qual, em 2012, recebeu do governo da Rússia a Medalha Púchkin, por sua contribuição na divulgação da cultura russa no exterior.

O romance é o menos comentado dentre os cinco, pois foi duramente interpretado pela crítica do século XIX, que não compreendeu sua estrutura moderna, fragmentária, baseada nas memórias do protagonista. Porém, a obra revela toda a genialidade do escritor, então no auge de seu talento.

Narrado em primeira pessoa, por um jovem idealista de vinte anos, Arkadi Dolgorúki, o livro acompanha sua trajetória ao passo que tenta ser aceito pela sociedade russa da época. Filho ilegítimo de um proprietário de terras com uma humilde serva, criado longe da família, em um internato de elite, Arkadi por fim vai conhecer seus parentes. Entusiasmado com a chance de conhecer melhor a figura paterna, ele passa a frequentar as rodas sociais da família. É sua chance para pôr em prática um plano que maquinara durante os anos passados no internato: tornar-se um milionário, “um Rothschild”, como diz. Sua ambição é assim sobrepujar, através de seu enriquecimento e da acumulação de capital, a sua origem bastarda. No entanto, conforme tenta integrar-se ao mundo dos adultos, no qual desponta a figura, dúbia e sedutora, de seu pai, o jovem envolve-se em uma trama de histórias que inclui luta por heranças, um círculo de intelectuais revolucionários, casamentos por conveniência, chantagistas e uma carta que poderá mudar o destino de todos.

É reconhecido como o “romance de formação” por excelência de Dostoiévski.

 

Dostoiévski, “Crime e castigo”

Crime e castigo é um dos maiores romances já escritos na história da literatura. Narra a história do estudante Raskólnikov, que, pobre e desesperado, assassina uma velha usurária; ele tenta justificar seu crime por uma teoria sobre a absolvição histórica de grandes homens que cometeram assassinatos, como César ou Napoleão. A narrativa, labiríntica e complexa, acompanha Raskólnikov em seu embate com seu grande castigo: a frustração de sua teoria, a descoberta de ser um homem ordinário, não fazer parte do seleto grupo dos homens extraordinários da história. A dita prosa polifônica de Dostoiévski aqui encontra uma de suas mais densas realizações.

A análise da sociedade articula-se com as vozes subjetivas das personagens, encontrando respaldo moral e psicológico em seu desenvolvimento. Como coloca o psicanalista Sérgio Eduardo Lima Prudente, no artigo “Dostoiévski e a problemática moral em Raskolnikóv”, no “cenário de uma Petersburgo decadente, Raskolnikóv trava uma discussão moral sobre a vontade, a consciência e a ação, aonde ele se utiliza de distorções da moral utilitarista como forma de justificar seu crime. Diante disto, o processo de construção de uma realidade distorcida para possibilitar um crime se dá”. Segundo ele, “na discussão sobre a incidência de uma moral utilitária/racionalista, a vontade se articula de modo a obedecer a um imperativo. Esta via nos leva para o eixo principal do texto, a saber: o esvaziamento subjetivo do protagonista do romance. Tal esvaziamento se dá em um processo que o torna um executor da Lei nos moldes de um puro instrumento. O lugar dessubjetivado que Raskolnikóv gradualmente revela nos indica o aspecto de objeto de gozo do Outro presente no sujeito da experiência moral”.

 

 

Dostoiévski, “Os demônios”

O romance Os demônios foi escrito motivado por um fato verídico: o assassinato do estudante I. I. Ivanov pelo grupo niilista liderado por S. G. Nietcháiev em 1869. Dostoiévski escreveu no ano seguinte a obra, que é também um profundo estudo sobre o pensamento político, social, filosófico e religioso de seu tempo.

Comenta-se que o romance chega a ser profético, pois que nele se vislumbrar, no drama intelectual, uma antecipação do Zaratustra de Nietzsche, por um lado e, por outro, os cruéis fanatismos de Hitler e Stálin.

Segundo o crítico Carlos Russo Jr., em resenha escrita para o Jornal Opção: “Talvez em nenhum dos seus cinco grandes romances, Dostoiévski haja atingido a ‘totalidade do movimento dramático’, como o fez em Os Demônios, que, por isso mesmo é de uma extrema complexidade de entendimento. Talvez esse seja o motivo pelo qual até o próprio Czar Alexandre II pediu que o autor o esclarecesse sobre a que vinha o livro”. Conta o crítico que, “enquanto Lênin considerava Os Demônios como um romance ‘repulsivo, porém colossal’, confessando havê-lo lido quatro vezes, a era Stálin iria bani-lo, juntamente com Irmãos Karamazov e O Idiota. Até a década de sessenta, eles eram considerados leitura ‘perniciosa’ e ‘não construtiva’ para o proletariado russo. Os Demônios, visto como o cúmulo da heresia, somente em 1970, voltaria a ser impresso e circularia livremente”.

Denso, o romance denuncia a violência exercida sob a máscara cego de ideais políticos.

 

 

Dostoiévski, “O idiota”

O idiota foi escrito em meio a crises de epilepsia, perturbações nervosas, viagens e sob a pressão de severas dívidas de jogo. Nele, Dostoiévski constrói um dos personagens mais impressionantes de toda a literatura mundial, o humanista e epilético príncipe Míchkin, comumente apontado como uma mistura de Cristo e Dom Quixote, cuja compaixão sem limites vai se chocar com o desregramento mundano de Rogójin e a beleza enlouquecedora de Nastácia Filíppovna – essa, outra das mais notáveis personagens femininas já criadas na história da literatura.

O tradutor, Paulo Bezerra, no prefácio, comenta que o “tema da vida em contraposição à morte é tão intenso ao longo do romance que são muito freqüentes as citações e referências a O último dia de um condenado à morte, de Victor Hugo. As observações de Míchkin têm um tom autobiográfico, pois são muito semelhantes à experiência vivida pelo próprio Dostoiévski quando da sua condenação à morte por “conspiração política” e da encenação da sua execução. Vejamos o que ele escreve ao irmão Mikhail no mesmo dia:

“Hoje, 22 de dezembro, fomos levados à praça de armas do regimento Semeónovski. Ali foi lida para todos nós a sentença de morte, deram-nos a cruz para beijar… e prepararam nossos trajes para a morte (camisões brancos). Em seguida prenderam três aos postes para a execução da sentença. Chamavam de três em três, portanto eu estava na segunda fila e não me restava mais de um minuto de vida. Eu me lembrei de ti, meu irmão, de todos nós três; no último minuto tu, só tu estavas em minha mente, e só então fiquei sabendo como te amo, meu irmão querido! Tive tempo de abraçar também Pleschêiev, Dúrov, que estavam ao lado, e despedir-me deles. Por fim bateu o sinal, fizeram voltar os que estavam presos aos postes, e leram para nós que sua majestade imperial nos dava a vida. Depois as verdadeiras sentenças tiveram prosseguimento…
Irmão! Não me abati e nem caí em desânimo. A vida é vida em qualquer lugar, a vida está em nós mesmos e não fora. Ao meu lado haverá pessoas, e ser homem entre elas e assim permanecer para sempre, quaisquer que sejam os infortúnios, sem perder a coragem nem cair em desânimo — eis em que consiste a vida, em que consiste o seu objetivo. Eu estava consciente disso. Essa idéia arraigou-se em mim. Sim! É verdade! Aquela cabeça que criava, que vivia a vida suprema da arte, que era consciente e habituara-se às demandas superiores do espírito, aquela cabeça já havia sido cortada do meu pescoço. Restaram a memória e as imagens criadas e ainda não concretizadas por mim. Elas haverão de me ulcerar, é verdade! Mas em mim restaram o coração e aqueles sangue e carne que podem amar, e sofrer, e compadecer-se, e lembrar-se, e isso é vida apesar de tudo. 
On voit le soleil. Bem, irmão, adeus! Não te aflijas por mim!… Nunca na vida reservas tão abundantes e sadias de vida espiritual haviam fervido em mim como neste momento. Mas se o corpo vai agüentar eu não sei…
Meu Deus! Quantas imagens, sobreviventes, criadas por mim irão morrer, irão apagar-se em minha cabeça ou derramar-se em meu sangue como veneno! É, se não puder escrever eu vou morrer… Em minha alma não há fel nem raiva, gostaria de amar muito e abraçar ao menos alguma das pessoas de antes neste momento. Isso é um deleite, eu o experimentei hoje ao me despedir dos meus entes queridos perante a morte… Quando olho para o passado e compreendo quanto tempo perdi em vão, quanto perdi com equívocos, com erros, na ociosidade, na inabilidade para viver, como deixei de apreciá-lo, quantas vezes pequei contra meu coração e minha alma, meu coração se põe a sangrar. A vida é uma dádiva, a vida é uma felicidade, cada minuto poderia ser uma eternidade de felicidade”
.

Segundo Paulo Bezerra, o tema da vida humana “se manifesta predominantemente no horror de Míchkin à violência e à morte, e esse horror o faz contar e recontar um epidósio de execução de um condenado à morte que assistira há algum tempo. Depois de afirmar que a morte por sentença é ‘uma profanação da alma’, ele diz: ‘E todavia a dor principal, a mais forte, pode não estar nos ferimentos e sim, veja, em você saber, com certeza, que dentro de uma hora, depois dentro de dez minutos, depois dentro de meio minuto, depois agora, neste instante — a alma irá voar do corpo, que você não vai mais ser uma pessoa, e que isso já é certeza; e o principal é essa certeza’. E arremata: ‘A morte por sentença é desproporcionalmente mais terrível que a morte cometida por bandidos. Aquele que os bandidos matam, que é esfaqueado à noite, em um bosque, ou de um jeito qualquer, ainda espera que se salvará sem falta, até o último instante… essa última esperança, com a qual é dez vezes mais fácil morrer, é abolida com certeza; aqui existe a sentença, e no fato de que com certeza não se vai fugir a ela reside todo o terrível suplício, e mais forte que esse suplício não existe nada no mundo’”.

 

 

Dostoiévski, “Os irmãos Karamázov”

Os irmãos Karamázov foi o último romance de Dostoiévski. Comenta-se que é uma obra que sintetiza toda sua produção e, inclusive, considerada por alguns críticos como sua obra-prima. Trata-se verdadeiramente de um marco da literatura universal, uma obra que influenciou pensadores como Nietzsche e Freud – que o considerava “o maior romance já escrito”.

Um livro a um só tempo filosófico e policial, que narra a conturbada relação entre o devasso Fiódor Karamázov e seus três filhos: Aliócha, “puro” e místico; Ivan, intelectual e atormentado; e Dmitri, orgulhoso e apaixonado. Com a conhecida mão de mestre, Dostoiévski conduz o leitor numa viagem única pelos recantos, tanto os mais sombrios, quanto os mais luminosos, da alma humana.

Sobre a atualidade da obra, em entrevista à Revista do Instituto Humanitas da Unisinos, o escritor Chico Lopes diz: “O livro continua expressando as angústias do ser humano, sim, e é uma polifonia que vai do celestial ao infernal, passando por matizes exclusivamente humanos, com um poder de persuasão e de fazer o leitor mergulhar em seus meandros que poucas obras têm. Parece que por ele passam todas as vozes. Creio que, para ficar em alguns temas atuais, penso que a família Karamazóv, com sua desintegração patológica, a começar por um pai rigorosamente lascivo e negligente, irresponsável, bufão, é espelho de muitas que seguem se desintegrando, se dissolvendo em desarmonias nunca a rigor pacificadas e reguladas. O sensualismo brutal preside essa desunião – há egoísmos demais nesses núcleos infernais, apetites que se chocam, e a figura que deveria representar a autoridade desmorona, corroída por seu próprio descrédito. Outro tema: o intelectual Ivan  lançou perguntas que os intelectuais continuam a se fazer (e sem respostas consoladoras, sem dúvida alguma). A parábola do Grande inquisidor continua a valer: a religião que se organiza entre homens, temporal, terrena, já nada mais tem a ver com a exigência do Divino – caiu na baixeza utilitária. O Divino é Cristo olhando sem dizer nada. O Grande Silêncio, só ele pode ser religioso. O julgamento de Dimitri,  com suas dimensões de show e seus erros e mal-entendidos absurdos, e o público ávido por sensacionalismo, é atualíssimo”.

O crítico Irineu Franco Perpétuo, em artigo escrito ao jornal Folha de São Paulo, comentando a tradução da obra, diz: “Como já foi apontado mais de uma vez, Dostoiévski chegou a ser acusado de ‘escrever mal’, já que sua prosa passa bem longe do asseado e artificial modelo parnasiano que o senso comum associa ao paradigma de ‘bem escrever’. Não seria difícil, por sinal, classificar seu estilo de ‘deselegante’, pelas repetições de palavras, pela pontuação peculiar e também pelos malabarismos de sintaxe. Em vez de ‘embelezar’ o ‘clássico’, Bezerra recupera seu vigor, deixando propositadamente sem aparar as arestas e dissonâncias que constituem as características fundamentais da escrita dostoievskiana, além de evidenciar os diferentes registros de linguagem empregados pelos distintos personagens do livro. O tradutor não se furta, ainda, a um corajoso posfácio, no qual explicita não apenas suas escolhas estilísticas e lingüísticas, como revela uma visão do romance que se rebela francamente contra os chamados ‘canonizadores antigos e atuais de Dostoiévski’. Partindo de Bákhtin, Bezerra defende a independência dos personagens do romance com relação a seu autor, rejeitando, assim, a identificação automática das idéias e palavras de Ivan Karamázov com o que diz e pensa o próprio Dostoiévski”.

 

Send to Kindle

Comentários